Publicado em A Nosa Terra 653, 22 Dezembro 1994, p. 28
Hoje fui ao Corte Inglês e comprei os quatro compactos do cativante grupo português Madredeus. Não sei que me satisfaz mais: a sua música ou o elitismo de saber que, entre escrito e escrito ou entre cigarro e cigarro, ainda tenho tempo de escutar. Enquanto sigo as letras impressas, encanta-me também pensar que não lhe se entende tudo à solista de primeiras porque é cantado. Deve ser a mesma sensação de iluminada reverência que tinham as nobrezas proto-alemãs do XVIII ao escutarem o bel canto italiano, ou os aristocratas russos finisseculares ao escutarem as lições de francês das filhas, ou a que sentiam os latifundiários autóctonos da Índia ao escutarem um recitado em inglês de Cambridge. Esse foi sempre o problema das elites da Galiza: não olharem para fora. Cada país precisa olhar para fora. Os catalães, para a França. Os japoneses, para a China. Os portugueses, para a Espanha.
E nós? Para onde olhámos nós? Bom, Galiza é rebelde porque el mundo la hizo así. É rebelde porque deve ser um dos poucos países que, infringindo a lógica da história, se nega a aceitar que o seu triste dialecto sobreviva. A Galiza espanhola resiste dia a dia contra a sua assimilação ao galego, mas porém não acaba de assumir a sua identidade espanhola, aquela que lhe daria a verdadeira escusa e força para, agora sim, olhar definitivamente para fora.
Em realidade, o problema das elites galegas é que olhar, sempre olharam para fora, mas na direcção errada. Primeiro olharam para a Mãe Irlanda. Mas a Mãe Irlanda estava longe, e não podia oferecer mais do que um Yeats (em inglês) ou um Joyce (em inglês), quer dizer, mais valle-incláns para acompanhar o que já tínhamos. Logo, ou simultaneamente, as elites galegas olharam para a Mátria Catalunya. Mas a Mátria Catalunya estava longe, e só podia nos oferecer um Miró (em francês) ou um Dalí (em espanhol), para encher-nos de inveja pelo que não tínhamos. E logo, ou simultaneamente, veio o engendro Galeuzca, que persiste na imaginação dos que escrevem e pensam dando as costas à História.
Muitos objectarão que sou absurdo, pois as elites galegas sempre estiveram olhando para fora: para a Espanha. O argumento é inválido, singelamente porque a Espanha nunca esteve fora, mas dentro da Galiza. O grande erro táctico das elites galegas desde a pós-guerra é quererem ser à vez espanholas e galegas. Daí o seu fracasso crescente, que só posso celebrar: as elites oficiais e para-oficiais galegas ignoram que a distinção bourdieuana consiste na apropriação táctica e re-significação da diferença. E não se pode ser igual e diferente ao mesmo tempo.
Por isso, agora que os galegos transmitimos a filhas e filhos cada vez menos o nosso triste dialecto, agora que assumimos cada vez mais a nossa espanholidade, agora que por fim começamos a vencer a nossa longuíssima batalha contra tudo o que for galego, estamos em condições imelhoráveis para nos sentir por primeira vez distintos. Das novas gerações de espanhol-falantes exclusivos sairão (já estão a sair) as minorias letradas lusófonas que o nosso país precisa. Quando por fim deixemos de nos crer “Galicia” e sejamos Espanha plenamente, o jogo da distinção terá uma única coordenada, um único lugar para olhar, uma Arcádia inacessível que justificará uma nova dança de prebendas: Portugal. Daí, também, esse interesse do fascismo português pelo lusismo, um facto constatável que o companheiro Álvaro Vidal sempre que pode se encarrega de lembrar. Os meus recalcitrantes amigos lusistas compreendem isto melhor do que os meus recalcitrantes amigos isolacionistas.
Mas erram os meus recalcitrantes amigos lusistas quando acusam os recalcitrantes isolacionistas de «caça de bruxas». Deixemos tranquilas com as suas apózemas às pobres bruxas, que são apenas o último elo da cadeia heterodoxa. Detrás de cada bruxa há sempre um Dianho, esse avezado anjo primogénito que, no mais antigo Tordesillas registado, conseguiu se repartir com Deus o mundo entre os meridianos do Bem e do Mal. Agora, de novo, lutam Deuses por fixarem inexistentes paralelos, Dianhos por reintegrarem Galiza a murchos meridianos.
Por isso o país precisa dos «señores lusistas», como os dignifica um bom escritor num mau artigo d’A Trabe de Ouro. Galiza precisa dos senhores e senhoras lusistas não porque a língua do Sul seja a mesma que o nosso triste dialecto (que isso tanto tem), mas porque o código do isolacionismo já resulta demasiado fácil, a sua semântica social demasiado evidente. Agora precisamos de alguém que saiba escrever às escondidas os sacerdotais esses duplos e acentos circunflexos, alguém que esteja ao dia dos ritos de vanguarda de além-Minho, alguém que só empregue no seu ordenador software em português, alguém que, num novo Fahrenheit, possa cultivar a sós a chama clandestina da elitista distinção: alguém, enfim, que escute com iluminada reverência o novo código arcano enquanto, pouco a pouco, devagar na obscuridade duma tarde de lazer, vai-se desprendendo como as serpes da sua caduca pele galega baixo a qual mora o alongado corpo do nosso Ser Original que, como sabemos, é espanhol.
Talvez, como lhes acontece a Madredeus, não se compreenda tudo isto de primeiras. Mas «devagar, sem preocupação, tudo a seu tempo se tornará claro. Tudo o que já tem tempo, leva tempo a compreender». Porque só sendo todos nós verdadeiramente Espanhois poderemos alguns por fim ser Portugueses. Galiza, não nos deixes sós aos iniciados.