Galiza, 17 de agosto, 1936-2020

Publicado em Nós Diario

     Havia muito em jogo. Por isso o mataram. Estava em jogo a recuperação da terra e da dignidade, algo que os amos nunca vão aceitar. Ou uma ou a outra, mas não ambas. Como se pudessem ir separadas. Havia um projeto, um projeto ainda nada revolucionário, de começar a auto-reger-se. Bóveda não era um comunista. Álvarez Limeses (o meu avô) não era um comunista. Nem Casal, nem Díaz Baliño. Eram pessoas que pensavam o país. Eram próximos da terra e das gentes. Por isso os mataram. Eram perigosos. Podiam anunciar o sentido democrático. Podiam mostrar como se regem as cousas, cada um e cada uma no seu. Chamava-se, com outras palavras, auto-determinação. Era o poder de, por uma vez, começar a contestar o roubo, a exploração. Eram jovens e tinham sonhos. Não tinham exércitos por detrás. Não tinham igrejas poderosas. Não tinham juízes. Nem sequer tinham leis: queriam é criá-las. Por isso os mataram.

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Boina circunflexa ou tricórnio palatal?

     As forças de segurança do estado, isto é, o serviço privado de repressão do capital, acabam de deter quatro pessoas na Galiza acusadas de pertencerem à fantasmagórica operação de Fake Reality Show Resistência Galega. Esta fase do relato por entregas chama-se, inteligentemente, “Operación Lusista”. Será porque essas pessoas independentistas colocam o circunflexo em Resistência. Então, que tenha muito cuidado a imprensa do regime — que já passou a qualificar as quatro pessoas de “terroristas” sem aguardar a sentença da Audiência Nacional — em colocar bem o circunflexo, ou qualquer dia os gorilas do capital detêm pessoal do ILG por serem de Resistencia (sic) Galega na “Operación Isolacionista”. Continue reading “Boina circunflexa ou tricórnio palatal?”

Vencer o após-guerra

     No excelente documentário La maleta mexicana, sobre uma mala perdida de negativos da Guerra Civil espanhola de Robert Capa e outros dous fotógrafos, o escritor mexicano Juan Villoro sentencia de maneira inimitável:

“Las guerras terminan en una fecha concreta, pero es muy difícil saber cuándo terminan las posguerras, y quiénes ganan las posguerras”.

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O neocapitalismo, a Catalunha e o sangue

     A avidez do capital financeiro está prestes a destruir o capitalismo mesmo: a acumulação de valor via a produção está a chegar a uns dos seus “limites” por sobreexploração dos recursos naturais, por mecanização e por devaluação da mão de obra: se o Trabalho não vale, também não acrescenta valor ao produto! As baratíssimas e ubíquas mercadorias plásticas são metonímias físicas que contêm a degradação do valor do trabalho que levou produzi-las. Por sua parte, a mecanização, por primeira vez na história do Capital, já não é capaz de recolocar a força de trabalho que expulsa dum dado setor: a saturação da tecnificação provoca que muito mais capital, em intensa concorrência na carreira tecnológica, vaia para a manutenção das máquinas que não produzem valor, do que para o trabalho em si. Mas a morte do Trabalho é a morte do Capital, e este sabe-o muito bem na sua própria carne.

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Treze Tweets Sobre Carrero Blanco Que Não São Piada. Dedicados à metáfora de Cassandra

Se Carrero Blanco não tivesse sido assassinado, hoje não seria delito fazer piadas sobre o seu assassínio: não teríamos Audiencia Nacional, herdeira do Tribunal de Orden Público fascista.

O assassínio de Carrero foi uma alegria emocional mas um erro político. Isto é: um sucesso do Franquismo, que assim se perpetuou na Monarquia.

Assassinar o terrorista Franco teria sido mais efetivo. Mas um regime fascista nunca se suicida. É melhor eliminar alguém mais débil da cadeia: Carrero.

O serviço secreto (SS) sabia o que se preparava para Carrero. O regime EUA sabia o que se preparava para Carrero. Sabiam alguns partidos o que se preparava?

Carrero não poderia ter continuado o regime como Franco. Era um medíocre burocrata reacionário. Simbolizava o fascismo, mas não era um Franco.

Possivelmente Carrero teria caído com mais força. Alguém pode imaginar que o regime dos EUA não teria interesse na continuidade dum Carrero se fosse possível?

Mas EUA sabiam que Carrero cairia. Era melhor matá-lo. O melhor instrumento?: a ETA, e a conivência duma socialdemocracia queimada e enganada.

Portanto, Panem et Circenses: “Vamos matar Carrrero. E o velho cabrão amigo dele esmorecerá de pena. Saiam à cena Juan Carlos, Areilza, Fraga, Suárez…”

Panem et Circenses 2: “Deixemos pulular os velhos fascistas (Blas Piñar, Girón) como folclóricos: o antídoto necessário para dar a ilusão de mudança”.

E Panem et Circenses 3: “Mas nunca, nunca, deixemos que a gente esqueça quem ganhou a guerra, e por que: porque mantemos ocultos os ossos dos vossos mortos,

enquanto os ossos e a memória dos grandes assassinos são venerados. Eis a maior humilhação. De classe. Não nos importam os vossos «chistes». Não é isso:

é lembrar-vos perenemente que perdestes a guerra, vós e os vossos descendentes. Temos os instrumentos, a polícia, as leis e a ignorância popular,

e, sobretudo, somos España, essa metomínia de fracasso histórico com nome de estado.
(Mas sshh, que ninguém se inteire de que, na verdade, o Rey Felipe está despido)”.

A morte extrema

Invirto o título do livro do poeta Mário Herrero A vida extrema para refletir na natureza deste último momento do mundo. É verdade que não existe um desenho, nunca existiu, e portanto é possível que a humanidade estivesse a morrer já logo que começou. Mas agora enxerga-se de maneira inusual a perversão do tempo. O grau de reflexividade sobre o estado do mundo é tal que o capital, por exemplo, poderia programar a destruição de toda a vida ciente num instante. Mais difícil seria programarem a salvação só dos poderosos, e por isso não o fazem. Em definitivo, parece que está a fracassar o projeto de a humanidade ser a consciência auto-organizada da matéria, incluída a si própria. Talvez fracassasse sempre, desde o começo, e não o sabíamos, ou não queríamos imaginá-lo. Talvez fosse sempre mais cómodo lutarmos por manter dentro dessa imaginação uma ilha que aboiava conosco e levava dentro a igualdade, e arribaria a costas diversas e germinaria. No entanto, crescíamos com a lenteza requerida para ir observando a instalação interna da morte pequena, mimese da morte grande das selvas ou das minas. E essa morte interna ia curando o terror suicida da utopia, no processo exatamente homeopático que o poder desejava. E assim foi, década após década, geração após geração, até a este momento singular em que uma pessoa qualquer é capaz de observar o mundo inteiro num instante. Por isso não é possível voltar aos antigos rituais de luta, não operam. Não é possível confiar. Também não há tempo humano para qualquer cousa que não seja uma radical transformação do ser, como uma definitiva injeção de claridade nas veias, com a dor e a sujidade do delito. Todo o restante será tão parcial como a coincidência de ser, qualquer de nós, tão semelhante a uma pedra que distinguir-nos delas é um acaso. Se ainda se mantém o projeto da consciência, matar a morte extrema será, seria, um procedimento igualmente extremo. Seria comparável àquilo que os mitos que procuravam paliar a solidão humana chamavam iluminação. Seria contemplarmos este último minuto do mundo, que em toda a sua dor ainda pode demorar décadas, e decidir pará-lo e revertê-lo, como Moebius, polo menos acreditando na generosa geometria de Moebius, ou como Marx, polo menos acreditando na íntima relação entre a realidade material e a dignidade humana. Seria, pois, organizarmos a expulsão dos poderosos. Isto requer algo mais do que uma inanimada maré, sempre sujeita a ciclos e ritmos superiores. Na maré a água é única, indistinta. Numa assembleia aberta na aberta pradaria, porém, cada corpo permanece em si, distinto mas unido. Numa assembleia contínua de vontades não é preciso renunciar a ser fração organizada e diferente da matéria do mundo: só se unem as vozes se não se perdem, precisamente, no monopólio da unidade. Porque o contrário da voz é a morte. E o contrário da morte humana, a verdadeira e necessária, é esta morte extrema, diária, a que um tempo perverso de monstrosidades e assassinos quer impor. Reparar nela, de acima, como um demorado e enorme fotograma, talvez seja, polo menos, um passo para regressarmos à consciência.

Agora, o Bruno

Por fim levaram para a cadeia o terrorista Bruno Ruival, Bruno Vence Ruibal no seu nome espanhol. Já era sem tempo! Andavam toda Compostela e a Galiza cagadas de medo pola sua presença nas ruas. A gente estava apavorada, sei-no de boa tinta. Parabenizo o cidadão ou cidadã que o delatou. Ao parecer, dizem a lei e os jornais, o Bruno teria mantido na sua casa Maria Osório. É natural nele: ali onde se podia apoiar o terrorismo, aí ia o Bruno. Sempre lembrarei uma conversa uma noite em Compostela, no meio da rua, em que me explicou como se faziam as bombas. Advertim-lhe que esta foi exatamente uma das razões (explicar a um operário comunista como se faziam bombas) polas quais o meu avô médico, membro do perigoso Izquierda Republicana, foi justamente fuzilado por Franco em 1936. Mas o Bruno continuou, gesticulando grandes esferas com as mãos, salivando ao reproduzir o som das explosões.
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Quem Possui a História?: 1300 Anos, 44 Gerações

Dom Felipe Juan Pablo Alfonso de Todos los Santos de Borbón y Grecia (1): é filho de Sofía Margarita Biktoria Freideriki tis Elládas e de Juan Carlos I Alfonso de Borbón y Borbón (2), filho de María de las Mercedes Cristina de Borbón y Orleáns e de Juan Carlos de Borbón y Battenberg (3), filho de Victoria Eugenie Julia Ena von Battenberg e de Alfonso XIII León de Borbón y Hasburgo (4), filho de Maria Christine Desideria Henriette von Österreich e de Alfonso XII Francisco de Borbón y Borbón (5), filho de Isabel II María de Borbón y Borbón e de Francisco de Asís María de Borbón y Borbón (6), filho de Luisa Carlota Maria Isabella di Borbone e de Francisco de Paula Antonio María de España (7), filho de Carlos IV Antonio Pascual de España e de Maria Luisa Teresa di Parma (8), filha de Louise Elisabeth de France e de Filippo de España (9), filho de Elisabeta Farnese e de Philippe V de France (10), filho de Louis de France e de Maria Anna Christine Victoria von Bayern (11), filha de Ferdinand Maria von Bayern e de Adélaida Enrichette Maria di Savoia (12), filha de Vittorio Amedeo I di Savoia e de Christine Marie de France (13), filha de Henri IV de France e de Maria del Medici (14), filha de Francesco I dei Medici e de Johanna von Österreich, (15) filha de Anna Jagiello e de Ferdinand I von Habsburg (16), filho de Philipp I von Habsburg e de Juana I d’Aragó (17), filha de Fernando II d’Aragó e de Isabel I de Castilla (18), filha de Isabel de Portugal e de Juan II de Castilla (19), filho de Enrique III de Castilla el Doliente e de Catherine of Lancaster (20), filha de John of Gaunt 1st Duke of Lancaster e de Constanza de Borgoña infanta de Castilla (21), filha de María de Padilla e de Pedro I de Castilla el Cruel (22), filho de Maria de Portugal e de Alfonso XI de Castilla el Justiciero (23), filho de Constança de Portugal e de Fernando IV de Castilla el Emplazado (24), filho de Beatriz von Schwaben e de Fernando III de Castilla el Santo (25), filho de Berenguela I de Castilla e de Alfonso IX de Leão (26), filho de Urraca de Portugal e Savoia e de Fernando II de Leão e Galiza, (27) filho de Berenguera de Barcelona infanta d’Aragó e de Alfonso VII de Leão el Emperador (28), filho de Raymond de Bourgogne e de Urraca I de Leão (29), filha de Constance de Bourgogne e de Alfonso VI de Leão el Bravo (30), filho de Sancha de Leão e de Fernando I de Leão el Magno (31), filho de Minadona de Castilla e de Sancho Garcés III de Pamplona el Mayor (32), filho de Jimena Fernández e de García Sánchez II de Pamplona el Temblón (33), filho de Urraca Fernández e de Sancho Garcés II de Pamplona (34), filho de Andregoto Galíndez condessa d’Aragó e de García Sánchez I de Pamplona (35), filho de Sancho Garcés I de Pamplona e de Toda Aznárez reina de Pamplona (36), filha de Aznar Sánchez de Larraún conde d’Aragó e de Onneca Fortúnez (37), filha de Fortún Garcés el Tuerto e de Awriya ibn Lubb (38), filha de Ayab Al-Bilatiyya e de Lubb ibn Musa (39), filho de Assona Íñiguez e de Musa ibn Musa ibn Fortun al Qasaw (40), filho de Onecca e de Musa ibn Fortún (41), filho por uma parte de Fortún ibn Qasi (42), filho do conde hispanorromano ou visigodo Casius (43), convertido ao islamismo, que morreu em 715, e por outra de Asima bint Abd al-Aziz (42), filha de Egilona (viúva do rei Rodrigo) e de Abd al-Aziz ibn Musa (43), filho de Musa ibn Nusair (44), caudilho militar muçulmano, que participou na invasão da Hispânia visigoda em 712.

1300 anos, 44 gerações.

María Dolores, limpadora das defecações diárias de dom Felipe nas casas de banho da sua mansão: é filha de Dalia e de Miguel, campesinos do Equador, filhos de campesinos de Equador, netos e bisnetos de campesinos de Equador, de nomes e origens desconhecidos.

Alguém acredita que os proprietários da História vão abandoná-la?

 

Capa censurada da revista El Jueves. Uma primeira distribuição de 60000 exemplares foi retirada pola publicação, e destruída. A capa foi substituída por uma caricatura do político Pablo Iglesias. O debuxante da vinheta do rei demitiu-se de El Jueves.

 

Vítimas do Terrorismo

No Portal Galego da Língua ★ No Diário Liberdade ★ No Praza Pública

Foi tão brutal o atentado que muitos corpos nunca apareceram. As explosões sucederam-se durante muito tempo. Participaram no complô cidadãos e cidadãs normais, pessoas das que se vêem na rua cada dia, infiltradas na cidade. A imensa maioria, de facto, tinham boletins de identidade do país, não eram estrangeiras. Organizavam-se em células pequenas, amiúde amparadas nos templos que durante anos alimentaram o ódio e uma visão messiânica da fé, da raça, da identidade, das missões de conquista e reconquista.

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Assaltar a CEOE

Nos sumidoiros da violência todas as ações fedem igual. A brutalidade policiaca é aprendida primeiro sob um chândal com capacete cosido polas meninhas indianas ou as adultas galegas de Inditex. A violência policial leva, dantes, um chândal com capacete e uma mochila às costas. No jogo mediático, os adversários mudam de bando após cada combate. A polícia, esplêndida, arresta-se a si própria e nega-o. Afinal, sempre foram os mesmos símbolos: cabeça rapada, limpa; testosterona em lugar de raciocínio; e uma perigosa e primitiva pulsão de salvadores, de salva-pátrias, de romper-nos o crânio e as ideias por higiene. Depois da mudança de bando, que é o mesmo, já tudo é o mesmo fedor nos sumidoiros democráticos.
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