O célebre sociólogo Boaventura de Sousa Santos, do Centro de Estudos Sociais de Coimbra, vem à Universidade da Corunha falar das Epistemologias do Sul e o futuro da universidade, com motivo do 25 aniversário da fundação da UDC. É um importante ato convidado pola universidade, com os poucos fundos que nos restam e que a atual Reitoria procura distribuir com siso, sobretudo para que o capital do Norte não possa botar mais pessoal trabalhador. Dentro dumas semanas virá, dentro da mesma série de palestras, por exemplo, outro célebre varão intelectual e mediático, Vicenç Navarro. Continue reading “A Epistemologia do Norte de Boaventura de Sousa Santos na Corunha”
O “bajón” das línguas
“Estaba yo en un pub [en Coruña] … Y de repente le digo [al chico]: ‘Ah, no sabía que eras el primo de Tal’. Y me dice: ‘Sim, sou o primo de Tal’. Y digo yo (‘¡Habla gallego!’). Y me dio un bajón…”.
Marta López, concursante do Gran Hermano espanhol, 2011.
Essa tarde fresca de sábado convidei o meu amigo X. a tomar o cafezinho de sobremesa no meu andar no centro da cidade. Falámos, como outras vezes, de perspetivas de trabalho: A ele ofereciam-lhe possibilidades de melhora e traslado, mas não sabia se ir para Compostela, para Porto ou para São Paulo; eu queria fazer uma estadia de investigação fora; o meu colega G.F. da Universidade Eduardo Mondlane de Moçambique trabalhava no mesmo campo. Talvez aí.
Entrevista: “A mercantilização da língua continua a ser mais uma amostra do carácter invasivo do valor”
Em GalizaLivre, 11 de janeiro de 2011 • Em Encontro Irmandiño
Recentemente seguiste de perto o debate sobre política linguística entre sectores vinculados à UPG e outros ao IGEA ou o quintanismo. Que balanço tiras das suas propostas?
Na verdade, eu diria que houve e há mais polémica (inclusive pessoal, agre, insultante) do que debate de fundo sobre qualquer nova proposta realizável de política linguística. E também não entram em jogo apenas esses dous setores mencionados, embora tenham destacado, polas confluências de posições intelectuais, académicas e políticas, num país como o nosso onde há tanta sobreposição de redes dos campos diferentes. Digamos que a “conversa” a várias vozes continua, mas não acho que se esteja a tirar muito em limpo. À partida, eu não concordo com a necessidade dum “novo discurso sobre a língua” por esses vieiros, e muito menos com base no deficiente texto do IGEA, como tenho criticado em três textos recentes. Mas devemos entender que nesta tentativa de revezamento do “discurso”, em contra do que se afirma, há uma parte de operação política, também apoiada mediaticamente, que talvez chegue a ter um sucesso parcial.
Monolinguismo, bilinguismo, hegemonia: Não são só palavras
No Portal Galego da Língua • Em MundoGaliza • Em Diário Liberdade • Em Encontro Irmandiño • Em Carta Xeométrica
Despersonalizar é provavelmente a melhor disposição para compreendermos um problema tão complexo como a atual crise da língua na Galiza. A troca de textos e mensagens recentes nas publicações periódicas do país e na Internet a respeito dum recente texto de opinião do IGEA (Instituto Galego de Estudos Europeos e Autonómicos) sobre o futuro do idioma insiste amiúde em questões muito marginais, incluindo um questionamento recíproco, multilateral, do saber e das capacidades de análise dos participantes. Contrariamente a esta atitude, vou assumir que qualquer pessoa que se debruça sobre uma questão social mas também técnica e perde parte do seu valioso tempo em ler textos longos (ou longuíssimos, como este) possui suficiente conhecimento e raciocínio para não deixar-se enguedelhar no trivial questionamento do conhecimento e do raciocínio doutrem.
Três são as dimensões que eu destacaria duma polémica –antes que debate de fundo– que corre o risco de produzir vazia inflação discursiva. Mas, antes, um posicionamento: O meu objetivo não é contribuir para debater polo miúdo os argumentos de fundo do documento do IGEA, pois na minha opinião não inaugura qualquer discurso novo, e apenas introduz uma expressão que pretende central (“bilinguismo restitutivo”), traduzível de muitas maneiras a outras expressões. O meu objetivo é, precisamente, contribuir para que a expressão não se centralize nem no debate público nem no ativismo sobre a língua, polo seu potencial negativo para o futuro da língua, que não começa nesse texto. E para isto, evidentemente, procurarei razoar desde o meu limitado conhecimento e desde a minha posição ideológica. Os três aspetos que quisera comentar são: 1. A “despolitização” e “desnacionalização” da questão da língua. 2. A dinâmica “monolinguismo / bilinguismo / hegemonia social do galego”. 3. A articulação entre propostas de intervenção linguística e usos reais. Para isto, remito-me em ocasiões a documentos, manifestos e debates anteriores. Mas, confiando no bom funciomento do Google, escuso colar aqui por enquanto tantas referências a tantos textos. E, por mor da despersonalização dum claro sarilho de textos (não por mor da invisibilização de ninguém, nocivo protocolo habitual neste mundo), prefiro não citar qualquer pessoa, nem para bem, nem para regular, nem para mal.
Continue reading “Monolinguismo, bilinguismo, hegemonia: Não são só palavras”
A língua e o triunfo do Eu
Publicado em Vieiros
Por recomendação dum amigo, estou a ver estes dias a série de quatro documentários The Century of the Self (“O Século do Eu”), de Adam Curtis, o mesmo documentalista do magnífico The Power of Nightmares sobre a invenção propagandística do “terrorismo islâmico”. Na série sobre o self, Curtis revela a poderosa implicação das ideias de Freud, Reich e outros psiquiatras na mercadotecnia comercial e política de massas nos EUA, no Reino Unido, e (por extensão imperial) eu diria que em todo o mundo conhecido, que é aquele aonde chega o cadáver de Michael Jackson. No episódio três, Curtis explica a viragem face ao mais atroz individualismo que deu uma inesperada vitória a Ronald Reagan em 1980 nos EUA e inaugurou o mal chamado “neo”-liberalismo que hoje sofremos.
Bilinguismo zumbi e crise sociolinguística
Publicado em Vieiros
No seu blogue do New York Times, o prémio Nobel de Economia Paul Krugman introduz a expressão “zombie ideas” para se referir àquelas más propostas económicas já mortas que ressuscitam periodicamente. Aprendo a imagem numa entrevista que lhe faz Amy Goodman no inimitável noticiário Democracy Now!, e aproveito-a sem pudor. O “bilinguismo zumbi” do meu título não se refere aos milhões de pessoas galegas que conhecemos e falamos duas (ou mais) línguas, mas às ideias zumbis sobre a nossa crise sociolinguística que a história mata periodicamente mas que levantam cabeça à mínima, com sedução de ultratumba, e que haverá que voltar a matar com paciência. O “bilinguismo harmónico” de Fraga Iribarne ressuscitou há pouco no corpo da “amabilidade linguística” de Alberto Núñez Feijóo. Na realidade, são novas versões da velha ilusão do convívio entre línguas, que nunca funcionará na Galiza (entre línguas) até que se destaque uma outra maneira de articulá-lo.
Continue reading “Bilinguismo zumbi e crise sociolinguística”
O Monolinguismo Graciñas, ou Como roubar ao Corredoira
Publicado no Portal Galego da Língua
Quisera falar desse fenómeno tão comum na Galiza que dou em chamar o Monolinguismo Graciñas. Escasso eu de ideias ultimamente, roubo o tema do artigo “Bom Dia“, no Portal Galego da Língua, do perspicaz pára-erudito Fernando Vázquez Corredoira. Lede-o antes, que tem substância. Nele, Corredoira comenta que na Catalunha, país onde mora agora, um bilingue como ele (bom, na realidade trilingue, quatrilingue ou linguareiro; para este caso, bilingue catalão-espanhol) vai a um bar, por exemplo, diz “Bon dia”, o bareiro monolingue em espanhol responde “Buenos días”, ele então continua em espanhol, o bareiro também, e afinal o bareiro diz “Adéu” em catalão. Corredoira explica o que isto significa: simplificando, que, num país bilingue, o bareiro monolingue quer indicar que respeita o bilinguismo do outro.
Na Galiza acontece algo que pareceria semelhante, mas nem tanto. É assim: Tu, que és uma pessoa de competência bilingue galego-espanhol mas falas só galego, vás a uma loja e dizes “Bom dia”, ou “Bos días”. A empregada monolingue diz “Buenos días” e fala sempre em español. Tu continuas em galego porque sabes que te entende (tu sabes que o galego é uma língua distinta, e que por isso todo o mundo deve entendê-la; ela sabe que galego e español são a mesma língua, por isso entende o teu español que é galego). E o mais estranho é que, afinal, a empregada se despide com o perfeito trissílabo “Graciñas”, quase com um acento por sílaba. Diz “Grá-cí-ñás” com “eñe”, claro, porque se não diria “Obrigadinha”, o qual seria demasiado fríqui.
Para que farão estas cousas raras estas duas personagens: tu a/o Bilingue Monolingue Galega/o, e a vendedora Monolingue Graciñas?
A empregar só galego, tu, de competência bilingue mas monolingue no uso, indicas que estás no teu país Monolingue Em Galego, Que Demo!, que por desgraça tem dentro um país monolingue em español que meteram a ferro os malvados Reis Católicos para castrar-nos a língua, que dói.
E, a despedir-se com “Graciñas”, a empregada, sempre cortês, está a indicar que estamos no teu país que tu pensas que é bilingue mas que estamos no seu país que ela sabe que é monolingue. A ver, que não entendo.
É possível que, se ao começo do encontro –que se chama do tipo transaccional— a vendedora graciñas se pusesse a falar galego, não soubesse continuar bem. Isso diz o Corredoira no caso do bareiro monolingue na Catalunha. Mas talvez não seja a mesma situação: o bareiro monolingue talvez venha de Cáceres. Aqui na Galiza muitas vezes a vendedora poderia continuar em galego, claro: é galega! Mas, para que vai ela falar em galego, que é español, pudendo falar em español, que é español? Falando no seu español, que é o tipo de español que fala, a vendedora indica, além, algo cortês e bonito: que o teu galego também é español; que falades a mesma língua.
Polo contrário, se a vendedora se pusesse a falar no teu galego que é español, talvez não o fizesse tão bem como tu, e ela teria algo a perder em termos do que se chama face ou imagem, por duas razões: primeiro, por ela falar mal (falar mal podendo falar bem faz perder imagem); e, sobretudo, porque che poria a ti na incômoda situação de reconheceres esta deficiência, e até de apiedar-te do mal español que fala ela no seu galego.
Em resumo: a vendedora fala español porque é cortês contigo, para não perder imagem, porque falades a mesma língua, e porque é livre.
Mas então, já afinal do encontro, a vendedora que pratica o Monolinguismo Graciñas tem algo a ganhar dizendo “Graciñas”. Com este rítmico trissílabo reconhece que tu, o bilingue-que-pretende-ser-monolingue-galego, tens a liberdade de fazer isso, enquanto ela, a monolingue-que-não-pretende-ser-bilingue para ela (porque sabe que “Graciñas” é uma palavra española) mas sim para ti (porque tu pensas que é uma palavra galega), tem a liberdade de não converger em galego contigo porque estamos num país bilingue (o teu, não o dela) e de escolhas linguísticas livres.
De maneira que, no fundo, os praticantes do Monolinguismo Graciñas, como esta vendedora, são mais respeitosos contigo (porque indicam que estão no teu país bilingue) do que tu com eles, que não reconheces o seu país monolingue. Que tu sejas menos cortês não lhes importa, porque o seu trabalho é serem corteses. E ainda por riba queremos mais Normalización!
Eh, não estou julgando as intenções psicológicas malévolas da vendedora desleixada, antipatriota, ou patriota española (que é menos mau, porque polo menos ela também tem Patria, como tu, inclusive sem acento), descendente directa dos Reis Católicos. Estou procurando desvendar o que se chamam as ideologias linguísticas, que são esse conjunto de, digamos, conteúdos sobre a língua que se manifestam às vezes nas palavras que parecem uma cousa mas são outra.
Muito bom. Tudo claro. Ou não. Agora já é difícil de arranjar a confusão. O caso é: perante a vesânia do Monolinguismo Graciñas, o que fazer? Risque-se o que proceda:
a) Nada. Sofrer doma y castración.
b) Chamar imediatamente à Mesa polo telemóvel.
c) Responder “De nadiña”.
d) Reler o unânime Plano Xeral de Normalización da Lingua Galega.
Eu faria isto último. Não reler tudo, que dói a cabeça. Só a introdução. E como o Plano Xeral de Normalización da Lingua Galega está desenhado unanimemente para “preservar os dereitos das persoas que queren facer a sua vida inteira sempre en galego” (mais ou menos, não vou citar literalmente, que me dói a cabeça), pois não che hai nada que fazer. Isso é a normalización, é-che o que hai. Nas administrações, a Xunta pode meter o peçunho, que são suas. Mas, e no Hipermercado Graciñas? Porque no híper tu já fazes a vida em galego! A tua, digo, não a da vendedora. Não quererás que a Xunta, para garantir o teu direito de falares español em galego, se meta nos direitos dos monolingues graciñas de falarem español em español! Porque há Liberdade de Língua e de País. Como vai entrar a Xunta de Galicia a foçar na língua do país dos Reis Católicos que está dentro da Nazón que está dentro da Nación? Ai, que me lio!
A ver se me explico melhor: Como vão fazer a Xunta unánime e a Mesa com que os desleixados Monolingues Graciñas compreendam que o galego, essa forma do español, é a forma de español que há que utilizar neste país que é monolingue em español para pretender que é um país monolíngue Em-Ga-le-go, Que Raios?! Para isso a Xunta teria que entrar nos cocos mentais dos traidores Monolingues Graciñas, com trepanadores ACME que no extremo inoculassem letra a letra na dura-máter as Normas Ortográficas e Morfolóxicas do Idioma Galego, Versión 2.2 e tirassem fora as letras do Diccionario de la Real Academia Española, 22ª edición. E isso, além de parecer-se com esvaziar uma garrafa de água para enchê-la, em troca, com água, custa bem dinheiro e há que cumprir as normas comunitárias de trepanadores linguísticos.
Difícil, eu vejo-o difícil. Seria mais fácil se todos os Monolingues Graciñas não fossem descendentes directos dos Reis Católicos, como Juan Carlos, que sabe castrar em português.
Graciñas.
Línguas de mar adentro: Universalidade e hierarquias lingüísticas
Publicado no Portal Galego da Língua
“… certa polémica que anda a rebulir no país, tan querido e ás veces tan pataqueiro, de se Mar adentro é cine galego ou non, se debemos aplaudir ou non estas iniciativas como nosas, se o filme de Amenábar nos representa ou non nos representa…… A rexouba non tería máis trascendencia, nin merecería liña ningunha, se non estivese bastante extendida. Miren vostedes: aquí representámonos todos segundo e cómo.”
Víctor F. Freixanes, “Mar adentro en Manhattan”, La Voz de Galicia, 5 Março 2005
Toda a obra ficcional onde intervém a palavra é um universo de discurso, um mundo possível de maior ou menor coerência que contém uma ordem sociolinguística ficcional. Esta ordem ficcional pode estar orientada a representar em maior ou menor medida a ordem sociolinguística real, ou, polo contrário, a construir ou sustentar uma ordem dada no mundo real. Quando as pessoas e a sociedade representadas e ficcionalizadas utilizam mais duma língua, a escolha da ordem sociolinguística ficcional tem implicações para uma interpretação da orientação ideológica (e portanto ideológico-nacional) do filme, à margem de uma nunca recuperável intenção deliberada do autor. Porei só dous exemplos contrários de obras audiovisuais monolingues. Em Los lunes al sol a escolha como personagens principais de um grupo de operários e desempregados galegos que falam espanhol, coloca o filme no nível de simbolização de identidades doutros excelentes filmes sociais espanhóis como Te doy mis ojos, Solas, Barrio ou El Bola. A série de televisão Mareas Vivas, por contra, constrói um mundo possível exclusivamente lusófono num sentido amplo, articulado em torno da distinção sociolinguística de classe de dous grupos de personagens: “galego de gheada e sesseio” para as classes trabalhadoras frente a “galego comum” para as que detentam capital cultural. Esta distinção está mascarada sob a aparência de um jogo de âmbitos de identidades: “os de dentro” (Portozás) frente a “os que vêm de fora”, que resultam ser… o juiz, a doutora, e o mestre.
Numa orientação distinta, uma obra pode querer representar mais ou menos fielmente a ordem sociolinguística “real”, ou polo menos deixar constância da sua existência. Num exemplo extremo, no cinema estadunidense, esporádicas aparições dos “estrangeiros” falando no seu idioma (legendado ou não em inglês) são suficientes para as suas identidades ou origens nacionais serem simbolizadas, embora eles continuem depois a falar só inglês com sotaque estrangeiro. O procedimento estilístico é comum, válido e efectivo, mas os seus efeitos devem ser estimados em relação à ordem sociolinguística real da sociedade a que a obra está orientada. E aqui não estamos nos EUA, mas na Galiza.
Algo desta vontade de fidelidade há no elegante mas convencional filme Mar adentro (2004) de Alejandro Amenábar. A impressão inicial depois de ver o filme uma vez é que este representa de alguma maneira a diversidade linguística das sociedades do estado espanhol, com o uso alterno das três línguas de mais extensão peninsular: português (galego, com variantes), catalão (de Catalunha e unitário), e espanhol (com variantes comum e dialectal galega). Diversas personagens utilizam algumas das três línguas alternada ou concorrentemente em diversas circunstâncias comunicativas e configurações de participantes. Certamente, o filme não está desenhado para fazer da língua a questão central. A sua temática é o direito ao suicídio assistido, não a língua. Mas é precisamente a sua vocação universalista que nos pode levar a perguntar-nos em que medida, e especificamente como, a ordem sociolinguística interna se corresponde com a real da Galiza ou de Catalunha, e como e em que medida as três línguas articulam os valores de universalidade do filme. Com outras palavras, no que a nós concerne, não se trata só de se, na representação da diversidade linguística, Mar adentro faz um uso do galego que é possível no mundo real, mas de como se articula o jogo simbólico a três bandas (não duas) da “galeguidade”, “catalanidade” e “espanholidade” em função da intenção universal do filme. A escolha duma dada ordem sociolinguística ficcional por parte dum autor tem indubitáveis implicações estéticas, e neste comentário não se trata de abordá-la. Mas, num elementar procedimento de comutação, é evidente que um hipotético Mar adentro só em espanhol (com ou sem sotaques diversos) produziria um outro sentido da sua projecção de “universalidade”: a temática não é tudo numa obra artística. Portanto, e em resumo, como participa o jogo de línguas em Mar adentro na sua vocação universal?
As personagens
De novo, Mar adentro parece representar certos aspectos da diversidade sociolinguística na Galiza (e em Catalunha). Mas um visionado mais atento da gravação (em DVD), concretamente dos usos específicos das três línguas polas diversas personagens, revela certos contrastes de sentidos que arrojam uma hierarquia de línguas no universo da obra. Enumeremos em primeiro lugar as personagens para seguirmos o fio deste comentário. É desnecessário esclarecer que toda reflexão se refere à obra Mar adentro e às personagens de ficção, não aos factos nem pessoas reais nas que está baseada, aos quais não temos acesso directo. Para destacar isto, utilizarei aspas descontextualizadoras:
- “Ramón Sampedro”, a quem chamaremos (Ra)
- Pai de “Ramón” (Pai)
- “José”, irmão de “Ramón” (Jo)
- “Manuela”, esposa de “José” e cunhada de “Ramón” (Ma)
- “Javi”, filho adolescente de ambos e sobrinho de “Ramón” (Ja)
- “Rosa”, amiga (Ro)
- “Gené”, trabalhadora catalã da associação Derecho a Morir Dignamente (Ge)
- “Julia”, advogada sediada na Catalunha (Ju)
- Esposo de “Julia” (Es)
- “Marc”, advogado e companheiro de Gené (Ma)
- Sacerdote (Sa)
- Condutor de veículo que leva “Ramón” à Corunha (Co)
- Enfermeiro de Barcelona que ingressa “Gené” para o parto (In)
As personagens agrupam-se em dous núcleos fundamentais: um na Galiza, em torno de Ramón, com a sua amiga Rosa, e outro o núcleo catalão (Gené, Julia, Marc, esposo de Julia), em torno de Gené. Ramón, como personagem principal, tem relação e interacção com todos eles excepto com o Esposo de Julia.
Mas, como se dão os usos linguísticos específicos polas distintas personagens? Os seguintes gráficos resumem a rede de relacionamentos a meio da língua no núcleo galego. As frechas e a sua direcção indicam a língua utilizada por uma personagem com outra. Por exemplo, A <—–> deve ler-se ‘A utiliza espanhol ao se dirigir a B, e viceversa’:
Condutas linguísticas no núcleo galego
![]() |
![]() |
Passemos a explicar estas condutas em detalhe.
Em primeiro lugar, o filme reflecte de alguma maneira a mudança sociolinguística da Galiza consistente na perda intergeracional do idioma. Por uma parte, dentro do núcleo familiar, numa primeira impressão a língua originária parece ser o galego-português: na forte discussão familiar no quarto de Ramón após a notícia (na televisão espanhola) do rechaço da sua demanda legal, quatro participantes utilizam o galego: José, Ramón, o Pai, e Javi, que comenta algo para si. Manuela cala. Numa discussão posterior entre José e o seu filho Javi, este responde em galego, mas antes de ir embora finaliza com um simbólico “Déjame!” em espanhol. Se está amplamente documentado na pesquisa que nas situações comunicativas tensas e emotivas (discussões, queixas, conflitos, etc.) entre os bilingues surge a língua dominante, é evidente que, enquanto a língua dominante de José é o galego-português, a do filho Javi já é o espanhol. De facto, Javi dirige-se sistematicamente em espanhol à sua mãe, ao seu tio Ramón, e ao avô. O próprio Ramón alterna entre galego e espanhol com o seu irmão numa conversa. O exame desta conversa revelaria valores de subjectividade e emoção ligados ao uso do galego por Ramón, e de espanhol para os enunciados que tematizam a racionalidade e a objectividade.
Quanto à relação entre José e Manuela, aquele dirige-se a ela em espanhol numa ocasião, diante do sacerdote que veio visitar Ramón: “Déjalo”, diz José a Manuela quando observa que esta vai começar a recriminar ao sacerdote certos comentários. E é também numa única ocasião que Manuela se dirige a José, e igualmente em espanhol. Portanto, a impressão inicial de que o galego é o idioma habitual no grupo familiar é uma ilusão.Significativamente, Manuela não utiliza galego em nenhuma ocasião na história. De facto, nenhuma das mulheres da obra utilizam outra língua distinta do espanhol entre elas: tampouco Manuela com Rosa. Em Mar adentro, o galego é sobretudo um veículo masculino mantido (e só parcialmente) no triângulo familiar Pai – Ramón – José. Mas os únicos que mantêm o galego consistentemente na família são José e o Pai.
Contudo, também no seio da própria língua se estabelecem contrastes simbólicos. O galego do Pai e de José tem “gheada” e conserva a sibilante portuguesa [s] (“Hai que pensar com a cabeça!” [ka’ßesa], diz-lhe José ao filho). Por contra, a fala de Ramón e de Javi está “regularizada”: ausência de gheada, e thetacismo (pronúncia interdental de “ç”) como em espanhol. O paralelo entre as variantes linguísticas e identidades socioculturais é transparente: o Pai e José são trabalhadores do mar e da terra; Javi é estudante, tem computador; e Ramón viu mundo (estivo embarcado vários anos), e agora relaciona-se com o mundo exterior (Gené, Julia), escuta Wagner, gosta dos debates na rádio, lê, e escreve pensamento e poesia. Como em Mareas Vivas, em Mar adentro o “galego comum” simboliza e é veículo da cultura, desprovido já dos marcadores sociolinguísticos de classe e de nível cultural baixo da “gheada” e do mal chamado “sesseio”.
Em resumo, no núcleo galego as seis personagens principais organizam-se numa escala simbólica hierárquica de três pares quanto ao uso das línguas e variantes na sua projecção respectiva de universalidade:
- Pai e José: trabalhadores manuais; galego com “gheada” e [s].
- Manuela e Rosa: trabalhadoras manuais; espanhol galeguizado, sem “gheada” e com [theta] [θ].
- Ramón e Javi: acesso à cultura; galego regularizado sem “gheada” e com [theta] [θ]; espanhol não galeguizado.
Condutas linguísticas no núcleo catalão
Em contraste, no núcleo de personagens catalãs (ou da Catalunha), a articulação entre línguas e identidades sociais é muito distinta. Tal escala interna de contrastes não se dá no seio do catalão (só utilizado por três personagens no filme). Na Catalunha, a ordem sociolinguística não se baseia na classe nem na cultura, ao serem situar ambas línguas, catalão e espanhol, em plano de igualdade potencial. Na história há duas parelhas internamente monolingues, ambas de classe social meia-alta e com capital cultural: uma delas fala espanhol (a advogada Julia e o seu esposo), e a outra catalão (Gené e Marc, advogado).
Em todo o caso, o espanhol mantém, porém, a exclusiva da universalidade na relação entre ambas parelhas: até na Catalunha, a interacção entre um espanhol-falante e um catalão-falante dá-se em espanhol:
![]() |
![]() |
Poderia parecer, portanto, que em Mar adentro se trata por igual o papel da língua espanhola como veículo de relacionamento pretensamente “neutral” por excelência sobre as outras duas línguas romances, tanto na Galiza como na Catalunha. A norma do filme parece ser: na presença de algum espanhol-falante, fale-se espanhol. O recurso talvez tenha sido produtivo para podar a representação mais fiel duma diversidade de usos das outras duas línguas. Mas há dous últimos contrastes significativos que apontam, porém, para uma hierarquia adicional na construção dos usos ou valores das três línguas para o relacionamento social fora do núcleo próprio: concretamente uma hierarquia espanhol – catalão – português. Vejamo-lo em detalhe.
Hierarquia espanhol – catalão – português
Em primeiro lugar, na cuidada arquitectura do filme, contrastam as escolhas linguísticas das duas parelhas que se formam desde o início da história e que produzem, afinal, resultados tão diversos: a parelha Ramón-Rosa, e a parelha Gené-Marc. Ao começo do filme, quando Gené e Marc se conhecem em pessoa na própria costa galega, já se dirigem entre eles em catalão:
Marc: Ets la Gené, eh? Jo soc en Marc. Salut.
(Dão-se a mão)
Gené: I la Julia?
Por contra, observemos o primeiro diálogo entre Ramón e Rosa, no quarto daquele, também ao começo do filme:
Rosa: Me llamo Rosa.
Ramón: ¿De dónde eres?
Rosa: De Boiro. Vine en la bici, dando un paseo.
É conhecido na pesquisa sociolinguística que a língua utilizada num primeiro encontro entre desconhecidos bilingues pode determinar que esta, e não outra, será o seu veículo de comunicação habitual posterior. O fenómeno responde a que cada uma das pessoas desenvolve expectativas comunicativas sobre qual será potencialmente a conduta linguística do outro. A imagem do outro formada inicialmente reforça-se com interacções posteriores, e assim se mantêm as condutas linguísticas entre eles. Em Mar adentro, o facto é que o contraste na inamovível conduta linguística de cada parelha que se desenvolve durante a história tem um significativo correlato no final. A parelha Gené-Marc (catalã, catalão-falante, de classe meia, culta) produz não só língua, mas também vida: um filho. De todas as parelhas do filme, esta é a representada de maneira mais positiva. A de José e Manuela é uma família tradicional, do tipo chamado posicional (onde as relações interpessoais se estabelecem em função de claros papéis e responsabilidades), e onde o filho não mantém a língua; a parelha Julia-Esposa não tem filhos, e está condenada à morte em vida; e a parelha potencial Ramón-Rosa tampouco produz vida, mas morte. Morte desejada, mas morte.
Um segundo contraste significativo refere-se às línguas utilizadas no “mundo exterior” da sociedade no seu conjunto. Num outro estudado paralelo, tanto Ramón como Gené (ambos sentados em cadeiras de rodas, leit-motiv de todo o filme) se relacionam num dado momento com um trabalhador do âmbito da saúde. Ramón é levado à Corunha para assistir à vista oral sobre a sua demanda legal. Na porta da casa, na sua cadeira de rodas, fala com a sua cunhada Manuela em espanhol. O condutor do veículo da Asociación de Minusválidos do Barbanza e da Fundación ONCE dirige-se a Ramón quando este é subido à furgoneta:
Condutor: ¿Usted es Ramón Sampedro, verdad?
Ramón: (Assente com a cabeça)
Condutor: Ya tenía yo ganas de llevarlo, hombre.
Noutra cena, Gené chega ao hospital para dar a luz, em automóvel rapidamente guiado por Marc. Gené mantém todo o tempo uma longa conversa por telemóvel com Ramón em espanhol. Enquanto é sentada numa cadeira de rodas por um enfermeiro ou assistente sanitário, Gené continua a falar com Ramón. O enfermeiro colhe-lhe o telemóvel e passa-lho a Marc:
Enfermeiro: (A Gené) Ho sento. Tingui (dá-lhe a Marc o telemóvel).
…
(A Marc) El cotxe l’ha de (???) d’aqui, si us plau.
Com outras palavras, à margem da língua utilizada polo interlocutor cliente (Ramón ou Gené), em cada caso essa figura do trabalhador que representa uma ligação “externa” à fechada constelação de personagens do filme tem uma conduta linguística espontânea inicial muito distinta: no âmbito rural galego, um condutor dirige-se em espanhol a Ramón; no âmbito urbano catalão, um assistente sanitário dirige-se em catalão a Gené. Por se pudéssemos pensar que as escolhas dos trabalhadores estão condicionadas pola observação da conduta do cliente, lembremos que em ambos casos os trabalhadores escutam os seus clientes falarem espanhol. Seria possível imaginar uma fácil e ligeira alteração desta representação ficcional dos usos públicos das línguas na Galiza, sem qualquer custo artístico para a obra: se se me permite algo de retranca, eu tenho observado que inclusive na Galiza, algumas vezes até alguns condutores de veículos podem falar a língua do país (convenientemente legendada por mor da universalidade) com um cliente. Por contra, Amenábar optou por generalizar o uso do espanhol como língua de relação pública por excelência na Galiza até para este caso. A opção estilística tem claras implicações linguístico-ideológicas. Neste mesmo sentido, e por último, poderíamos perguntar-nos também pola opção do autor de incluir, na manifestação em favor da morte digna em frente do Palácio de Justiça da Corunha, apenas faixas escritas em espanhol. E legítimo perguntar-se se a presença de algum signo escrito em galego teria comprometido seriamente a ordem sociolinguística ficcional escolhida por Amenábar.
Resumo
A representação esquemática das condutas habituais em todo o filme é a seguinte:
O esquema deve ler-se assim: além das condutas já comentadas, as relações entre os dous grupos (o galego e o catalão) no seu conjunto são em espanhol. Duas personagens “externas”, o Condutor (Co) e o Enfermeiro (En) empregam, respectivamente, espanhol e catalão. Por simplificar, excluo a figura do Sacerdote, dos jornalistas que entrevistam Ramón, e dos juízes (todos eles espanhol-falantes).
Conclusão: Realidade e ilusão
Ramón Sampedro morre dizendo para si “Já vai. Já vai”. O português galego fica representado, sem dúvida, como a língua das suas emoções mais íntimas (na que fala, mas não na que escreve pensamento), e portanto (isso dizem) como a “sua” língua verdadeira. Mas o filme no seu conjunto destila outros subtis significados sobre as relações entre línguas, valores e identidades. E é esta agrupação de significados que matiza a sua vocação de universalidade. A temática é universal. O problema ético é universal. Os sentimentos e argumentos são universais. Mas o tratamento da temática, problema, sentimentos e argumentos é apenas um dos tratamentos universalizantes possíveis. Quando, além das questões éticas, numa obra entram em jogo (sempre) questões de classe e de outras identidades, as correlações finalmente estabelecidas entre identidades e condutas (linguísticas e de outro tipo) das personagens podem, também, saltar à palestra. E este é também o caso de Mar adentro, susceptível como toda obra dum comentário como o aqui apresentado.
A questão fundamental é que, quando uma obra ficcional contém uma ordem sociolinguística possível e verossímil, como Mar adentro, esta representação (esta tipificação) pode se impor, para a gente de fora da sociedade representada (ou para os de dentro!), como a verdadeira e existente. Quer dizer: precisamente porque os usos do galego são verossímeis (não é um filme monolingue), Mar adentro cria uma ilusão de lealdade à realidade sociolinguística galega. Por que ilusão? Mar adentro diz que na Galiza se fala também galego, que se fala no seio da família, que também os jovens (o adolescente) o fala. Mas Mar adentro também diz, se o observamos, que a universalidade do problema ético não se pode transmitir nessa língua. Que, para o problema ter um interlocutor mais universal, é necessário distorcer a ordem real e empregar (muito mais sabiamente, isso sim) o gambito dos usos simbólicos parciais de uma língua dentro do seu próprio país… só para o galego, não para o catalão. Mar adentro diz que qualquer das três línguas veicula os sentimentos. Mas também diz que a razão se exprime em espanhol ou catalão. Mar adentro diz que tanto na Galiza como na Catalunha há relações familiares espanhol-falantes. Que o espanhol é língua comum, sim. Mas que, se um quer (se uma parelha quer), pode manter uma vida e uma luta só em catalão. Se repassamos com cuidado a história do filme, nenhuma das personagens galegas fez nem fará já nunca algo comparável.
Tudo isto, sem dúvida, pode ter sido algo marginal na planificação (sempre ideológica) de Amenábar: um epifenómeno da sua concepção da universalidade. Não atribuo vontade deliberada nenhuma ao autor. Mas estes significados culturais não deixam de estar aí, sobrepostos e não necessariamente incompatíveis com os mais evidentes da obra, e é legítimo comentá-los. O direito ao suicídio e a morrer dignamente não afecta só às pessoas. Há maneiras de uma cultura imóvel morrer metaforicamente sem dignidade, e uma delas é ignorarmos nos foros públicos, por mor duma defesa da galeguidade parcial do filme, os significados sociais e linguísticos de uma obra artística notável que contém uma forma de Galiza.
Final de sequestro: Sobre o “Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega”
Publicado no volume O País na Janela. Três anos de independência informativa: Novas da Galiza 2002-2005. Lugo: A Fenda Editora (2005), pp. 23-25
Já há anos que o vocábulo “normalización” da língua foi sequestrado por sectores do poder político e intelectual galego, com bons benefícios. Mas parece que com o Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega (PXNLG) a nau sequestrada da língua entra no seu trajecto terminal, pilotada por planificadores temerários. Nesta crítica do PXNLG foco-me apenas em duas questõezinhas, como veremos totalmente marginais: (1) os próprios objectivos do Plano; e (2) o seu próprio desenho geral. Qualquer centena de medidas que saírem de objectivos e desenhos deficientes só poderá produzir resultados deficientes. Ou, antes, muito úteis para o alvo de enterrar com palavrório o assunto da língua por décadas por vir.
Entre os objectivos do PXNLG figuram garantir os direitos de “quem quiser” a desenvolver a sua vida em galego, e o de promover a expansão do idioma em âmbitos e funções sociais. Dificilmente estes objectivos podem ser considerados “normalizadores”: o direito individual a viver em galego já está reconhecido na legislação de há mais de 20 anos (o Estatuto e a Lei de Normalización). E a expansão de certos (certos) usos do idioma já está recolhida nessa mesma legislação e sustentada na própria dinâmica do país. Naturalizar um idioma não é isso, mas fazê-lo imprescindível e habitual para todos os âmbitos de uso de toda a gente, ou da imensa maioria (não só dos que “queiram”). Em todo o caso, um Plano verdadeiramente “normalizador” deveria estar desenhado para garantir o direito dos cidadãos “que quiserem” a utilizarem também o espanhol. Polo contrário, o PXNLG parte da minoração efectiva do português galego, violando assim o ditado do próprio Estatuto que o institui (descabeçado) como “lingua propia” da Galiza.
Em segundo lugar, o PXNLG ignora importantes bases sociolinguísticas que explicam o funcionamento das línguas em qualquer sociedade de classes burocratizada moderna. O Plano segmenta os usos linguísticos sociais praticamente em Sectores “verticais” por Conselharias, sobre os quais a Xunta vai intervir com inúmeras medidas. Mas a gente real não fala por sectores verticais: fala e escreve consoante o que se chamam domínios de uso com características comuns. E distinguem-se comumente dous tipos de domínios principais: o coloquial-informal, e o institucional-formal. Quer dizer: os indivíduos relacionam-se ou entre eles, ou com representantes das instâncias formais e institucionais (como clientes, administrados, pacientes ou discentes).
No seu anti-sociolinguístico zelo tecnocrático, o PXNLG reúne aberrantemente por exemplo os âmbitos institucional do ensino e informais da família e das redes de amizade entre jovens, no Sector Educación, Familia e Mocidade. Um calculado subproduto deste desenho é minimizar a questão central a qualquer plano de normalização: a transmissão intergeracional da língua na família, e a sua consequente manutenção nas redes de amigos. Um desenho realmente comprometido com o idioma teria priorizado este campo, em torno do qual se articulariam os demais. Porém, a área Família só contempla 9 medidas, das quais apenas 3 são específicas à intervenção no próprio grupo familiar. Não surpreende então que os “pontos fortes” e “pontos débeis” (“puntos débiles”) da situação actual do idioma no seio da família (pp. 70 e 71) sejam uma réstia de inconsistências. Entre os “pontos fortes” conta-se, por exemplo, que “O galego aumentou considerablemente o seu prestixio social nos últimos 25 anos” (?), enquanto um dos “pontos débeis” é a “Escasa valoración da lingua galega no seo familiar en termos de identidade, de utilidade e de prestixio social”! Quer dizer: o galego tem mais prestígio social, mas as famílias (a gente) pensam que não. Uma lógica conclusão possível é que o galego tem grande prestígio social entre as pessoas solteiras e os eremitas. Além, a concepção da utilidade da transmissão da língua na família é puramente instrumental, como veículo vagamente identitário e/ou cultural, não como recurso económico para o avanço social. Assim, um dos objectivos é “sensibilizar” as famílias para os filhos se instalarem no galego e que assim “poidan acceder despois a outros idiomas”. De forma semelhante, o Sector “Sociedade” reúne também âmbitos de uso pertencentes ao domínio informal, e outros ao domínio formal.
Um comentário do rosário de medidas propostas levar-nos-ia muito longe. Algumas são tão peculiares que dariam para uma dessas mensagens de humor que circulam pola Internet. Tomemos como amostra esta, dirigida aos turistas: “Editar uns folletos cuns mínimos rudimentos da lingua galega (conversación) e da súa historia. E incorporalos á cadea de promoción turística”. Minha cunhada trouxe-me um dia da ilha de Curação uma camisola azul barata com frases em papiamentu, como Bon tardi, Bon bini ‘bem-vindo’, ou Mi ta stimabo ‘eu te amo’. Por isso o papiamentu é língua nacional.
Em resumo: a atomização “vertical” na concepção dos usos linguísticos, e a falta de priorização de Sectores e medidas pretensamente apropriadas fazem do PXNLG um produto confuso e irrealizável. Como em todos os projectos incontinentes, algumas medidas se cumprirão, outras não. Por exemplo, pode-se dar o caso de que se cumpra a medida final para a Proxección Exterior da Lingua, “Facer do ballet galego Rey de Viana un embaixador da lingua galega en todos os seus espectáculos” (sic), enquanto fiquem sem ser cumpridas as orientadas a impedir a perda intergeracional do idioma. A concepção directora do Plano é que o português galego não é nem pode ser língua nacional, mas um direito voluntário. De facto, em muitos aspectos o PXNLG é o mais antitético imaginável a um projecto de “normalização”.
Polo contrário, haveria que olhar para aquelas sociedades onde a língua cumpre com efeito as três funções básicas: recurso económico para o avanço social nas sociedades de classes, recurso comunicativo para a coesão social, e recurso simbólico para a identificação colectiva. Neste sentido, o modelo mais próximo para a Galiza é sem dúvida aquele onde a língua é normal, natural e nacional: Portugal. Não pareceria tão difícil mudar o chip, se não fosse porque o chip espanhol da elite galega é muito forte. Quando se sequestra uma nau durante muito tempo, depois todo mundo esquece aonde se dirigia inicialmente. Às vezes os aviões sequestrados sobrevoam países até que se lhes acaba o combustível e aterram em qualquer lugar remoto. Este Plano está desenhado para aterrar em qualquer lugar, esfarelado, e ficar nos hangares para sempre.
A transmissão da língua na família e nas classes
Publicado no Portal Galego da Língua
Se, como se descreveu num texto anterior ( “‘Osmose’ e redes sociais na transmissão da língua’: O papel dos locais sociais” ) a língua é um recurso (cultural, simbólico, material) que se transmite e circula por redes sociais, a pergunta básica é como abordarmos a sua transmissão nas redes centrais na organização do corpo social: a família. A família é a estrutura que reproduz (em vários sentidos da palavra) a hierarquia. As sequelas da família como experiência duram toda a vida, até gerações: arrastamos os cadáveres familiares como os povos arrastam a sua história. Nações inteiras arrastam o seu cadáver, até que o fedor pesa de mais e uns iluminados cortam o saco vitelino dos mortos e nasce algo novo. Quisera poder dizer que a transmissão da língua galega portuguesa que no nosso país está a perder o apelido é algo crucial para a emancipação social. Mas provavelmente não o seja. A transmissão intergeracional da língua, e a sua necessária revolução formal, são simplesmente sintomas de resistência. Quando um colectivo é incapaz de levar adiante o seu ideal, algo substancial fracassa. Não é obrigatório que essa utopia seja assumida por todos ao começo: pode-se construir nação dentro da nación, língua dentro da lengua e da lingua, e resistir confiando que os cépticos que ficaram fora escolham esta opção como a menos má para a sua pervivência. Mas, como fazer isto, desde que âmbitos, com que tácticas sociais, com que discursos? Eis a múltipla pergunta que nenhum activismo linguístico da Galiza aborda na altura, provavelmente porque não sabe como.
Ignoro muito sobre a estrutura social da Galiza e sobre a própria estrutura da família como para oferecer, até para mim próprio, qualquer dica plausível sobre essas perguntas. Mas alguns fáceis razoamentos sobre as relações entre língua e sociedade, e algumas fáceis metáforas, podem ajudar a compreender a situação.
Nas sociedades de classes, a língua é sempre um instrumento para o que se deu em chamar “avanço social”. O “avanço social” consiste simplesmente na mobilidade social ascendente, que se dá quando, na hierárquica geometria da sociedade, um próprio ou, sobretudo, os seus filhos, chegam a alcançar uma situação “mais alta” em termos de recursos económicos, capacidade aquisitiva, reconhecimento social e símbolos de status. Estes recursos (dinheiro e símbolos) são de distinta natureza e circulam de maneiras distintas, mas no circuito de mercado -explica Pierre Bourdieu- são até certo ponto formas intercambiáveis de capital: eu exibo língua (uma língua dada), e obtenho posição social. Como, exactamente? Uma via é através do valor de troco específico da Língua (reflectido, por exemplo, em títulos académicos de valor estandardizado) em certos âmbitos ocupacionais (ensino, burocracia, serviços de tradução, “indústrias da língua”, etc.). Outra via muito importante é através do reconhecimento dos outros, em redes específicas, da minha exibição de Língua como símbolo legítimo, e, portanto, através da abertura de possibilidades de trabalho, casamentos “ascendentes”, etc.
É lugar comum dizer que, na Galiza, a aculturação e assimilação à língua espanhola (que chamarei La Lengua para não confundir-nos) têm funcionado segundo esta lógica desde, polo menos, começos do século XIX: a perda de falantes de galego explica-se comumente como um processo polo qual La Lengua foi “descendo” desde as capas altas (burguesia – classes meias – classes trabalhadoras), que tentavam emular e aproximar-se das superiores. Mas esta explicação não pode dar conta de tudo do que está a acontecer. Como pode “baixar” socialmente uma língua desenhada para subir? Acho que algo falha ou algo falhou ao longo do processo, e tentarei expor por quê.
Distingamos, em primeiro lugar, os âmbitos rural e urbano. No âmbito rural, relativamente imóvel e estável durante séculos em termos de sistemas ocupacionais e de relações entre as estruturas sociais básicas (família e paróquia), o uso do galego era exclusivo ou muito dominante nas redes sociais densas (muitas pessoas interligadas por contactos frequentes), fechadas (sem novas incorporações habituais à rede) e multiplex (ligações estabelecidas em função de múltiplos tipos de relação social). Assim, o indivíduo A relacionava-se com B em galego porque eram simultaneamente membros da mesma família, do mesmo grupo de trabalho na exploração rural, da mesma paróquia. As fortes funções relacionais da língua no seio da família transferiam-se assim às redes do trabalho ou da paróquia. O objectivo do ascenso social limitava-se a melhorar as condições económicas de geração em geração, a enviar algum filho ao exército ou ao sacerdócio, ou a emigrar. Mas não havia verdadeiramente muitas expectativas de “avanço social” a meio de uma Lengua espanhola que era materialmente estrangeira e, além de uns poucos usos rituais, materialmente desconhecida.
Com a urbanização (desruralização), porém, vão-se modificar substancialmente as funções relacionais do galego e da Lengua espanhola. Na cidade interage-se sobretudo em redes abertas pouco densas (contactos mais ocasionais) e simplex (relacionamo-nos com alguém em função de apenas um tipo de papel social: amigo/a-amigo/a, empregado/a-chefe/a, etc.). E a língua neutra por excelência para estas redes urbanas é o espanhol. A emigração à cidade significa a possibilidade de “avanço social”. E para avançar não só há que falar espanhol, mas, sobretudo, há que falar espanhol aos filhos, na esperança, tipicamente, de que os varões consigam um trabalho melhor e de que as mulheres “casem bem” (em inglês diz-se “casar para acima”, to marry up), quer dizer, casem com um membro dum estrato superior que já fala espanhol (é reconhecido o papel mais avançado das mulheres na mudança sociolinguística, até para -evidentemente- a assimilação à língua dominante). Portanto, para estes propósitos, no novo âmbito urbano pode-se manter em galego a comunicação “horizontal” entre pai e mãe, mas a comunicação “vertical” entre pais e filhos deve ser em espanhol para estes adquirirem os recursos dos quais os primeiros carecem.
Ora bem, se este mecanismo de ascenso e selecção social funcionasse na Galiza (se La Lengua tivesse sido e fosse um instrumento para o “avanço social” ascendente), realmente não se estaria a dar a situação actual, com tal penetração maciça do espanhol nos estratos baixos. É paradoxal que uma língua dominante “baixe” quando a sua função social é facilitar que a gente “suba”. Tentarei de expor uma explicação possível a este aparente paradoxo.
Numa sociedade galega com mobilidade social real, idealmente, se a maior parte dum estrato ou classe galego-falante inicial educasse os seus filhos em espanhol para emular as classes urbanas superiores e para permitir os seus filhos se relacionarem em (fictícia) igualdade com elas, é de imaginar que muitos destes filhos ascenderiam socialmente: obteriam trabalhos melhores, ou “casariam bem”. Agora as classes meias, já espanhol-falantes, seriam algo mais largas. Mas como a mobilidade social continua “para acima”, os estratos superiores das classes meias espanhol-falantes também ascenderiam. Quanto mais arriba, mais acumulação de capital (de vários tipos) se dá, mas não mais Lengua. Assim, o resultado da função mobilizadora ascendente do espanhol poderia ser uma ligeira ampliação das capas meias espanhol-falantes, mas não uma acentuada penetração da Lengua para “abaixo”, pois o grosso dos falantes desta língua (La Lengua) estariam de cada vez mais “arriba”.
Continuando com a idealização, uma minoria das classes trabalhadoras assimiladas ao espanhol não ascenderiam, claro, e manteriam o status dos seus pais, mas falariam já espanhol. Mas o influxo galego-falante do campo à cidade deveria manter em proporções mais ou menos constantes a distribuição das línguas no seio destas classes trabalhadores: maioritariamente galego-falantes. (Além, não todo mundo se assimila: continuaria e continua a haver galego-falantes que transmitem o galego na família). Porém, evidentemente a distribuição estável por classes não é o caso actual: não há nem manutenção da língua nas classes trabalhadoras, mas perda gradual. No âmbito urbano, o uso do galego com os filhos é terrivelmente minoritário em todas as classes sociais. Mesmo entre os pais, as cifras de galego-falantes são muito baixas.
Portanto, por que não se dá a situação típica de função da Lengua para o ascenso social? Será porque as classes meias assimiladas e já espanhol-falantes “descem” de status de geração em geração? Ou será, antes, porque, apesar da tentativa de ascenso através do idioma, as classes originariamente galego-falantes que se assimilam simplesmente não ascendem? Os pais educam os seus filhos em espanhol para lhes fazer a vida social mais fácil. Mesmo quando a língua da casa é o galego-português, a vida na escola, claro, faz com que os meninhos adquiram o espanhol como língua de relação com seu grupo geracional. Mas os filhos, relativamente falando, afinal não ascendem socialmente. Alguns poderão ter, em termos absolutos, mais recursos e uma vida mais cómoda do que os pais. Mas, como grupo, vão ocupar o mesmo lugar social subalterno relativo e ocupações comparáveis às das gerações passadas. Não “baixa” o espanhol não: deixam de “subir” os novos espanhol-falantes! La Lengua prometida oferece-nos um famoso provérbio que resume cruamente esta situação: Aunque la mona se vista de seda, mona se queda. Esta miragem de falso ascenso social através do idioma reproduz-se em todos os níveis. E os poucos galego-falantes que ainda mantendo o idioma ascendem, não fazem massa suficiente como para se constituir em pontos de referência social para a emulação de condutas por parte dos que permanecem em estratos inferiores: a experiência dos galegófonos “com sucesso” também é excepcional, não paradigmática dum processo social.
Portanto, a causa primeira da perda acelerada do idioma na Galiza não é o próprio mecanismo nocivo e universal de selecção social a meio do idioma: é a falta de mobilidade social real, de dinamismo económico (e disto há dados macro-económicos evidentes), até dentro da lógica capitalista. A lógica capitalista na Galiza leva décadas, se não um par de séculos, a jogar com o famoso fraude comercial da “pirâmide” a grande escala: oferece socialmente investir em Lengua prometendo o ascenso, mas os que ascendem já tinham Lengua e posição alta de antemão.
Em contraste, em qualquer sociedade verdadeiramente “de mercado” onde existe dinamismo, grupos sociais definidos e coeridos por cultura, origem e/ou língua podem chegar a construir o que se chamam sistemas ocupacionais próprios: redes económicas, comerciais, empresariais levadas por membros do grupo, com reprodução da divisão vertical do trabalho, com elites ou proto-elites, com hierarquias sociais internas (como de facto ainda se dá no âmbito rural), com alianças comprometidas entre elas, e portanto com potenciais económicos que se estendem além das fronteiras da “minoria”. São estes grupos que podem ameaçar as “essências nacionais” dominantes, porque os estratos inferiores não precisam emular as condutas das elites da cultura hegemónica: já têm as próprias. Em certas zonas dos Estados Unidos, por exemplo, a língua espanhola chegou nos últimos anos a constituir-se em “ameaça” para a anglofonia dominante (até o ponto de se promulgarem leis restritivas tipo English Only) só quando os hispanos imigrantes e filhos de imigrantes (e descendentes de populações hispano-mexicanas originarias antes da anexação polos EUA) chegaram a constituir, com os instrumentos da sociedade de mercado, sistemas ocupacionais próprios coeridos pola origem, cultura e língua comuns. Não me refiro ao caso (também excepcional) do Miami dos cubanos exilados ou auto-exilados, mas ao de cidades como San Antonio, em Texas. Por contra, mencione-se na Galiza algum sector económico (além da indústria editorial e editorial) onde a língua de relação seja o galego-português, onde trabalhem maioritariamente galego-falantes, onde se dê “lealdade” em termos de alianças económicas endógenas , e onde tanto a força de trabalho como a do capital falem em galego e falem aos seus filhos em galego. Mencione-se algum fragmento de cidade galega onde se poda dizer que, económica e socialmente, isso é a Galiza, não España. Compostela, tal vez? E essa é Galiza, ou “Galicia”?
Em resumo, sem sistemas ocupacionais próprios galegófonos, lusófonos, onde as gentes trabalhem, sejam contratadas e se relacionem em função de relações próximas, familiares, de vizinhança, etc., e que funcionem com capital “galego” e identificação “galega”, as poucas experiências das empresas “galeguistas” (as que se apresentam “graficamente” como tais) ficarão em ilhas folclóricas que emitem as facturas em dialecto, sim, mas nas quais a língua que continuará a ser um vínculo e um recurso é La Lengua. E essa é na prática a língua nacional (la lengua nacional, evidentemente), não o totem idealizado e ideologizado do Galego.
Qual a tarefa, então? A tarefa é expandir essas redes urbanas de classes meias (comerciais, pequeno-burguesas) lusófonas, quer dizer, abrir uma cunha social ascendente que, como a famosa faixa central da “língua sande” que é o catalão (comprimido tradicionalmente entre duas talhadas de pão espanhol: uma, a alta burguesia e aristocracia urbanas hispanófilas, e outra as classes trabalhadoras imigrantes), sirva de ponto de referência para o avanço social. Não são as Zaras as que fazem país, mesmo se fossem galego-falantes: é o famoso tecido social e económico urbano. Estamos (se estamos!) polo menos vinte anos por detrás de países como Catalunha nesta tarefa. E é duvidoso que a Galiza poda fazê-lo com a força económica própria, sem relacionamento efectivo transfronteiriço com as redes económicas lusófonas onde a língua (quer dizer, agora sim A Língua) sim que funciona -dentro da aborrecível lógica que faz as nações- como instrumento para o “avanço social”: Portugal.
Em definitivo, é o âmbito da família, como principal canal de transmissão intergeracional da língua, que o activismo linguístico lusófono deve abordar com uma seriedade que até agora está ausente. Mas tentei dizer que a “família” é sobretudo um agregado primitivo de corpos cinzelados para o trabalho assalariado: uma fábrica que fabrica operários a base de Cola-Cao. E a “família” falará a Língua que lhe prometa, eleitoralmente (nacionalmente), o pão para os filhos.