Unidade, unidade, unidade

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“Por qué construir e defender desde o poder autonómico e desde a Real Academia Galega un galego diverxente das variantes faladas por 200 millóns de persoas en catro continentes entanto que se celebra en Rosario a universalidade e a unidade dun castelán calificado como infinitamente diverso?. Que razóns linguísticas poden xustificar este diferente critério político?. Por qué no castelán sí e no galego non?”

Camilo Nogueira, “Infinita variedade”, em Vieiros, 29-11-2004

Precisamente: Por que no castelhano/espanhol sim, e no galego/português não? Por que não praticam todos os defensores e defensoras da unidade linguística galego-portuguesa o que defendem? Por que é tão distinto o galego do argentino, ou do neo-zelandês, ou do quebequense, ou do valenciano, ou de tantas outras variedades que compartilham uma norma culta com outras variedades da língua comum? Que tem de especial o galego? Que têm de especial os galegos para não poderem aprender e praticar a sua língua, a segunda língua da România?

“Por qué o castelán pode ser nacional e internacional e o galego non?” (Camilo Nogueira, “Infinita variedade”).

Precisamente: Que se interpõe, na Galiza, entre o desejo e a realidade da língua comum, entre a ideologia e a prática da língua comum, na sua ampla variedade? E por que isto se interpõe só para algumas pessoas? Por que um galego não pode ser simultaneamente nacional e internacional na sua língua galega, portuguesa, como um castelhano é simultaneamente nacional e internacional na sua língua castelhana, espanhola?

Por que o galego-português não pode desfrutar da “diversidade como virtude, sen necesidade de gramáticas diverxentes, nen siquer de ortografías diferenciadas”? (Camilo Nogueira, “Infinita variedade”).

Precisamente: Por que centenas de pessoas que defendemos a unidade da segunda língua da România já escrevemos como escrevemos, enquanto outras pessoas que dizem cousas muito semelhantes não?

Até quando, até onde, deveremos ocupar-nos em decifrar a contradição? Até quando, até onde, deveremos continuar sem o valioso apoio e exemplo de algumas pessoas para o projecto da língua comum para a Galiza? Até quando vamos manter sequestrado o projecto da unidade, enquanto a língua de España cresce casa adentro?

Eucaristia

Publicado em Vieiros • No Blogue de Esquerda

O fedor dos corpos apodrecendo começou a fazer-se insuportável quando não havia ninguém para os enterrar. Nos pequenos jardins dos pátios interiores, os débeis sobreviventes cavaram fossas orientadas para Meca até que nem os seus braços aguentavam o trabalho. Por fim, a última pessoa viva da família aguardava num canto escuro da casa a entrada dos soldados estrangeiros com enormes botas, berros e palavrões de salvação cristã. Meninhos magros bebiam água suja dos esgotos, comiam farinha crua, descompunham os seus ventres em qualquer lugar enquanto enxames de helicópteros sobrevoavam as ruínas da cidade. Extramuros, polindo fuzis e tanques, grupos de cruzados entoavam canções ao Salvador, oravam força para o combate. Dentro dos muros, abraçados a fuzis e lança-granadas, mujahedins entoavam canções ao Salvador, oravam força para o combate. Alá era grande e Deus era grande, e polo Leste, polo Oeste, exércitos de esfarrapados que comiam farinha nas ruas furadas da cidade deixavam as famílias para se unirem aos exércitos de suicidas. Porque não havia nada que perder. Nem que ganhar.

Fallujah é apenas um dos nomes actuais que compõem o rosário de massacres em que consiste o latrocínio. Fallujah são três sílabas metafóricas. Anos mais tarde, quando continuemos a redigir estas crónicas desde a velhice que se impõe como uma cobra (depois de décadas de perceber o fracasso, depois de décadas de não querer termos nascido aqui para, simplesmente, ficarmos em frente do ecrã e gritarmos contra todo tipo de mortes), Fallujah lembrará-se clandestinamente entre as poucas pessoas videntes que ainda existam. Mas Fallujah já nunca se poderá conjurar. Como tantos outros lugares na Palestina, nas Américas, no Camboja. Em Mauthausen. Em Cabul. Em Burundi. No Kosovo. Em Sarajevo. No colapso das torres de Nova Iorque. Num comboio de Madrid ou Moscovo. Numa escola da Ossétia. Em todo Nagasáqui. Não há possível comparança para estes nomes. Não se trata dum cômputo de cadáveres: nego-me a justificar rios de sangue com oceanos de sangue, ou o contrário. A quem agora esteja a fazer o cômputo das mortes de um e outro lado, que são o mesmo lado, lembro-lhes o procedimento da metralha nas entranhas: entra tão feroz e tão ardente que a dor não se nota. Em poucos segundos o sangue detém-se nas artérias, o coração pára. Alguém pode contar o que é sentir o próprio coração parado? Provavelmente nuns instantes transcorre toda a vida desgraçada de uma pessoa perante a olhada agonizante. Nesse momento a mente pensará no porquê de tudo isso. Verão-se mitologias salvadoras, túneis de luz ou paraísos. Verá-se um outro inferno, tão semelhante ao quotidiano. E depois mais nada: só uma outra cavidade na consciência dos restantes. Multipliquemos a morte, e multipliquemos assim a vesânia. Mas cada cadáver é idêntico: a maior aberração de que a espécie humana pode ser agente. Cada cadáver morre exactamente no último segundo. E depois absolutamente nada.

Porque os cadáveres de um lado e os cadáveres do outro lado apodrecem exactamente no mesmo lado: no lado escuro da História. São os assassinados por Deus, o carrasco intraduzível. O cadáver de Fallujah é produto do deus imperial que o mundo leva dentro. Acabar com deus consiste em recuperar, íntima e definitivamente, o lugar da espécie humana no planeta. Não um destino transcendente, não um alvo pré-escrito: sim uma utopia contingente mas de todo necessária, a revolta quotidiana que só pode ser fruto do mais elementar raciocínio. E Fallujah é um pesadelo. Ainda um outro pesadelo. Ou acordamos, ou os próximos cadáveres cairão cada vez mais perto, nos portais das nossas casas esfregados por umas moedas com semanal lixívia, dentro dos frigoríficos onde coabitam os nomes de alheias beberagens, nas nossas estantes rescendentes a madeira onde repousam as veneradas sentenças dos poetas. E os mortos petarão à nossa porta e colunas de sangue salpicarão o nosso limpo ecrã e não poderemos nem escrever esta raiva. E então, de joelhos, prepararemos água de esgoto para beber e farinha crua para comer, sangue e corpo de profeta armado, em obscena eucaristia.

Polo menos perdeu Kerry

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Estou meio contente com o resultado das eleições presidenciais dos EUA: Polo menos perdeu Kerry! Confesso que estaria algo mais de meio contente (por exemplo, 51%) se tivesse perdido Bush. Mas, sinceramente, é um prazer contemplar a derrota dos poderosos, embora esta signifique a vitória de outros poderosos.

Roubo a ideia de uma entrevista com um politólogo árabe, cuja referência na Internet já não sou capaz de encontrar. Quando entrevistado sobre a percepção das eleições EUA no mundo árabe, ele disse mais ou menos: “Nós gostaríamos é de que perdessem os dous, Bush e Kerry. Infelizmente, isso não pode ser. Polo menos temos a certeza de que ambos não vão ser presidente”. Ainda bem! Imaginemos por um momento um matrimónio (bom, uma “união civil”) entre o messianismo evangélico dos oleogarcas suleiros de Bush e o catolicismo dominical dos industriais “liberais” costeiros de Kerry, a governarem em sanguento tandem os destinos do mundo. Agora, polo menos perdeu um deles! E o outro, asseguro-vos, a nós não nos vai matar. Vai matar iraquis. Vai matar sírios e sírias. Vai matar iranianos. Vai matar soldados norte-americanos. Assim nós continuaremos a ter gasofa para ir celebrar a outra cidade a ponte da Imaculada Constituição, ou o Dia da Pátria do Apóstolo de Espanha.

Contemplar a derrota dos poderosos, confesso-o cristãmente, é uma sensação reconfortante. Calculemos quantos milhões de dólares caíram em ilusões eleitorais perdidas. Quanta lágrima genuína dos ingénuos que colavam cartazes eleitorais, quanta lágrima de crocodilo dos engana-bobos que ordenavam colar esses cartazes conhecendo perfeitamente o jogo. Dá vontade de dizer-lhes, com vedranha retranca: “Picaches, laraches, que tunda levaches”. Porque a derrota dos poderosos não pode ser nunca a nossa derrota. E, embora a derrota dos outros poderosos nos pudesse fazer um chisquinho mais contentes, sinceramente jogar o jogo não adianta nada. Nada.

A realidade é muito mais cruel, mais crua, como o cru: A realidade é que o grande capital tem agora a oportunidade de ré-iniciar o Experimento do mal chamado “neo”-liberalismo selvagem (não há nada “neo” sob o sol do capital: é, em todo o caso, um regresso às suas origens, que nunca faleceram) no Iraque e talvez Síria, e talvez o Irão. O politólogo As’ad AbuKhalil informa hoje mesmo (3/11/04) no seu blogThe Angry Arab News Service” que representantes do governo dos EUA solicitaram da Fundação Getty de Nova Iorque “indicar com precisão onde se encontram todos os principais jazimentos arqueológicos do Irão”. Será para salvá-los das próximas bombas?

A jornalista Naomi Klein explica lucidamente no seu artigo “Bagdade Ano Zero” (Harper’s Magazine, 24 Setembro 2004) os detalhes deste plano de conquista económica no destruído Iraque: a venda literal e ao cento por cento das velhas indústrias estatais do país a qualquer fonte de capital estrangeiro, e a instauração dum verdadeiro paraíso liberal. Por exemplo, no Iraque actual, até o concreto para a (escassíssima) reconstrução (sobretudo da “zona verde”) chega do estrangeiro, quando sairia dez vezes mais barato produzi-lo no país. As brigadas da “resistência” e da “insurgência” iraquiana estão compostas em grande parte de desempregados, desfarrapados, desapossados depois da gigantesca “redução de plantel” que significou a guerra e invasão do Iraque: centenas de milhares de pessoas sem mais oferta de trabalho que unir-se à polícia ou ao novo exército. E, para um exército, outro exército, que raios. A gente não é toda fanática, nem acha de menos Saddam, nem farrapo de gaitas: querem é ter um trabalho numa economia “estável”, como é sempre o inferno des-reconhecido do Capital.

Por isso veremos ainda mais guerras, mais experimentos. Choraremos genuinamente o sangue que não cessa, e choraremos com lágrimas hipócritas toda a cultura que será destruída. Haverá alti-baixos na conquista ocidental do petróleo. Mas, da minha modesta ignorância, sugiro: não se engane ninguém. Ontem saiu derrotada nos EUA apenas uma versão menos selvagem do capitalismo, como na Espanha (aparentemente) saíu derrotada em Março a mais feroz. (Neo)liberais contra intervencionistas, Esperanzas Aguirres contra Gallardóns, Núñez Feijóos contra Palmous, e Solbes com todos: esse é jogo das vitórias e as derrotas.

Pola nossa parte (das pessoas que, espero, ainda pensamos) não há maior derrota do que acreditarmos que é nessas batalhas que se deve dirimir o mundo, que é a política, que é a utopia razoada de que falou Bourdieu. Estaremos vencidos se nos alegramos das suas vitórias eleitorais, não dos seus fracassos. Eu só exijo, minimamente, que deixem de roubar também a minha força de trabalho para os seus votos: que me dêem de vez o mais-valor roubado, que caralho, que quero um computador mais rápido, uma outra caixa de plástico feita do seu petróleo.