A nação das mulheres

Enviado a Faro de Vigo; não publicado

A todas as mulheres assassinadas. Com a minha culpa como homem.
Com desculpas polo meu atrevimento e pola dureza deste escrito

O caçador diminuiu a marcha e detivo o camião poucos metros mais atrás. Sabia que uma fêmea assim, separada da manada, não se devia deixar escapar facilmente. A Lei era clara neste sentido: Qualquer exemplar solto, sem marcar, é propriedade de quem o capture. As fêmeas assustam-se facilmente com o ruído dos motores. Nessa hora da manhã o resto da manada abrevava ou estava ainda por acordar. O caçador desceu do camião e prendeu habilmente a fêmea sem que esta pudesse fazer nada. Botou-na na caixa do camião, amarrou-lhe as patas, fechou as portas rapidamente para apagar os ruídos de queixa da presa. A Lei é explícita neste sentido: O gando sem marcar será propriedade de quem o capture. Às vezes é mais produtivo revender a fêmea ao seu antigo proprietário. As negociações polo preço podem durar meses. Alguns homens caçam a sós, outros ocasionalmente em grupo, quando voltam irmanados dos lugares de encontro e topam com uma fêmea isolada na curva de uma estrada. Baixam do veículo e rodeiam-na, sobem-na, mantêm-na tranquila com suaves vozes aprendidas secularmente para apaziguar animais enquanto se dirigem a um lugar escuro. Outras vezes, o caçador sofre tanto de soidade que precisa utilizar a fêmea sem revendê-la. A noite é demasiado longa num veículo ou alpendre isolado. O caçador tem direito a utilizar o que é seu. Logo do uso sacrifica a fêmea e bota-a ilegalmente entre arbustos. O caçador volta polo alvor à casa. Quando tem sorte, aguarda por ele uma esposa de olhos abertos com um café de amor nas mãos. Quando não, diante do caçador há só um televisor ligado que transmite incessantemente feiras de gando numerado, fortes e formosas fêmeas para o comércio mundial. A Lei é boa e justa para os homens que a votam, a Lei é clara: Os meios públicos devem promover a Economia, o Culto, a Ordem. A Lei é coerente.

Até à hora do sol-pôr o caçador come produtos democráticos enquanto contempla as mostras numeradas das feiras. Vê passar muitas fêmeas fortes e formosas polo ecrã. O caçador súa de soidade. Nas pausas comerciais onde se oferecem mais fêmeas, o caçador dá brilho às suas armas: o laço da palavra, o rifle masculino. Ao cair a noite o caçador está de novo preparado. Fecha a sua cabana. Ou sai despedindo-se levemente de uma esposa de amor sem pentear. O caçador prende o camião, e marcha. Mas hoje está confuso. Leva tantos anos a admirar tantos exemplares numerados fortes e formosos que está confuso. Primeiro precisa percorrer a sós estradas solitárias, e pensar. Pensar, pensar. A Lei é boa, a Lei é clara: Toda fêmea que não tem marca é de quem a caçar. Mas o trabalho não é fácil. Ninguém compreende a imensa tristeza dos caçadores solitários. Por algo a maioria dos homens preferem ser proprietários. De quando em vez um proprietário sacrifica uma fêmea que já não era produtiva, ou que fugira por um injusto instinto, desagradecida de tantos anos de ser alimentada e protegida. Mas as fêmeas fugidas polos arrabaldes sempre deixam um rasto de cheiro que o proprietário reconhece e segue. Afinal, o proprietário alcança a fêmea e sacrifica-a com gasolina para que deixe de fazê-lo sofrer com a sua ausência. O caçador pensa que tal desperdício de fêmeas é injusto. O caçador pensa tudo isto enquanto sulca a planície da estrada, o corredor ladeado por um desfile de fêmeas fortes e formosas para a caça. Já é noite fecha.

A última vez o caçador também botou o cadáver da presa à beira-rua. Ocultou-na entre as sebes, deixou que as alimárias aproveitassem o seu corpo. O caçador está preocupado, a Lei é explícita neste sentido: O cuidado do meio-ambiente é imperativo para a Economia. O abandono de cadáveres utilizados está fortemente castigado. O caçador observa uma Patrulha da Moral Ecológica mais adiante. Os patrulheiros fazem sinais com luzes. O caçador diminui a velocidade. Passa devagar junto a eles. O caçador e os patrulheiros saúdam-se, fitam-se serenos nos olhos. É evidente que os três homens são honrados trabalhadores da Economia. As suas olhadas são limpas. Cada um tem a sua função na manutenção da Ordem. Quando uma fêmea marcada escapa e acaba refugiando-se por cansaço nos Locais da Patrulha Ecológica, os patrulheiros devolvem-na ao seu proprietário. É natural. A Lei é explícita neste sentido: A propriedade privada deve estar sempre vigiada. Então os patrulheiros acompanham a fêmea à casa do proprietário. O proprietário abre-lhes a porta, recolhe agradecido a sua pertença, assina algum Recebim necessário. No televisor do fundo vê-se a Mostra Mundial de Gando. Os patrulheiros e o proprietário trocam cúmplices olhadas perante tanto exemplar forte e formoso. A fêmea recuperada lambe docilmente a mão do proprietário. O caçador pensa tudo isto, pensa, pensa. O caçador sabe que os patrulheiros, os proprietários e ele mesmo trabalham por uma única Ordem, polo mesmo Culto e a mesma Economia. Às vezes o caçador quisera ser proprietário. Às vezes um proprietário também se faz caçador, por não perder uma tradição ou por cansaço da rotina. Às vezes um proprietário aluga as suas fêmeas a caçadores ou a outros proprietários. A Lei e a Economia favorecem esta mobilidade social entre os homens, é necessária. A Ordem é precisa, justa, exacta.

A nação das mulheres é um território imenso que não conhece siglas, nem fronteiras, nem bandeiras, nem dinheiro. É a maior nação do mundo, colonizada, sequestrada, invadida, escravizada, mutilada e assassinada diariamente num inenarrável circo de sangue de tal crueldade que fixo a deus suicidar-se há muito tempo. Cada dia os caçadores matam todos os cérebros do mundo, toda a humanidade, e cada dia a vesânia volta a ressuscitar numa notícia de rádio. Eu sei isto porque sou varão e como tal também levo dentro uma indesejada arma de ódio, e também tenho poder, e dia a dia combato contra um cancro na minha mente que me ordena matar a mente da humanidade, matar a nação das mulheres. E estou convencido que eu também, de maneiras diversas, contra a minha própria vontade, dia a dia contribuo para matar essa imensa nação enquanto luto por deixar de matá-la.

Mas a nação das mulheres erguerá-se contra a loucura e contra o ódio. Pouco a pouco, com a firmeza da razão humana, com a justeza da razão humana, e contra a resistência dos varões, dos estados masculinos e dos escravistas da carne, a nação das mulheres imporá a utopia da igualdade, que é o lugar onde nasceu e aonde deve chegar a humanidade. E cairão os ídolos e desaparecerão os caçadores e as presas, e os proprietários, e aqueles homens monstruosos e miseráveis vagarão sem armas num horrível desterro polos caminhos da mente que agora ainda cheiram a sangue e gasolina e não deixam dormir.

A nação das mulheres não é apenas um nome sonoro para descrever o mundo: é o nome da assembleia humana que leva milénios em jogo. Maldigo a história enquanto aguardo esperançado a que se erga dia a dia a voz universal da igualdade, o reconhecimento definitivo de tanta humilhação e crime, a compensação final por este longo genocídio.