Hospital do Reino

Cheira a hospital. Nos arrabaldes da Espanha cheira a hospital sujo, barato, de corredores onde sobrevivem durante décadas os mesmos eivados. A luz dos hospitais de urgências é sempre cansa, mais amarela, incapaz de chegar até ao final do percorrido. As ruas da Espanha são os corredores deste hospital barato: vencidos prédios provisórios onde ardem de frio os refugiados. No último dia do ano cheira a esse formol usado dos hospitais de campanha, que são sempre os desta guerra. E os cirurgiãos percorrem rápido os corredores a amputarem velhas mãos que já não trabalham, a alimentarem com elas os distantes cemitérios, sempre distantes da terra onde nascera o corpo. Os uniformes dos cirurgiãos e os dos soldados, e os dos capatazes, e os dos catedráticos, e os dos financeiros, e os dos generais, são todos iguais sob a luz negra da pobreza. E os uniformes correm entre as salas de urgência deste hospital que é um reino em sombras. A luz da Espanha é um mito. Os eivados e idosos aguardam nas beirarruas da metrópole, e os soldados baixam das ambulâncias e amputam as mãos e a língua, como então, como sempre, como sempre que existe um antigo hospital de campanha que é um estado em ruínas. E os cirurgiãos botam os restos amputados no calabouço ou no fundo das usinas, dia e noite, noite sem dia nos camarotes de urgência. E os velhos pervagam polas ruas do hospital com a esmola de poucas moedas enrugadas, em irregulares batas sem lavar, e as mães solitárias prematuramente mirradas rebuscam no lixo urbano restos de órgãos para comerem na última noite do ano, como se acabasse o mundo entre as bombas que continuam a cair. Cheira a hospital em guerra, e é difícil afastar esta tenra náusea constante da consciência. De olhos estranhamente abertos polo sono, nos corredores deste hospital que é a Espanha procuramos com ânsia sempre os corpos familiares, os eivados nossos, a quem levarmos da mão fria respirando a sua pele que cheira a leite azedo até a uma tumba designada para deixarmos lugar a mais doentes, a mais velhos eivados, com uma miserável moeda do reino na algibeira da lenta bata sem lavar. E cada ano recomeça o ciclo, cada ano refornecem-se cárceres e obscuras usinas e hospitais do reino, tanta carne, tanta devoração oculta por proclamas. Cheira infinitamente a Espanha, a matadouro.