Matar a Guerra: Em memória de quatro vítimas

Publicado em Vieiros

Quem isto escreve nunca morrerá fulminantemente asfixiado numa manhã de nuvens dentro dum depósito de metal sem oxigénio. Nunca será sepultado dentro de uma máquina de ferro por uma montanha de lixo urbano. Nunca cairá funâmbulo dum telhado onde andava a colocar tijolos para os prédios de milhões de euros. Nunca será intoxicado por insecticida utilizado na limpeza duns grandes armazéns. Quem isto escreve só morreria no seu trabalho esbarrando ridiculamente num papel de exame esquecido no chão, nos polidos corredores do seu edifício oficial, enterrado debaixo duma culta livraria após um enorme terramoto, electrocutado polo estouro dum teclado plástico, infectado pola tinta duma estilográfica deficiente.

Eu nunca serei vítima da Guerra. A maior parte dos que me leiam, tampouco. A maior parte dos outros que escrevam, tampouco. O deputado que perguntará sobre estas mortes nos parlamentos tampouco morrerá de afonia. A polícia do parlamento não matará o deputado díscolo. Os responsáveis das empresas homicidas não serão executados. A Guerra pagará com ouro o sacrifício das suas vítimas, e depois a vida, imagem especular da morte, continuará. E nós continuaremos a pagar os barcos da Guerra. Continuarão a crescer os altos edifícios, os parques de lixo urbano. Continuará a asfixiar-se a força do trabalho em tarefas inumanas. E continuarão a nascer corpos, a imigrarem corpos, para limparem por duas moedas as entranhas das bestas metálicas de Ocidente, para limparem sempre os detritos dos poderosos.

A Guerra produz as suas primeiras vítimas na casa própria, no seu contorno mais próximo, e observa as respostas. É o seu calculado experimento. A Guerra é um preciso projecto, não um acaso. E a morte é um efeito colateral do trabalho assalariado. Desde que a Guerra é isto, foi sempre assim, e sempre continuará a sê-lo enquanto haja Guerra. Porque corpos há muitos. Há milhares, milhões de corpos dispostos a se arriscarem para alimentarem outros corpos. A Guerra sabe que a matéria prima do trabalho nunca é escassa. A Guerra pode escolher a carne, a melhor carne: para as minas de metais preciosos, para as vindimas de frutos circulares, para a construção dos refulgentes prédios, a Guerra escolhe sempre os corpos. E os corpos escolhidos entram nos furados da terra e nos intestinos dos navios para limparem o sangue das feridas. E às vezes os corpos devem suicidar-se por pão, e a Guerra sabe-o.

Por isso a Guerra ganha sempre. Até que a matemos.