Trinta anos e um dia

Publicado em Vieiros

O 30 de Outubro de 1975, Juan Carlos de Borbón y Borbón assumia interinamente a chefatura do Estado Espanhol durante a doença artificialmente prorrogada de Francisco Franco, e sem o conhecimento deste. Juan Carlos já nunca abandonaria o cargo de monarca no Conselho de Administração. Trinta anos e um dia depois, como uma longa sentença democrática, o avô da empresa familiar e portanto de todos os espanhóis Juan Carlos, neto à sua vez do avô de todos os espanhóis Francisco, vê consumada a sua longa jogada dinástica de pai-filho-nai (“tres en raya”, para os estrangeiros) com o nascimento da filha do seu filho. Desejo-lhe longa vida à meninha, que não tem culpa de nada. Bastante condena é nascer rainha.

O jornalismo rosa deve estar frenético. Quero dizer EL PAÍS, El Mundo, La Razón, La Voz de Galicia. Quero dizer a SER, a COPE, essa emissora pirata dos bispos. Quero dizer, portanto, o aparelho propagandístico da Monarquia. Não se lhe deve negar a este monopólio bicéfalo a sua genuína perícia nas artes da propaganda, isto é: discurso desenhado para deixar de pensar. Por algo praticamente todos os jerarcas da informação são herdeiros da Falange e do antigo Ministerio de Información y Turismo do deputado Iribarne. No jornalismo rosa, o privilégio de reinar converte-se agora no “direito à sucessão”. A “igualdade de género” passa por cima da desigualdade de ADN, de classe, de família. O Reino de Astúrias converte-se no piar de uma España (Rouco Varela e Francisco Vázquez dixerunt) incombustível, eterna, pré-romana, pré-histórica, atapuerquense, pré-jurássica. España nasceu providencialmente no centro do universo para criar o cristianismo.

Parabéns, visitas, telefonemas, telegramas. Enxames de curiosos que fazem vela, como há trinta anos perante um cadáver, para adorar o fruto do ventre de España, Leonor. Ouro, incenso, mirra para a primogénita nascida numa humilde clínica do bairro de Salamanca. Arcanjo Anunciador do Portal transfigurado em águia imperial do logótipo da Clínica Ruber. A reforma constitucional é o Novo Testamento da España eterna, católica, sentimental. O Triângulo de Deus (Pai-Filha-Mãe) completa agora a sua geometria. No centro do triângulo, pisca o olho panóptico da câmara web que tudo o contempla, que a todos nos contempla, sempre suspeitos de blasfémia, heresia ou injúria, que é a mesma figura de traição. Porque, se o deus é infalível, o monarca é inviolável, e a bandeira espanhola de Paco Vázquez na Corunha, indestrutível.

Trinta anos e um dia é uma longa condena para milhões de pessoas. Há quem nasceu e morreu durante esta sentença. A Constitución monárquica de España garantia-lhe direito à vivenda, mas morreu numa choupana. Garantia-lhe liberdade de residência, mas ele morreu emigrado, exilado político. Garantia-lhe trabalho, mas morreu de sobredose. Quando se pinchava na veia esse último caballo adulterado, sobrevoava Gredos o helicóptero Cougart de Deus como uma pomba bicolor. Pilotavam-na Bono e Trillo: bicolor.

E a partitocracia espanhola está disposta a prorrogar-nos a condena trinta anos mais. Será porque muitos ainda não nos arrependemos. Será porque dentro da prisão não há correcção possível. Como na guerra, a fuga maciça é uma obrigação moral.

Vinte barras de pão

Publicado em Vieiros

Confesso ser um sentimental. Venho de jantar no Mesón O Arrieiro (boa gente, boa comida), perto do velho piso familiar das Travessas em Vigo. Na casa, ligo a televisão para o telejornal e as imagens fazem-me, literalmente, chorar. Nómades exilados negros, aqui mal chamados “imigrantes”, percorrem a morrer o deserto branco de Marrocos rumo ao Norte. Num lugar oculto entre árvores baixas, voluntários brancos dão-lhes clandestinamente pão branco e leite branco, fugindo das patrulhas militares marroquinas. De uma grande bolsa plástica sobressaem vinte barras de pão branco clandestino para os negros. Depois de comer, eles chegarão aos valados de arame de España e ficarão cegos, eivados, tristes, mortos. Eles morrerão perfeitamente comungados de pão. E nós compraremos cada dia mais pão branco, metáfora do deus europeu que no século XVIII inventou o Capital.

Confesso que chorei um pouco, como aquele adolescente cristão que tantos fomos quando vivia Franco nas Travessas de Vigo e assistíamos no insti Santa Irene a Formación del Espíritu Nacional, fazíamos coloridos desenhos dos chinitos com lápis Alpino e alguns começávamos a escutar, por exemplo, os recitais de poesia resistente que os professores progres traziam ao liceu.

Hoje, muitos dos herdeiros daquele Domund perpétuo que era o Franquismo governam os nossos países. Eles sobem os modernos valados metálicos, substituem as palavras “negro” por “subsahariano” e “chinito” por “asiático”, e, como em todo bom capitalismo, subcontratam a distribuição da caridade às ONG que levam pão branco clandestino aos negros dos desertos do mundo.

Na televisão, um exilado do Togo também chora, mas chora de verdade, diante da câmara, não deste lado, como eu: “Não nos faríades isto se não fôssemos negros”. É certo, exilado, mas não é: no capitalismo industrial, quando um escravo não é negro de nascimento pinta-se-lhe a cara com o carvão das minas, com a grassa das oficinas mecânicas, com o excremento das casas de banho que limpam as mulheres, com o piche das estradas ou dos barcos afundados. Todas as substâncias sujas e ignóbeis são obscuras. Todas as comunhões onde reside o limpo corpo de deus são brancas.

Pão branco clandestino para os corpos negros que se secam no deserto, que se afogam nas minas de carvão. Confesso que chorei um pouco, inutilmente, e sei que não foi de impotência, mas de uma indefinida nostalgia por não poder ser já exactamente quem algum dia, quando vivia Franco nas Travessas, acreditei que eu poderia ser. Porque o Capital nasceu muito antes do que eu, e eu já nasci com ele dentro do coração e do cérebro. Para matá-lo, só é possível abrir-se por dentro como uma luva e extirpar o enorme tumor de Deus, esse escravista okupa da consciência. Mas isso consistiria num suicídio, num suicídio de classe. E os resistentes de panfleto e recital poético nunca aprenderam nem aprenderão a suicidar-se, a suicidar-nos.

Triunfam Ouros: A jogada mestra de ser ‘nació’

Enviado a Vieiros; não publicado

A única cousa sensata do discurso extraterrestre que está a proferir certa Caverna espanhola a respeito do novo Estatuto de Autonomia para Catalunha é a seguinte: que este “segundo golpe de Estado” perpetrado por PSOE-ERC contra a “Nación española” (o primeiro seria o de 1934) tem o apoio do rei. Com efeito, numa comemoração qualquer na Academia Militar de Saragossa, Juan Carlos de Borbón lembrou ao exército a “indivisível unidade” da “nación” espanhola e o seu próprio papel como servidor desta unidade. Bem, lógico, só são palavras. Mas, é que há desnecessário ruído de sabres ou está a Monarquia a dizer que Espanha vai bem? Porque qualquer leitura racional da proposta de novo Estatuto catalão leva, precisamente, nesta segunda direcção Real: Catalunha define-se como uma nação dentro do Estado espanhol. É mais: O Artigo 3 define explicitamente a submissão de Catalunha à soberania do Estado espanhol:

“ARTICLE 3. MARC POLÍTIC. 1. Les relacions de la Generalitat amb l’Estat es fonamenten en el principi de la lleialtat institucional mútua i es regeixen pel principi general segons el qual la Generalitat és Estat, pel principi d’autonomia, pel principi de plurinacionalitat de l’Estat i pel principi de bilateralitat, sense excloure l’ús de mecanismes de participació multilateral.”

Por sua parte, a Constitución espanhola faz recair a soberania ambiguamente ora na “nación española” (Preámbulo) ou no “pueblo español” (Título Preliminar, Artigo 2: “La soberanía nacional reside en el pueblo español, del que emanan los poderes del Estado”). Mas reparemos que os preâmbulos são declarações de intenções para contentar uns e outros, e o substancial é o articulado. No articulado, “pueblo español” é sinónimo de “ciudadanía española”, sem mais estórias.

Eu suponho que qualquer leitura não essencialista dos vocábulos “nación”, “nació”, “pueblo español”, “poble català”, “pobles de l’Estat” e outros relacionados nos dous textos deveria levar os juristas racionais à conclusão de que o novo Estatuto catalão não pode vulnerar a constituição espanhola, por duas razões. Primeiro, o Estatut só pode definir o âmbito e o sujeito da soberania catalã. Não poderia ser de outra maneira, polo seu próprio rango inferior à constituição de Espanha. Segundo, quando se refere à definição do Estado no Preàmbul, o Estatut expressa uma posição subjectiva de “Catalunha”, não um facto de lei: “Cinquè. Catalunya considera que Espanya és un Estat plurinacional”. Podemos perguntar-nos se tal peculiar expressão tem lugar num texto jurídico, mas dificilmente se pode argumentar que a expressão de um juízo não vinculante por parte de um colectivo seja anti-constitucional. Será, em todo o caso, anti-estatutário, por não poder ter qualquer efeito jurídico.

Destas premisas de submissão de Catalunha ao Estado como parte dele, o resto do articulado do Estatut detalha os direitos e deveres dos cidadãos de Catalunha, quer dizer (e com total transparência), dos espanhóis (cidadãos do Estado espanhol, com independência da sua origem) residentes em Catalunha: “ARTICLE 7.1. Gaudeixen de la condició política de catalans els ciutadans de l’Estat que tenen veïnatge administratiu a Catalunya. Llurs drets polítics s’exerceixen d’acord amb aquest Estatut i les lleis”. Isto quer dizer que não há qualquer contradição entre ser catalão e ser espanhol: ser catalão, é, de novo, uma forma contingente de ser espanhol. Decerto, o “povo catalão”, que poderia entender-se como um sujeito étnico, não civil, aparece cá e lá no novo Estatuto, mas não se lhe atribui qualquer papel especial (por exemplo, no exercício da soberania) além de ter preservado costumes, tradições e direitos próprios durante séculos.

Em resumo, como a Generalidade é estado espanhol, e exerce dentro do território de Catalunha em função da prioridade da legislação própria, a proposta não difere muito da antiga “administração única” do deputado Manuel Fraga Iribarne, excepto na retórica nacionalitária. Até a “prioridade” dada ao direito e à legislação de Catalunha sobre os gerais do Estado é vazia. Porque, ao estar submetida Catalunha à legislação geral do Estado, também qualquer díscola normativa catalã é e será susceptível de anticonstitucionalidade e, portanto, de nulidade jurídica.

Portanto, a definição de “nació” para Catalunha é (como talvez chegue a ser no caso galego) um nominalismo acadado como efectiva cortina de fumo para desviar o assunto fundamental do Estatut: a renúncia de facto ao direito de auto-determinação e de secessão. Decerto, Catalunha não renuncia aos seus “direitos históricos” (Disposició Addicional Primera do Estatuto). Mas a eventual actualização destes direitos fica subordinada à Disposición Adicional Primera da Constitución, que impõe o quadro da própria Constitución como limite para estes direitos. E a Constitución monárquica impede a secessão. Só após uma reforma da Constitución poderia Catalunha reclamar legitimamente a independência. Em resumo: Que melhor cenário para a direita espanholista que desenhou o regime monárquico como tampa para a secessão do que uma “nació” que, podendo reclamar a independência, renuncia à soberania para continuar fiel à Coroa?

Claro que, sabemos todos, o assunto de fundo não é a Nación nem a Nació nem a Nação, mas a pela, os quartinhos dos grandes dominadores. No Estatut, o complemento de um detalhado articulado em defesa de todo tipo de direitos dos espanhóis catalães a que nenhum verdadeiro liberal se poderia opor é, por uma parte, a definição do papel do governo catalão, claramente intervencionista em todos estes aspectos como suposto garante destes direitos. Vamos, nada novo: exactamente como o papel molhado da Constitución Española e de outras constituições liberais. Mas o verdadeiro contraponto é o articulado final relativo ao financiamento e aos tributos, onde “Catalunha” reclama o lógico direito liberal de contribuir para o Estado geral em função da sua população, do seu “esforço fiscal” e outros critérios, mas sem comprometer a sua posição económica. Com outras palavras: se sobrarem quartos, a empresa “Catalunha” será “solidária” com as outras companhias do Estado, mas o “nivelamento” não poderá rebaixar em nenhum caso a posição relativa de “Catalunha” no ranking das rendas per cápita do Estado (Artigo 210.d). Com efeito, por quê deveria sob o capitalismo uma “nação” muito produtiva do Estado pagar ou manter outras empresas-nação que produzem menos? De novo, “Catalunha” não poderia ser uma empresa mais liberal: para cada pessoa, uma série de direitos, um voto, um pedacinho de imposto, e que não no-los roubem outros. E os benefícios colectivos, para dentro (isto é, para os proprietários da “Nació”). Nem mais, nem menos. É isto o que assusta a improdutiva Caverna espanhola que quer continuar a chuchar fundos de todos roubados polo Capital sob a escusa da “solidariedade” e o “nivelamento”. O resto são farrapos de gaita.

Quanto a “Galicia”, talvez vá por um caminho semelhante: ser nación para continuar a ser empresa de España. Jogada mestra nesta longa baralhada: voltará a triunfar o Rei de Ouros e de Sabres. Os liberais do PSOE e do BNG estarão contentes. E os independentistas socialistas deverão repensar a que jogam ainda dentro deste partido. Romper o baralho real deveria ser o prioritário.