A República vai vencer

11 de setembro de 2018, Diada Nacional de Catalunya

     O desenvolvimento do processo político catalão contém uma caraterística central, nos discursos e nas práticas, que aponta para uma dada resolução futura. A caraterística é a sua ampliação, o alargamento progressivo tanto da sua base discursiva quanto, correlativamente, da sua base social, e do seu âmbito de relevância. E a resolução futura pode ser a consecução da República em, polo menos, Catalunya.

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E por que não MAIS independentismo, precisamente?
 Réstia de perguntas à esquerda “não independentista”

     Por que não a independência da Galiza? Qual é o problema da autoorganização da “gente” a todos os níveis? Qual é o problema duma ordem jurídica, do grau de formalização que for, que permita formas económicas e sociais emancipatórias próprias (p. ex. usufruto em mão-comum, democracia de base, economias sustentáveis, anti-extrativismo, soberania energética…)?  Onde está escrito que a pertença a um quadro jurídico superior (Estado Espanhol, Europa) permita mais facilmente a emancipação e a igualdade? Qual é o problema da articulação duma Galiza independente com outros âmbitos auto-determinados, da Península Ibérica ou do mundo?  E qual é a necessidade dum governo de ordem superior, sobretudo quando lutamos por uma sociedade tão diferente que esses governos mais amplos (militarizados, burocratizados) só poderiam ser um atranco?  Que eiva histórica (ou genética?) têm as galegas e galegos que lhes impediria avançar na auto-consciência do independentismo solidário em lugar da crescente imersão num falacioso “não-nacionalismo” que só é a cara eleitoral-mercantil do nacionalismo espanhol?  E quem diz (onde está escrito) que para reclamar essa independência seja obrigatório professar o nacionalismo ideológico (e muito menos etnicista, essencialista) como máxima forma de identificação coletiva?  Porque, onde estão as fronteiras entre a autogestão e democracia de base e a independência nacional/coletiva?

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 Réstia de perguntas à esquerda “não independentista””

O Trans e o Reint: Manifesto Reintrans

No Portal Galego da Língua

“Nós, de verdade, unicamente temos
a palavra. Só a palavra verdadeira
pode traduzir a fecha
e insondável soidade do nosso ser”.

Manuel Maria, A luz ressuscitada

     No pensamento normativo dominante, muitas reivindicações de direitos identitários ou sociais (os económicos decretam-se inexistentes) são construídas como veleidades, caprichos que só uma generosa “tolerância” do sistema permitirá honrar e defender… ou não, porque onde manda o material, o reconhecimento cultural é discricionário. O casamento entre pessoas de chamado “mesmo sexo” (esse atavismo), por exemplo, é ainda muito limitadamente reconhecido, numa altura em que já crescem mundialmente as lutas por uma concepção das identidades de género como algo irredutível a categorias funcionais, e muito menos biológicas. No pensamento normativo dominante, ainda não se concebe que a biologia é apenas um dos aparelhos em que os humanos refugiamos a nossa complexidade, e que a descrição “homem com pénis” é exatamente tão trivial como “mulher transgénero com pénis”, por exemplo, sem entrar-nos na trivialidade de cada uma das subetiquetas componentes (“homem”, “mulher”). O estado de Carolina do Norte nos EUA aprovou recentemente legislação aberrante (a lei HB 2) que proíbe que pessoas chamadas transgénero possam utilizar as casas de banho correspondentes às etiquetas do género com que se sentem identificadas. Para evitar tal blasfémia (uma transmulher urinando porta com porta junto a uma cismulher!), não é claro se aquele estado instalará nas entradas das casas de banhos detetores de pénis e vaginas marca ACME. O governo federal EUA já interpôs uma demanda contra esta legislação troglodita e, além, contraditória até para as bíblias de que provavelmente emergeu (imagine-se um urinário para homens onde de súbito irrompa uma convencionalmente feminina transmulher-com-pénis a urinar líquidos idênticos aos dos cisvarões-com-pénis; calcula-se que, logo que mostre o pipi, já acreditará documentalmente que está a cumprir a lei e não será expulsa). O absurdo desta lei só convencerá, como costuma acontecer, aqueles cárteles ideológicos que sempre têm a perder com o progresso humano no caminho da libertação: as famílias binaristas alicerçadas simultaneamente na divisão cromosómica do trabalho e das identidades, na naturalização duma interpretação simplista da concorrência darwiniana, e — portanto — na concepção de que a selvagem ordem económica surge também “naturalmente” duma “natureza (bis) humana” cujos atributos exatos, na sua inerente contradição (os humanos amamo-nos e matamo-nos, até simultaneamente), curiosamente nunca conseguem explicar.
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Vítimas do Terrorismo

No Portal Galego da Língua ★ No Diário Liberdade ★ No Praza Pública

Foi tão brutal o atentado que muitos corpos nunca apareceram. As explosões sucederam-se durante muito tempo. Participaram no complô cidadãos e cidadãs normais, pessoas das que se vêem na rua cada dia, infiltradas na cidade. A imensa maioria, de facto, tinham boletins de identidade do país, não eram estrangeiras. Organizavam-se em células pequenas, amiúde amparadas nos templos que durante anos alimentaram o ódio e uma visão messiânica da fé, da raça, da identidade, das missões de conquista e reconquista.

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Quarenta Anos na Fábrica da Língua

No Portal Galego da Língua No Praza Pública

Desde há aproximadamente 40 anos se vem construindo na Galiza uma versão (oral, escrita e funcional) da língua do país que geralmente está naturalizada já como o “galego oficial” (paralelamente, não esqueçamos, desde há um pouco menos se vem construindo e praticando a versão “reintegracionista”). As explicações de por que “se” optou por esse caminho (e deixo o “se” deliberadamente ambíguo por enquanto), desde e com as instituições, são variadas, mas entram no geral em três grandes blocos de critérios: fidelidade à tradição escrita, fidelidade à fala (e — dizem que portanto — maior aceitação social), e facilidade de uso. Não é objeto deste escrito comentar os critérios anteriores, já muito debatidos. O facto inegável é que, nesta altura, essa versão da língua, que chamarei o “galego-RAG”, está amplamente reconhecida (na medida em que pode está-lo uma língua em processo de extinção), sem que isto empeça que a visão alternativa (e simbólica e politicamente contrária), o “reintegracionismo”, esteja também naturalizada noutros grupos de pessoa possivelmente crescentes.

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Monolinguismo, bilinguismo, hegemonia: Não são só palavras

No Portal Galego da Língua • Em MundoGaliza • Em Diário Liberdade • Em Encontro Irmandiño • Em  Carta Xeométrica

Despersonalizar é provavelmente a melhor disposição para compreendermos um problema tão complexo como a atual crise da língua na Galiza. A troca de textos e mensagens recentes nas publicações periódicas do país e na Internet a respeito dum recente texto de opinião do IGEA (Instituto Galego de Estudos Europeos e Autonómicos) sobre o futuro do idioma insiste amiúde em questões muito marginais, incluindo um questionamento recíproco, multilateral, do saber e das capacidades de análise dos participantes. Contrariamente a esta atitude, vou assumir que qualquer pessoa que se debruça sobre uma questão social mas também técnica e perde parte do seu valioso tempo em ler textos longos (ou longuíssimos, como este) possui suficiente conhecimento e raciocínio  para não deixar-se enguedelhar no trivial questionamento do conhecimento e do raciocínio doutrem.

Três são as dimensões que eu destacaria duma polémica –antes que debate de fundo– que corre o risco de produzir vazia inflação discursiva.  Mas, antes, um posicionamento: O meu objetivo não é contribuir para debater polo miúdo os argumentos de fundo do documento do IGEA, pois na minha opinião não inaugura qualquer discurso novo, e apenas introduz uma expressão que pretende central (“bilinguismo restitutivo”), traduzível de muitas maneiras a outras expressões. O meu objetivo é, precisamente, contribuir para que a expressão não se centralize nem no debate público nem no ativismo sobre a língua, polo seu potencial negativo para o futuro da língua, que não começa nesse texto. E para isto, evidentemente, procurarei razoar desde o meu limitado conhecimento e desde a minha posição ideológica.  Os três aspetos que quisera comentar são: 1. A “despolitização” e “desnacionalização” da questão da língua.  2. A dinâmica “monolinguismo / bilinguismo / hegemonia social do galego”.    3. A articulação entre propostas de intervenção linguística e usos reais. Para isto, remito-me em ocasiões a documentos, manifestos e debates anteriores. Mas, confiando no bom funciomento do Google, escuso colar aqui por enquanto tantas referências a tantos textos. E, por mor da despersonalização dum claro sarilho de textos (não por mor da invisibilização de ninguém, nocivo protocolo habitual neste mundo), prefiro não citar qualquer pessoa, nem para bem, nem para regular, nem para mal.

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A perfeição da democracia pós-representativa

Publicado em Diário Liberdade

A pós-democracia, ou democracia pós-representativa, chegou a tal grau de perfeição que os nossos representantes, homens e mulheres, são imagens fieis de nós mesmos. Votar neles, e escolhê-los, faz como se nós próprios estivéssemos nas instituições, muito perto da Lei e do Rei.

A democracia pós-representativa é tão perfeita que, se um dos nossos representantes morrer ou deixar o cargo, pode ser substituído de contado por outro na mesma lista, pois será uma réplica exata do anterior e de nós mesmos.

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A língua e o triunfo do Eu

Publicado em Vieiros

Por recomendação dum amigo, estou a ver estes dias a série de quatro documentários The Century of the Self (“O Século do Eu”), de Adam Curtis, o mesmo documentalista do magnífico The Power of Nightmares sobre a invenção propagandística do “terrorismo islâmico”. Na série sobre o self, Curtis revela a poderosa implicação das ideias de Freud, Reich e outros psiquiatras na mercadotecnia comercial e política de massas nos EUA, no Reino Unido, e (por extensão imperial) eu diria que em todo o mundo conhecido, que é aquele aonde chega o cadáver de Michael Jackson. No episódio três, Curtis explica a viragem face ao mais atroz individualismo que deu uma inesperada vitória a Ronald Reagan em 1980 nos EUA e inaugurou o mal chamado “neo”-liberalismo que hoje sofremos.

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Como fumigar democraticamente

Publicado em Vieiros

Como não seguim o Circo Eleitoral Europeu, não soubem que o lidereso popular basco Carlos Iturgaiz propusera um tratamento higiénico político de provada efetividade: a fumigação, não apenas do exército da ETA, mas de todo o seu “contorno”, legal, alegal, ilegalizado ou relegalizado, incluindo o candidato de Iniciativa Internacionalista Alfonso Sastre. Aquelas (e estas) declarações de Iturgaiz são transparentes: “Iturgaiz felicita la ilegalización de Iniciativa Internacionalista porque ‘hay que fumigar a ETA’” (EFE, 18 maio), “‘hay que fumigar a ETA con la ley en la mano se llame como se llame’ y ha reclamado medidas por parte del Gobierno ‘cuando sabemos que la lista de Iniciativa Internacionalista en la lista de los criminales’” (Europa Press, 30 maio); “ ‘…actuar con la ley en la mano para fumigar todo lo que signifique terrorismo’ (…) ‘Ese terrorismo (…) intenta(n) exportar un terrorista a Europa con el nombre de la lista Iniciativa Internacionalista” (Europa Press, 1 junho); “fumigar con la Ley en la mano todo lo que signifique ETA y sus acólitos” (22 junho). Claro que talvez tudo fosse apenas feliz metáfora, caso no qual o “dolor” que Sastre agoira para Euskal Herria e España também se pode ver assim. Ui, que escorrego.

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A épica do suicídio

Publicado em Vieiros

Este texto surge a raiz de debates na lista Language in the New Capitalism

O discurso de Joseph Ratzinger –conhecido como Bento XVI pola sua profissão– no passado 12 de Setembro causou uma comoção mediática polas suas referências ao Islão. O texto, que foi uma palestra intitulada Fé, Razão e a Universidade: Memórias e Reflexões perante representantes da ciência na Universidade de Regensburgo, parte de citações de uma controvérsia medieval entre o imperador bizantino Manuel II Paleologus e certo persa culto sobre três livros religiosos: o Antigo Testamento, o Novo Testamento, e o Corão. Ratzinger cita o editor do diálogo, Theodore Khoury, citando o imperador a citar surahs do Corão sobre, entre outros tópicos, a “guerra santa”. Ratzinger contrapõe uma visão parcial do islão e do seu violento deus (um deus “não sujeito nem a sua própria palavra”) com a racionalidade helenística, que seria não só a base da ciência ocidental moderna, mas o pouso intelectual em que se teria assentado naturalmente o cristianismo. Decerto, esta parte do discurso de Ratzinger é propagandisticamente parcial, e assim foi lido por imans e alguns muçulmanos que, a exercerem violência, não fizeram outra cousa que reforçar as teses de Ratzinger. Num artigo em Counterpunch, “Papal Insults. A Bavarian Provocation” (“Insultos papais: Uma provocação bávara”), Tariq Ali contesta em defesa do “mundo islâmico” e, concretamente, de “dous dos seus países” (o Iraque e Afeganistão) ocupados por “tropas ocidentais”, lembrando o sangue histórico deitado polo dogmatismo da religião cristã, também com citações escolhidas de textos religiosos cristãos. Muito longe da análise social crítica, temo-me que a réplica de Tariq Ali também reforça a ideia de que os conflitos económicos mundiais podem ser discutidos em termos pseudo-teológicos, além de um par de frases de manual de corte social.

Mas eu leio o texto de Ratzinger mais bem como um interesseiro meta-texto sobre o papel do catolicismo num mundo crescentemente invadido por outras e novas denominações de origem religiosas. Ratzinger simula convidar ao “diálogo genuíno” com uma nova controvérsia (dialéxis) sobre os escopos respectivos da ciência e da razão, da ética e da religião. Para mim, o texto está desenhado para o consumo interno do “mundo cristão”, dado o retrocesso sofrido polo catolicismo perante a mercadotecnia do evangelismo. É um intuito de apropriar a racionalidade, ao equiparar ciência e razão por uma parte, e religião e ética, por outra. Assim, para Ratzinger a ética religiosa deveria derivar de um alargamento do escopo da “ciência” para incluir a filosofia e, noutro sentido, a teologia, isto é, a (bizantina, em mais de um sentido) racionalização da fé. Diz Ratzinger:

“Este é um perigoso estado de cousas para a humanidade, como vemos polas perturbadoras patologias da religião e da razão que irrompem necessariamente quando a razão fica tão reduzida que as questões da religião e da ética já não lhe concernem. As tentativas de construir uma ética a partir das regras da evolução ou da psicologia e da sociologia terminam por ser simplesmente inadequadas”.

Ou

“Só assim [pola racionalização da fé] somos capazes desse genuíno diálogo das culturas e religiões que hoje se precisa tão urgentemente. No mundo ocidental é visão geral que só a razão positivista e as formas de filosofia baseadas nela são universalmente válidas. Porém as culturas profundamente religiosas do mundo vêem esta exclusão do divino fora da universalidade da razão como um ataque contra as suas convicções mais profundas. Uma razão que é surda ao divino e que relega a religião ao âmbito das subculturas é incapaz de entrar no diálogo das culturas”.

O gambito, como nas controvérsias, seria teoricamente implicar outras religiões num “diálogo” racional “genuíno”, mas obviamente, desde a vantagem da racionalidade helenística, ocidental e eurocêntrica, incorporada por naturalização no cristianismo. Mas mais preocupante do que esta apropriação é a deslegitimação que se faz do pensamento científico (as “regras da evolução”, a “psicologia” e a “sociologia”) para o ordenamento da ética, absorvida por Ratzinger na ideologia cristã como expressão da essência humana.

É certo que o messianismo destas palavras –com a sua clara reverência ao criacionismo ao assumir que a ética humana não é um resultado evolutivo da espécie, mas então platonicamente (divinamente) prévia– assinala uma aliança táctica com o que já se tem chamado o teo-conservadorismo norte-americano. Nestes termos poderia caminhar uma crítica sociologicamente orientada do discurso de Ratzinger. O que me surpreende, porém, é que um texto sem dúvida bem polido mas articulado em torno de uma ideia muito simples levante críticas (como a de Tariq Ali) que só reforçam o enquadramento do desastre mundial actual em termos do “islão”, o “ocidente” ou outras totalizações. Isto não é só inquietante, mas representa um fraco serviço à compreensão das causas do desastre. Desta perspectiva redutiva compartilhada por uns e outros, o “islão” tem produzido grandes atrocidades históricas, como o “cristianismo”, o “judaísmo” ou o “hinduísmo”. Mas o “islão” no seu conjunto não é atacado porque qualquer discurso interesseiro indique que passagens do Corão são susceptíveis de serem interpretadas como convocatórias a uma “guerra santa” que (outros exégetas dizem) inexistem como tais nesse livro (jihad traduz-se por combate: um combate “pequeno” para a conversão dos infiéis, e um combate interior “grande” que não deixa de lembrar a “revolução interna”). Da mesma maneira, a “cristandade” no seu conjunto não sofre polas menções de Tariq Ali às Cruzadas, nem o “judaísmo” sofre polas críticas a um projecto sionista de expansão estatal que não é compartilhado nem pola resistência cívica israelita nem pola ortodoxia judeia. Se a “fé” existe, deveria ser impermeável aos erros históricos. Este recurso dialéctico às atrocidades históricas do adversário ideológico é, se se me permite, meridianamente ridículo.

O que denigra o islão, o cristianismo, o judaísmo ou qualquer outra ideologia religiosa são as exégeses essencialistas dos seus respectivos textos fundacionais, solenemente exercidas por esquadras de maduros varões (sempre varões) desde o privilégio material das suas palestras reais, virtuais ou mediáticas, num exercício de elite que já perdeu todo o contacto humano com a realidade. A ideologia religiosa é igualmente denegrida polo acrítico submetimento de legiões de homens e mulheres crentes a estes solenes varões, como se apenas estes pudessem ser a voz da fé individual (seja isto da “fé” o que for), numa sorte de estranho deslocamento que sem dúvida desafia a “racionalidade da fé” que Ratzinger procura se apropriar.

A totalização das palavras “islão”, “cristianismo”, “judaísmo” ou qualquer outra ideologia religiosa cria monstros. O paralelo especular da queima de livros polos Nazis é a idolatria de um só Livro, tenha o título que tiver. E estas totalizações são extremamente úteis para que outros construtos, também totalizadores (os Poderes Ocidentais, os Neo-Conservadores, os Teo-Conservadores, o Complexo Industrial-Militar, o Sionismo, Al-Qaeda) se apoderem dos nossos actos a meio de uma apropriação mediática, simulada, das nossas mentes.

Eu compreendo que os média corporativos precisam de inflar estes assuntos descabidamente, visto que a realidade já não é tão real como soía ser (a realidade é tremendamente aborrecida para os índices de audiência). Mas eu pergunto-me por quê certa crítica é incapaz de retirar das suas análises a palavra “islão”, que por definição só pode incidir no discurso dominante das emoções. Já sabemos que as razões principais para a presença ou a ameaça de exércitos ocidentais ao Iraque, Afeganistão, o Irão, Síria, Líbano não é que estes sejam “países muçulmanos”. Porque não o são. São países de gente, e de classes sociais. Os exércitos cristãos espanhóis massacraram nativos americanos durante séculos e ninguém cabal chamaria isso uma guerra de religiões. O que se precisa é uma resistência decisiva em favor do laicismo dos estados (já que estes existem, mantenham os deuses e outros seres pavorosos fora do meu dormitório e das minhas escolas), não análises que, ao nomearem os mesmos objectos que os conservadores religiosos nomeiam, reforçam alianças semântico-militares incomprovadas como “islamismo/Al-Qaeda” (uma organização armada religiosa com um nome laico???) ou o também inexistente “choque de civilizações”.

Realmente aborrece escutar este discurso das emoções religiosas todo o tempo. Nunca desde os tempos de Franco a religião esteve tão presente nos média e no pseudo-debate público desta mutação histórica que é o Estado Espanhol. Numa táctica evidente, a classe política, os média e todo tipo de comentaristas brandem o “islamismo” como a fonte de todos os males, ou defendem-no como se o petróleo fosse muçulmano, quando do que se está a falar realmente é do outro Inomeado (como todos os deuses verdadeiros) como fonte de todos os bens: o cristianismo, o judaísmo, o judeo-cristianismo. Assim, a situação actual, onde a imigração, o multiculturalismo, o “terrorismo” e as religiões “alheias” se reúnem num totum revolutum no discurso público, excede todo sentido de normalidade.

Mas estou começando a pensar que tudo isto é o resultado da vitória global do pensamento religioso institucionalizado sob o disfarce doutrinário de um Nazismo que na verdade nunca perdeu a guerra. Quando se acredita num princípio dogmático último além da racionalidade de senso comum e da experiência (o Estado, a Raça, a Pátria, Deus: um Aleph nunca visto mas igualmente existente que resumiria e explicaria tudo), o resultado também final da lealdade incondicional só pode ser a Morte, esse sacrifical suicídio explosivo eficazmente inventado polo Império japonês, não por Mohammed Atta. A finais dos anos 1990, os militantes salafistas começaram a matar-se entre eles e a extinguir-se (um suicídio em massa) em lugar de matarem os infiéis ocidentais, pois já não tinha sentido salvar aquele mundo corrupto se Deus não podia achar nem um homem puro entre os seus próprios seguidores. Curiosamente, foi então, quando o islamismo armado estava mais débil, que apareceu a insígnia “Al-Qaeda”. Mas já muito antes também Hitler quis suicidar a impura raça germana quando se suicidou, pois Ele (isto é, Hitler) falhara-lhes. E talvez Hitler fracassou porque também era “judeu”. Os horríveis crimes dos alemães nazis contra os alemães judeus (e europeus judeus em geral) só se podem entender em termos da purificação de uma parte do que era visto como o próprio Corpo Ário. Os alemães judeus não eram “o Outro”, mas a parte do Um-Próprio, inscrito no sangue e nos nomes alemães (o nono apelido de Hitler era “judeu”). Para o Nazismo, matar os judeus significava amputar um membro importante do próprio corpo, que, por certo, criara significativo pensamento científico, filosófico e político para a Germânia, incluindo o Marxismo. Afinal, a operação racista Nazi teve sucesso, e por isso o anti-semitismo europeu tomou firmes raízes na criação do Estado de Israel, primeiro pola superação numérica dos judeus semitas da Palestina por parte dos judeus europeus, e depois polo deslocamento e assassínio dos semitas muçulmanos e cristãos. A actual situação mundial deve mais do que sabemos ao triunfo do Nazismo, talvez a máxima expressão histórica conhecida da totalização da Identidade.

Cristo, Hitler, os kamikazes, Atta, os homens-bomba, Lavapiés, Jamestown, o United-93, os mártires e heróis da cultura da guerra de Hollywood… A religião é a épica do suicídio. O argumento subjacente sem provar é que o Grupo humano é materialmente um supra-organismo, uma enorme estrela de mar que às vezes precisa de sacrificar um dos seus membros polo bem comum. E a “globalização”, assim, não é mais do que uma consequência internamente lógica, a longa construção dum corpo monstruoso: o vasto corpo de Deus. Neste sentido, assim como ontem alemães nazis mataram centenas de milhares de alemães judeus nas aras da pureza orgânica, hoje as matanças mútuas de iraquianos também não constituem uma guerra civil, mas uma cura, e portanto o sangrado terapêutico deve continuar, vigiado polos exércitos de deus: o massacre iraquiano é puro suicídio, é a auto-limpeza necessária, a necessária auto-purga de uma parte impura do corpo global. O Iraque é uma maciça apoptose. Porque o infantil deus cristão do Capital genuinamente acredita que o mundo é o Seu corpo, e tem que lutar contra outros deuses igualmente infantis que também desejam ter um corpo.

A racionalidade da fé? Eu nem sei. A mim o que me diz a racionalidade é que a Teologia é pura Teratologia. E que, polo que sei, essa terrível pulsão suicida inexiste no Marxismo.