Uma questão de cultura

Enviado a La Voz de Galicia e a La Opinión de A Coruña; não publicado

O recente Encontro Nacional sobre a Língua organizado pola Mesa pola Normalización Lingüística, a que assistiram numerosas associações culturais e de base e indivíduos, concluiu aprovando uma série de resoluções para o trabalho em favor da língua. A primeira diz: “Reafirmamos a substancial unidade existente entre o galego e o português”. Esta resolução é importante, porque constata de novo uma evidência histórica e social. A unidade linguística galego-portuguesa explica, por exemplo, que este texto poda ser escrito e lido perfeitamente na Galiza, e que poda ser lido, além, em galego, com mínimas adaptações ao acento de aqui.

Estamos provavelmente na fase mais crucial da história da língua da Galiza. A acelerada perda de falantes habituais não se compensa com a congelada penetração de certas variedades da língua nos âmbitos mais formais. Perante esta situação, os poderes públicos e as instituições culturais têm a oportunidade e a responsabilidade de reafirmarem com palavras e com actos a natureza comum da nossa língua galego-portuguesa, porque o que se diz em público lembra-se, e o que se lembra dia a dia pode guiar melhor os nossos actos. O catedrático do Instituto da Lingua Galega Francisco Fernández Rei, por exemplo, escreveu na revista internacional Plurilinguismes que “dum ponto de vista estritamente linguístico, podemos admitir que o galego e o português falados hoje constituem praticamente uma só e única língua ‘por distância’”. O anterior presidente da Real Academia Galega, Francisco Fernández del Riego e muitos outros especialistas têm manifestado opiniões semelhantes. É necessário e inteligente lembrarmos esta evidência.

Por isso, é fundamental uma decisiva viragem que, sem trair nem renunciar às trajectórias culturais anteriores, nos recoloque na evidência e recolha assim o sentir de crescentes sectores de pessoas que também se interessam profundamente polo presente e futuro da língua do país. Um primeiro passo para a coesão e para o enriquecimento cultural seria o reconhecimento, por parte das instituições de poder e de cultura, da legitimidade desta concepção e desta prática galego-portuguesa da língua, que se reflecte na escrita internacional, na literatura e na própria experiência de contacto entre habitantes dos dous lados da inexistente Raia. Os intercâmbios entre escolares da Galiza e de Portugal, por exemplo, promovidos por liceus e organizações culturais, são bons exemplos de uma experiência conducente a reduzirmos as fronteiras. A possibilidade de recebermos habitualmente os meios de comunicação de Portugal acrescentaria também a nossa exposição a uma cultura próxima, e contribuiria para reduzirmos a nossa dependência das culturas anglófonas, nomeadamente dos EUA, que tão pouco têm a ver com a nossa realidade.

Numerosas pessoas e colectivos defendemos o direito da Galiza a receber material cultural de Portugal, Brasil e outros países, em pé de igualdade com o nosso próprio, como a melhor maneira de reforçarmos a nossa própria cultura. Há uma crescente demanda da aprendizagem do padrão linguístico português, cujo conhecimento é essencial para utilizarmos a língua, produzirmos saber, e lermos excelente literatura sem mediação qualquer de traduções deturpadoras. Ninguém duvidaria que os andaluzes, por exemplo, cujas falas são tão distintas da língua da cultura escrita espanhola, têm direito a serem considerados falantes da língua espanhola e de aprendê-la como tal. Não sei porquê os galegos deveríamos ser menos a respeito da língua padrão utilizada em Portugal. Devemos ter o direito de aprendermos e utilizarmos, em todos os níveis educativos e para todos os âmbitos da vida diária, o padrão linguístico que plasma internacionalmente essa substancial unidade entre o galego, o português, o brasileiro, o moçambicano… ou o berciano.

Se a língua se perde geração após geração, é também porque existe um impiedoso mercado linguístico e cultural que procura nos impor o alheio. Talvez a gente não se reconheça na função artificialmente limitada do galego actual para produzir cultura. Aqui somos uma comunidade pequena, mas para o Sul e para o Oeste fazemos parte de uma ampla constelação de comunidades. A globalização não pode funcionar sempre na mesma direcção: temos capacidade de ser outro Centro na periferia ocidental.

É o momento de superarmos o uso do galego oral e escrito como uma forma de militância, e de praticarmo-lo como uma conduta naturalizada dia a dia, para exercermos a nossa cultura dentro do âmbito linguístico e cultural próprio. Mas este projecto não é apenas uma questão de vontade individual. Os poderes públicos e as instituições têm a grande oportunidade e a responsabilidade de recolherem este desafio contribuindo para a nossa adaptação aos tempos com uma valente viragem alicerçada no diálogo.

Reclamarmos o nosso não é uma questão de fé, nem de combate: é uma questão da razão. É uma questão de cultura.