A rapidez do Discurso

Publicado em Vieiros

Em 48 horas, a Guardia Civil espanhola deteve dez membros da Assembleia da Mocidade Independentista vulnerando locais sociais de base, os detidos e detidas foram acusados de figuras estranhas, os jornais publicaram nomes e fotografias, as rádios arejaram análises e entrevistas, os políticos fizeram declarações das quais não se arrependerão, a web da AMI foi sequestrada pola Guardia Civil, outras foram obstaculizadas (como fechar o microfone a um orador; como faz a Radio Martí dos EUA interferindo as emissoras cubanas), a Internet e os correios electrónicos encheram-se de notícias, comunicados e protestos, houve concentrações, cartazes, panfletos, os dez detidos foram libertados provisoriamente, as rádios anunciaram-no sucintamente, e hoje é Quarta-Feira e continuam as nuvens. A rapidez do Discurso, que é também acção, ultrapassa a medida humana do tempo necessário para reflectir sobre os significados. Campanha político-policial-mediática, cortina de fumo diante do processo 18/98 do juiz Garzón, criminalização do nacionalismo, interferência nos processos de reforma estatutária, criação de fissuras no crescente soberanismo galego, em definitivo alti-baixos emocionais nesta versão distorcida da Política a que o Reino e ocidente nos têm habituados. Táctica deliberada, improvisação ou erro, já ninguém o sabe. Há tempo que o determinismo histórico morreu. Mas os factos e os efeitos estão aí, e não deveriam minimizar-se nem, muito menos, ridiculizar-se. Seria tentação qualificar a “Operación Castiñeira”, com Ñ espanhol, de absurdo fiasco. Se assim fizermos, estaríamos absorvendo (mais uma vez) o discurso hegemónico sobre a necessária Seriedade das forças da ordem: Olha aí, a polícia espanhola nem deter sabe, e são os salvadores juízes os que por fim situam as cousas no seu ponto, pois não há tais indícios de “terrorismo”, que alívio. Até Nós-UP se congratula da libertação dos detidos, como se esta libertação indicasse liberdade. Calculo que ré-encontrar companheiros é sempre gratificante, mas Madrid não é o único exílio. Esta ré-legitimação do sistema judicial espanhol pode ser calculada, pode não sê-lo. Em todo o caso, a arbitrariedade no disciplinamento foi sempre uma das características políticas do fascismo. Literalmente, do fascismo. Com Franco nunca se sabia quem podia ser detido ou não, nem por quê. Guantánamo não é apenas um reino remoto, mas uma ordem mental. O meu telemóvel pode estar em lista negra ou intervido, e eu sei por que facto trivial. O teu também. Não me preocupo grandemente, mas não estou habituado a dar as chaves das minhas gavetas a um estranho de uniforme. A imunidade do corpo, que é a nossa mente, onde reside a gloriosa Liberdade de Expressão, é já assunto do passado. E nós, a vê-las vir, porque os números eleitorais já nos cegam a necessária lucidez visionária. Sim, visionária (espero pacientemente os insultos), porque, chegados a este nível de cegueira, sermos visionários consiste simplesmente em vermos exactamente o que existe: uns empregados do Estado com passa-montanhas irrompem na sagrada propriedade privada a roubarem papéis, computadores e dinheiro. Levam dez pessoas para Madrid sem o seu consentimento. Acusam-nas de fazer cousas, em linguagens que os detidos talvez nem compreendam: a noção de “delito” remete para uma ordem total compartilhada, e assumir a noção pressupõe inscrever-se voluntariamente nessa ordem. Não se pode exigir que a mente do Reino entre na mente da AMI, é excessivo. Até os ultraliberais sabem intimamente isto, embora amiúde ajam como polícias. O que se pode exigir, sim, é que a arma do polícia não me mate, porque eu não pedi ingresso nesta guerra, neste tipo de guerra. Nem que a bomba de gasolina estoure no teu nariz, porque tu não pediste entrar neste tipo de guerra. Claro que somos também culpados, mas este tipo de guerra não se merece. Mas, que fazer, se o terror é semeado ocultamente, polos bispos, contra uma infância forçosa em cárceres educativos teocráticos. Que fazer se o terror adquire mais tarde a máscara de uma bomba de fósforo branco que monstruosamente abrasou corpos, de outra bomba que felizmente não cortou a carne, ou de um sequestro legal na manhã cinzenta de Compostela. Tudo é o mesmo terror, senhores polícias: não foram as vítimas quem inventaram as bombas. O Modelo foi criado por vós, e ainda vos funciona. Parabéns, tristes parabéns: bem sabedes que isto não é só um telefilme. Por isso, desde a distância do Discurso, eu creio compreender o que é um ataque físico de terror, deixar de respirar, e intuo que Maria A. nunca o perdoará. Porque ainda resta futuro, e exércitos de vários lados quererão forjar mais cicatrizes para medalhas. E a gente continuará a sofrer um excesso de abnegados funcionários da bala, heróis, salvapátrias. Saber isto não ajuda a compreender-nos politicamente, mas é quase o único que podemos constatar. Em toda lógica, daí à soberania da mente deveria restar pouco. Mas, alguém confia nesta frase?

Monarquia e racismo

Publicado em Novas da Galiza 36 (15 Nov. – 15 Dez. 2005), p. 15

Como pode uma pessoa chamar-se socialista ou simplesmente progressista e defender ou simplesmente aceitar a monarquia? Como pode alguém justificar com critérios democráticos que a máxima representação e poder de um Estado descansem sobre alguém que os obtém ou herda em virtude dos genes, da família, da classe social e do sexo? Digam os democratas, progressistas, socialistas e até comunistas todos que ainda há medo, sim, medo de falar, medo do exército (por exemplo), e compreenderei a sua posição. Mas não se justifiquem alegando que “o povo” apoia a aberração monárquica, porque, segundo isto, o “apoio do povo” também estaria por detrás do regime de Franco, do nazismo, de tantas aberrações como a clitorictomia, a amputação das mãos, a pena de morte, o escravismo, a invasão de Afeganistão, o massacre das Torres Gémeas, a lapidação das adúlteras e o encarceramento de homossexuais. E o próprio capitalismo.

A realidade é que a monarquia espanhola actual se sustenta em princípios literalmente racistas que não deveriam ter lugar em nenhuma sociedade chamada democrática. Quando a ciência genética quer destacar a essencial igualdade dos seres humanos, quando categorias como “raça” vão caindo nas fundas gavetas da história, numerosos territórios do mundo, entre eles a frágil amálgama chamada “Reino de España”, ainda conservam formas de estado intrinsecamente racistas, quer dizer, fundamentadas na diferença genética. Porque o racismo não consiste só na discriminação por razão das características morfológicas das pessoas: o racismo consiste na classificação social da gente por critérios genéticos. Como o sexismo, o racismo não é uma ideologia só discriminatória, mas é em primeiro lugar classificatória. Porém, a declinante categoria de “raça” é apenas o trivial resultado da concentração relativa de um conjunto de traços fisionómicos activados por vulgares genes que se transmitem na copulação. Porquê este ordinário acaso pôde chegar a ter algum papel na organização hierárquica da humanidade moderna, é algo que só surpreendidos historiadores da utopia futura poderão abordar.

A racialização das pessoas não é uniforme nas diversas sociedades. Nos EUA, por exemplo, é “negro” quem possui algo de “sangue” de escravos africanos, pois, em geral, os descendentes da união entre “brancos” européus e escravas africanas (o caso mais frequente, fruto de relações impostas ou de violações) ficavam com o grupo de escravos e eram socialmente “negros”. Consequência disto é a quase total correlação actual entre etnia afro-americana e classe baixa nos EUA. Em contraste, na Espanha colonizadora de América existia uma classificação escalar das “raças” em função das percentagens específicas de “sangue”: havia negros (com ambos progenitores “negros”), mulatos (um “negro”, outro “branco”), cuarterones (só um dos quatro avôs “negro”), indios, mestizos, etc. No regime nazista, por sua parte, demonstrava-se oficialmente “raça ária” com ter só os oito primeiros apelidos de origem germana. Parece que foi assim decidido por Hitler mesmo porque o seu noveno apelido era judeu. No nazismo, o “sangue judeu” limitava direitos ou condenava à morte, e o “sangue ário” concedia privilégios. E assim por diante.

Com efeito, nos sistemas políticos racistas, como o do “Reino de España”, a distribuição de “sangue” e genes limita direitos ou concede privilégios aos cidadãos: o racismo está inscrito na própria Constitución que impôs a monarquia. O facto é que a Coroa, quer dizer, a chefatura vitalícia do Estado e todos os poderes e privilégios que esta acarreta, se herda em virtude dos genes, e portanto a Monarquia vulnera frontalmente o princípio da igualdade perante a lei. O possível herdeiro (ou, já agora, a possível herdeira) deve ter “sangue” da gínea Borbón/Bourbon em Espanha, que, num dado momento, se fundiu, via Louis XIV Dieudonné de France, com genes da meia-irmã de Carlos II “el Hechizado” María Teresa de España, da rama Habsburg ou Áustria, descendente portanto de Philipp I von Habsburg “el Hermoso” e de Juana I de Aragón “la Loca”. Juan Carlos de Borbón, Felipe de Borbón e Leonor de Borbón y Ortiz são, portanto, descendentes directos dos Reyes Católicos, do Imperador Maximiliano I de Áustria e de Henri IV de Bourbon, entre outros. Vamos, como um sapateiro da Rua Real da Corunha ou uma limpadora da Rua Príncipe de Vigo.

Sabemos que na história dos Borbón e dos Habsburg houve grande endogamia, por mor de garantir o controlo dos domínios e a unidade do grupo genético que poderia herdá-los. Que na gínea Borbón actual haja mistura de genes e apelidos não empece a base racista da monarquia espanhola: É a presença de “sangue” Borbón que valida o privilégio (não “direito”!) à herança da Chefatura vitalícia do Estado, enquanto a presença de outro “sangue” (Ortiz, por exemplo) não invalida este privilégio.

Agora assistimos a uma ré-legitimação deste sistema anti-democrático por parte da partitocracia espanhola. Argumenta-se amiúde que a Monarquia deve continuar porque “o povo” assim o quer. Porém, na minha humilde opinião e experiência, o que a gente quer é simplesmente independência. O que quer é a auto-determinação e independência verdadeira, a da mente, a liberdade de união e desunião em todos os níveis sem figuras perenes de autoridade, a libertação do material, a liberdade de escolher representação se fizer falta, de auto-organização, de exercer formas de relação laboral sem exploração, a emancipação dessa prisão que é a desigualdade diária. A emancipação que no meu velho e estranho vocabulário é sinónimo de auto-gestão livre e colectiva.

E uma cousa parece certa: com Monarquia, emanada dum princípio discriminatório fundacional, nunca haverá tal independência da gente. Sem ela, já se verá. Mas é uma irresponsabilidade, até do independentismo galego, pensar que a forma de estado de “España” não deve ser uma prioridade política porque é assunto de outro “povo”. Isto seria não compreender a natureza da dominação política na Galiza. A Coroa garante constitucionalmente a unidade de “España”. Essa é a sua função primordial. E o exército é o seu braço armado. A pretensa “concessão” feita ao regime monárquico pola partitocracia espanhola há agora 30 anos já chegou longe demais. Sob o regime monárquico espanhol, um processo soberanista galego não tem qualquer hipótese de sucesso. Infelizmente, penso que só sem monarquia em “España” se poderiam abrir as portas à soberania dos súbditos (falo em tecidos sociais reais, não em “essências” étnicas também geneticistas) que agora constituem o que se chama a Galiza. Desde qualquer concepção da liberdade, interrogar publicamente e com intensidade o regime monárquico espanhol deveria ser uma prioridade.