A cabeça de Ernesto Vázquez Souza

Publicado no Portal Galego da Língua

Conheço pouco a pessoa, algo os livros, e muito a sua palavra recente (a palavra é sempre adversária dos livros), desde que ela nos invadiu nos foros onde estávamos a pascer tranquilamente no campo dos tópicos repetidos. Desde havia tempo Mário me falara ocasionalmente da sua cabeça, enquanto bebíamos um ritual vinho cada vez diferente, mas eu pouco a vira, só quando coincidíramos anos antes nos frios corredores da Faculdade de Filologia, aí arriba, onde havia sempre um inútil acto cultural a quem ninguém assistia se era organizado polos outros. Porque aí arriba na Universidade, que tão amiúde é um abaixo mental, um sempre é os outros, e os outros sempre são os outros. Eu penso que Ernesto devia ser dos outros, e falei tão pouco com ele como com Xosé María Dobarro, com quem a cabeça de Ernesto trabalhava. A Universidade era então um labirinto de graves inconexões eternas. Não posso dizer o mesmo agora, pois para haver graves inconexões deve haver nodos insulares. Agora a Universidade é um labirinto de vastas campas desoladas onde sempre se chega ao mesmo lugar sem mover-se.

Um dia, a cabeça de Ernesto Vázquez Souza chegou aboiando desde o exílio físico sobre os nossos ecrãs verdes onde hoje se inscrevem os furtivos pontos geométricos em que consistem as palavras. E chegou para ceivar sem piedade contra nós uma linguagem rebordante de história, de velhas vozes, de côncavas fotografias, de textos barolentos, de actos mortos que (diz ele) explicam o nosso presente: a cabeça chegou com uma constelação incompreensível de sentidos se um não está dentro da cabeça. E é difícil estar dentro da cabeça de Ernesto Vázquez Souza, até para ele mesmo: essa enorme biblioteca orgânica que chegou aboiando no ar à nossa rede de ar é um ser autónomo, que pesquisa sem cessar por todas as suturas dos volumes enquanto o próprio Ernesto mecanicamente move as folhas ou digita.

A cabeça de Ernesto falsifica dia a dia o nosso passado construindo um nós que nós mesmos não podemos enxergar. Não um “nós” que se possa colocar entre aspas, como acabo de mentir eu, nem um Nós em maiúscula, como sentenciou Risco quando fingia ser inadaptado, mas um outro nós social que eu humildemente ainda não compreendo mas intuo. Há uma raiz imensa que Ernesto está a escavar. Leva anos foçando na matéria húmida das páginas: velhas vozes, côncavas fotografias, textos barolentos, actos mortos. Ele escava e resgata, dispõe em barrocas geometrias, expõe à luz as ligações ocultas das faces humanas e sociais dessa história que leva décadas a respirar debaixo das fossas. E nós, imediatamente, a lermos o que Ernesto diz, esnaquizamos com olhos imaturos o sentido, porque o sentido vive ainda na cabeça de Ernesto Vázquez Souza.

Mas eu sei que algo fica para nós deste duro resgate e que, fio a fio, iremos aprendendo. Não a lermos, nem a falsificarmos o passado, que é o mais difícil, mas a escutarmos. Mesmo chegará um dia em que os populosos tratados que saem da cabeça de Ernesto Vázquez Souza sejam para nós (esse nós, quem sabe qual nós) transparentes. Cumprirá tempo, como cumpre tempo para construir a nossa rede de ar que captura ar mais denso, a única rede possível, a única que nos é permitida. Como Ernesto disse, falsificando as suas próprias palavras: não tem pressa. Deveremos forçá-lo ao afã, mas não à pressa. E enquanto exista o afã na cabeça de Ernesto teremos tempo.

Este texto não pretende ser um abominável panegírico, mas uma crescente evidência. Não é preciso ser vidente para compreender que algo se coze. A cabeça de Ernesto, a longa camarada do seu corpo em exílio, é uma esperançadora notícia, um início de século.