Língua e liberdade de expressão

Enviado a A Nosa Terra; rejeitado

     Estamos a viver provavelmente o momento mais transparente da história quanto às relações entre a “liberdade de expressão” (essa velha noção anglo-saxona) e o disciplinamento colectivo. A privatização do pensamento, e portanto da liberdade, acada inusuais níveis de clareza. Só têm liberdade de expressão aqueles que possuem os meios de expressá-la. O pensamento crítico é praticamente inexistente nos foros principais onde se forjam mais nitidamente os sentidos sociais que, através de complexos destilados ideológicos, se transformam depois em voto democrático. Se nos EUA é impensável criticar nos principais média os massacres militares contra tantos grupos humanos, no Estado Espanhol é impensável questionar o nacionalismo espanhol (quer dizer, defender consequentemente os nacionalismos “periféricos”) em espaços oficiais como El País ou El Mundo, e a cerimónia da exclusão repete-se a escalas progressivamente inferiores. Em La Voz de Galicia está vetada a crítica a Francisco Vázquez e a Fraga Iribarne, e ao que eles representam. O nacionalismo galego dispõe quase exclusivamente do foro de A NOSA TERRA, e neste, por sua vez, o espaço para a dissensão política, linguística e cultural é de cada vez mais reduzido.

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Da aberração ao quotidiano

Publicado em Lusografia.org • Na revista Em Movimento do Movimento Defesa da Língua, com variações

O quê dizer sobre a língua galego-portuguesa moderna na Galiza que não esteja já dito? Na realidade, as etiquetas “língua”, “escrita”, “lusofonia” ou “lusografia” reúnem tal quantidade de práticas sociais diversas (práticas de classe) que qualquer tentativa de descrição — e ainda mais de “defesa” — de uma ou outra não pode ser senão uma enorme redução, com objectivos também de classe. Por um vago princípio fujo de qualquer posicionamento que coloque a “língua” por cima das pessoas. A glorificação das línguas cobra tais dimensões entre as elites cultas de um país que só se pode entender como o seu exercício de manutenção da sua posição de classe. Argumentará-se (ou deveria escrever, lusograficamente, argumentar-se-á?; porque?) que dentro dos campos “lusógrafos” há variadas posições de classe, assim como dentro do campo “isolacionista” da Galiza na actualidade. Mas o que constitui estes grupos, estas empresas de actividade humana, é a sua penetração e intervenção na variedade da linguagem para reduzi-la a totem, símbolo, moeda de troco, e todas estas cousas à vez.

Infelizmente, a questão é mais singela que a sua representação social por grupos interessados na Língua como objecto. Tem-se dito tantas vezes e em tantos lugares ainda sem ler que sobejaria repeti-lo: há gente que tem e gente que não tem. Há gente que possui os meios de produção dos bens materiais e simbólicos e gente que não os possui. Não podia ser diferente no caso da língua. Não podia ser diferente na Galiza.

É apenas historicamente contingente que, na altura, a interpretação dominante sobre o idioma na Galiza o situe como um produto e artefacto cultural espanhol, embora sectores reintegracionistas e parte das elites isolacionistas privilegiadas o neguem, e, de boa fé, façam bastante (nunca se pode dizer “tudo o possível”) por resistirem contra as formas de fascismo encabeçadas por grupos e pessoas com nome e apelidos, como Manuel Fraga Iribarne. Podia ter sido de outra maneira: podia ter triunfado certa razão linguística e cultural lá por volta dos 70, ou mesmo depois, ou mesmo antes, pois também não vejo como inerentemente necessário que o projecto nacional espanhol precise de uma concepção puramente isolacionista do galego. Sempre é mais fácil predizer o passado, justificar pós-facto como os eventos foram hegelianamente necessários para este estado de cousas. É mais fácil, mas a profecia do passado é inútil. A situação está a ser assim, isso sim, e esta evidência é suficiente para analisarmos onde estamos e aonde irmos, se esse “mos” existe.

A concepção galego-portuguesa da língua (que reúne etiquetas temporariamente úteis, como “reintegracionismo” ou “lusismo”) não poderá estender-se no imaginário social sem uma séria penetração nas estruturas onde se gere a dominação. E para fazer isto precisará convencer as elites hegemónicas de que estas letras portuguesas que utilizo não são uma ameaça: não uma ameaça para o “Povo” ou o “Pobo”, não, mas para aqueles que constroem o Povo e o Pobo. Se estas elites estivessem dispostas a reconhecerem que o seu domínio sobre as cousas da língua é uma cousa trivial, a cerimónia da construção social de classe poderia tomar outros caminhos. Mas, se predizer o passado é inútil, lembrar o futuro é árduo: não há suficientes instrumentos para interpretarmos os poucos signos presentes acessíveis (signos há muitos, mas resistem-se à análise, portanto não são signos) que nos indiquem o quê vai acontecer no país daqui a dez ou vinte anos em matéria de ideologias linguísticas e práticas orais e escritas. Parece, sim, que desce o número de falantes nativos do galego. Mas também parece que na Galiza se escreve em português mais que nunca, relativamente a outros tempos e relativamente a usos não portugueses (quer dizer, usos isolacionistas galegos). O quê se faz destes factos? Caminhamos face a uma elitização maior da escrita galega na Galiza? Que significado tem isto para uma análise da reprodução de classes?

Obviamente, poderia propor uma alternativa emancipadora de signo muito diferente: uma sociedade essencialmente distinta onde o valor das letras, da alfabetização, da cultura escrita se situasse num nível de intranscendência agora indescritível. Mas não tenho nenhum argumento para justificar que, nessa sociedade, fosse esta concepção galego-portuguesa a mais razoável. Provavelmente nenhuma concepção da língua fosse mais “razoável” do que outra: simplesmente, as visões e práticas da língua aconteceriam. Quando a diversidade das condutas não afectasse à classificação social em ignominiosas escalas, é de supor que o mesmo aconteceria com as práticas da fala e da língua. Nessa hipotética altura, ser “reintegracionista” ou “isolacionista” seria tão pouco transcendente como caminhar mais lento ou mais rápido. Estamos muito longe desse lugar, não por mor da “Língua”, mas dos exércitos e dos santorais do mundo, que matam corpos e mentes e infectam com as suas hierarquias todas as actividades humanas.

Qual é, portanto, a situação actual da “língua” na Galiza? Em que estado de cousas devemos mover-nos? A situação linguística é, simplesmente, mais uma manifestação do controlo social, da divisão, da classificação e ré-classificação sociais. Esta dominação — este contributo da língua para a dominação — não é igual aqui que em outras formações sociais, nem pretendo sugerir isso: entrecruza-se de maneiras específicas com também específicas questões nacionais e de classe, que lhe dão a esta questione della lingua a sua complexidade e até matéria para o ocasional e fátuo brilho intelectual. Mas, essencialmente, na intervenção sobre a língua na Galiza também se trata da colonização da mente e da obtenção de capitais por sectores privilegiados. Reconhecer estes processos no espelho da palavra escrita deveria ser o primeiro passo para combatê-los, até por desídia. E, nesta pequena resistência, qualquer totalização é o pior adversário da razão. É claro que há projectos distintos dentro do campo cultural galego-português, como os há dentro do campo isolacionista. Mas acredito (intuo) estarmos num momento de especial fragilidade, de especial tensão política e intelectual, onde algo que poderíamos chamar “unidade de acção” faz-se um pouco mais importante. Deveria (poderia) ser uma unidade sobre bases amplas, como a clara revindicação da legitimidade, nas proclamas e na prática diária, e como a concessão do “benefício da dúvida” face aquelas posturas com considerável base social que ainda não compartilham o valor totémico da grafia “ã”. Explico-me? Na altura, na Galiza a primeira fronteira simbólica social dessa prática chamada “lusografia” na Galiza, à margem das nossas detalhadas análises (que existem) sobre o valor indéxico da escrita, passa pola aberração visual do “ç” cedilhado (e do “ss” duplo, do “m” final, etc). Como converter, em primeiro lugar, essas aberrações em normalidade quotidiana, dentro da nossa analfabetização maciça, eis uma parte inicial da questione della lingua. Uma parte muito pequena, contudo: infelizmente, “euro” e “cent” escrevem-se igual em toda Europa, e isso também (e sobretudo) é Língua: é O Discurso.