Le Pen, a Esquerda e Tu

Enviado a A Nosa Terra; não publicado • Publicado em NON!

Estes comentários sobre a vitória relativa de Le Pen na França soarão tão velhos a alguns como os princípios que sustentam a minha utopia razoada, esse projecto que nos legou Bourdieu para algo mais que conversas de salão (em Bourdieu, a utopia razoada era um sólido ideal político e social; na maioria dos que agora citam Bourdieu, é uma sonora expressão, como o seu nome, para aquilatar medalhas). O fracasso da “esquerda” e o pretenso fracasso da “direita democrática” frente à pretensa vitória relativa da “ultra-direita” são na realidade a consolidação do projecto de dominação a que ambas facções das classes dominantes levam empurrando o mundo nas últimas décadas. O argumento é singelo, e portanto não faz os quinze minutos de televisão, os pseudo-debates democráticos: O argumento é que uma “esquerda” que se dá a mão com o fascismo económico é cúmplice do fascismo, e uma “esquerda” que não apresenta mais do que retórica esvaziada de conteúdo é a peça fundamental que precisa a “direita democrática” para auto-legitimar-se, “contra o fascismo” que nos invade.

Com efeito, quando a análise política se reduz ao bisbilheio anedótico, quando se comentam as subas e baixas de Le Pen e Chirac, Aznar e Zapatero, Fraga e Beiras (ou Beiras e Rodríguez) como se fossem as subas e baixas da popularidade de Operación Triunfo ou Gran Hermano, o efeito não pode ser outro que o efeito brutal da teoria. A teoria é que todos somos iguais, e que em democracia ganha quem pode porque sempre ganha o povo com o voto. O efeito é que desaparece a utopia política, humana, social e histórica que informou tanto pensamento verdadeiramente criativo e revolucionário durante tantas décadas tão ultrapassadas polo novo escravismo de que somos cúmplices. A teoria e o seu efeito são que os “partidos” se definem por pequeníssimas questões que atingem aspectos marginais da existência: a quantidade de um subsídio de desemprego (não a ignomínia do desemprego nem a ignomínia do trabalho assalariado), a quantidade de semanas em baixa laboral por maternidade (não a função dos filhos como possessão do estado para a reprodução do sistema de segurança), a quantidade de papéis necessários para reclamar a “cidadania” (não o direito a mover-se livremente polo planeta, nem o dever dos estados opressores –todos– a garantirem a permanência na própria terra), e assim por diante.

Quando se ignoram os princípios da utopia razoada, Le Pen é apenas um acidente que reforça, como hemos ver, o grande monstro de €uropa. Le Pen ou Haider são o pretexto, não a ameaça. A ameaça está e continuará a estar dentro da partitocracia enquanto as poucas mentes lúcidas das “esquerdas” sigam a renunciar a um ideal que não lhes custa –sejamos sinceros– nada: Os intelectuais de “primeira” ou “segunda geração”, como os chamou Bourdieu, os “intelectuais orgânicos” gramscianos que ocupam a simbólica cimeira da pirâmide das suas classes respectivas, continuariam a exercer o seu sacerdócio (como já fazem periodicamente Chomsky, Said ou Galeano) com a mesma impunidade de consciência ainda se proclamassem esse resto de integridade política que mantêm, mesmo por nostalgia, no fundo de leituras e escritos progressistas. Onde estão os modelos económicos destes intelectuais, além da sua lógica e veemente oposição aos extermínios? Mas o possibilismo é uma serpe que se acosta contra os corpos dormidos na noite, que penetra o cérebro e o sexo e cresce para romper desde dentro a utopia razoada, que é nossa, da história, não dos seus pretensos salvadores.

A utopia razoada consiste em algo tão singelo que toda a maquinaria económica das sociedades de classes leva já mais de cem anos tentando destruir com milionárias videotecas de sorrisos e frases fáceis. A utopia razoada, o lugar nos mapas do socialismo de que falou Oscar Wilde, é simplesmente o convencimento íntimo e consequente de que a matéria e as forças do planeta são de todas as pessoas, e de que qualquer distribuição injusta e desigual dessa matéria atenta contra o próprio carácter da humanidade. Ninguém negaria, desde a razão (não desde o medo ou desde o possibilismo) de que o projecto de igualdade é o único razoável para a espécie humana e as demais. Eis o enorme potencial que tanto as “direitas” como as “esquerdas” institucionais se empenham em destruir constantemente para o seu próprio benefício.

Foram os chamados “governos socialistas” das cidades os que, no Estado, começaram a desmantelar o público e a aumentar a desigualdade com falsos booms económicos há um par de décadas. São os actuais governos das vilas e cidades os que também exercem contra a gente o mandato divino que lhes dá o voto. As palavras igualdade, revolução de classe, socialismo, desapareceram totalmente do discurso público. Na invasiva circulação do discurso legítimo, a menção de “classe” produz na intelectualidade aborregada e na plebe igualmente aborregada uma ladaínha de pseudo-explicações, escusas sobre a “dificuldade actual de definir as classes”, como para negar a evidência da injusta miséria. Agora que morreu Gramsci, que nasceu o pós-modernismo com Bill Gates, que o planeta se faz “tão pequeno” que compramos Kit-Kats com um euro pintado de flores de Finlândia ou águias alemãs, a classe é uma pesada lage conceptual que a esquerdinha não quer levar acima como um molesto resto de ideologia. Tudo se reduz a “direitos democráticos”, a “reconhecimento cultural”, à “integração das minorias”. Neste programado conflito entre conflitos, os interesses económicos confrontam tristes jornaleiras de Polónia contra tristes jornaleiros de Marrocos nos campos sudistas de fresas congeladas, confrontam máfias drogaditas de ucránios com máfias drogaditas de ciganos, moros contra cristãos e dépores contra barças no televisor congénito da mente. Tudo responde ao mesmo esquema infantil que inventou Abraxas e deu tanto fruto no concurso televisivo da política.

Por isso desce dos ceus Le Pen como sintoma, como polícia mau contra Chirac o polícia bom, ambos votados polos próprios torturados do euro. Aqui, dizem os listos, a “ultra-direita” não existe. Claro: está debaixo do uniforme de Jaime Pita, Pérez Varela ou Fraga Iribarne. A “direita democrática” leva o fascismo ideológico por debaixo porque por fora veste menos. E a “esquerda democrática”, o novo “nacionalismo da cidadania” que suplanta a força das múltiplas autodeterminações (o direito humano a ser oprimido como um queira) com um ambíguo direito ao boletim de identidade, dá-se a mão sem ideologia com a hidra reaccionária, que é (sem ironia) o “Pobo Galego” que a vota.

Companheiras e companheiros da “esquerda”: cada vez que matades a utopia razoada, que silenciades a necessidade indómita da total igualdade, aqui e alhures, nasce um Le Pen e ganha um Chirac: duas faces da mesma mo€da, que não deixa de ser a vo$$a. E a minha, que tenho o privilégio de escrevê-lo.