O tamanho não importa

Diz Antón Dobao num artigo de Vieiros (“Cousas pequenas“) que não merece comentário (não os permite) que as instituições autonómicas do Reino (Generalitat, Xunta) têm a potestade de enviar aos eventos internacionais (a féira do livro de Francoforte, por exemplo) representantes das culturas respectivas, e não da cultura española. Não precisava tantos parágrafos para convencer uma leitora ou leitor médio de Vieiros ou do Portal Galego da Língua sobre isto.

Diz Dobao que há línguas e literaturas pequenas, que considera a galega pequena, e reivindica esta pequenez. Tudo bem, o pensamento é livre. Eu nunca poderia concordar mais com ele que o tamanho não importa. Para os direitos linguísticos na Galiza, é irrelevante que a língua galega seja a segunda do âmbito românico e esteja entre as mais utilizadas no mundo.

Reivindica Dobao a atribuição das instituições autonómicas do Reino de subsidiarem as línguas e culturas (grandes ou pequenas) das nações sub-estatais, visto que do español já se encarregam as instituições centrais. Tudo bem, é uma legítima postura.

E assim progride o autor. E tudo bem: a construção do consenso entre os que resistem ou resistimos España vai por bom caminho.

Mas no último parágrafo Dobao não pode deixar passar a oportunidade de posicionar-se e posicionar outrem para segmentar mais uma vez o campo cultural galego legítimo com desenhos herdados doutras épocas:

“Por esa razón, como o obxectivo da política cultural das institucións galegas ha de ser o desenvolvemento do campo literario galego, ou sexa, da literatura escrita en galego, as axudas terán que apoiar a produción literaria en galego e non noutra lingua, sexa o castelán, sexa o portugués, sexa outra calquera”.

Aí falaches, Dobao. De novo, “castelán” e “portugués” são colocados na Galiza no mesmo nível de oposição a “galego”, na geometria triangular que caracteriza a subordinação ideológica à equação Língua = Estado. De novo, fica sugerido o protocolo da exclusão para aqueles grupos de pessoas, grandes ou pequenos (o tamanho não importa) que na Galiza, a escreverem “português” (e suponho que isto inclui a escrita actual da AGAL), procuram fazer cultura, que não falam habitualmente español, que não trabalham em español, que nunca publicaram uma palavra em español, que talvez até quiseram ser lidos polas mesmas poucas pessoas (o tamanho não importa) que lêem Dobao, ou que talvez até partilhem da tradição cultural e literária galega de Dobao. Mas, ah, eis a velha construção da “estrangeirice”, de que escreveu um bom poeta nunca subsidiado, Mário Herrero.

Assim, mais uma vez, alguém defende que a Xunta autonómica do Reino deva continuar a ser coadjuvante do extermínio cultural, a negar uns euros a projectos de base e a superviventes editoras que, no exercício do mais elementar direito de liberdade ideológica e de raciocínio, interpretam “língua” como “língua” e não como “ortografia”. E, mais uma vez, uma voz escrita dum sector grande ou pequeno (o tamanho não importa) do pretenso nacionalismo linguístico galego é cúmplice do patente nacionalismo ortográfico español.

Porque, que é o que temem aqueles que negam subsídios a, por exemplo, um magro livrinho de contos (o tamanho não importa) em “português” (isto é, em ortografia de Portugal ou semelhante)? Por que não querem que esse livrinho apodreça, como tantos outros em ortografia da RAG, nas escassas estantes das bibliotecas públicas, dos centros escolares? Por acaso temem que enormes quantidades de quartos públicos se desbanjem numa minoria cultural (o tamanho não importa) que deseja, simplesmente, ser tratada igualmente mal polas instituições autonómicas do Reino e ter direito de acesso aos mesmos recursos? Temem que os parvos leitores de “português” trabuquem os países e, a sairem da biblioteca em abdução republicana, procurem confusos na rua a ubiquação do lisboeta Terreiro do Paço em lugar do corunhês Campo da Lenha?

Ou, antes, temem que, de aceitarem os subsídios à literatura em “português” na Galiza, se veriam forçados a explicar como é possível que algo tão terrivelmente distante do galego-RAG possa ser subsidiado enquanto algo tão próximo do galego-RAG como é o español-RAE não deva sê-lo? Quer dizer: se pensas que a língua e a literatura são simples ortografia, e subsidias uma ortografia estrangeira (a literatura em “português”), como não vais subsidiar uma outra forma da ortografia própria, a literatura em español?

Eis o dilema em que uma minoria social (o tamanho não importa) defesora da ortografia RAG se acha. A solução final?: a inexistente Equidistância naquilo que não tem equidistância; querer as ajudas para eles próprios (as editoras Galaxia, Xerais etc.) mas negá-las a outrem; negar-se a concorrer livremente no Mercado Simbólico da Língua Galega que dizem rejeitar mas concorrer nele com vantagem (a ver: intervencionismo sim ou não?); em definitivo, assumir e defender a lógica do Reino que dizem interrogar. Proletários da língua própria, ou capatazes da imprópria?

O tamanho do subsídio e da língua que o lambe não importam. O direito a aceder às mesmas lambonadas (e até o prazer de refusar solicitá-las) em igualdade de condições, sim. Os nossos eurinhos valem tanto como os vossos, Dobao. Não quererás ser como aquele convencido galeguista que um dia me espetou que ele pagaria o salário dos lusistas “con billetes de Monopoly”.

De imagem, linguagem e identidades: Yolanda Castaño vs. Os Aduaneiros

Estes dias remexe parte da opinião pública galega a decisão do lugar web satírico-humorístico Aduaneiros sem Fronteiras na sequência de umas cartas do advogado da poeta Yolanda Castaño requerindo que eles retirassem uma animação “flash” sobre ela e uns comentários anónimos e públicos que Castaño considerou ofensivos. O que está em jogo neste assunto é a dialéctica entre as imagens públicas de um e outro agentes (Castaño e os Aduaneiros), e o tipo exacto de acção que o representante de Castaño levou a cabo com as suas cartas (“ameaça”, “advertência”, “recomendação” ou “conselho”). Em breve, entram em relação três elementos: a imagem pública, as linguagens verbal e visual, e a identidade.

Da Imagem

O sociólogo canadiano Ervin Goffman elaborou no conceito de imagem pública ou face, adaptado de expressões da cultura chinesa “ter face” (ter imagem), “estar em face”, etc. Por simplificar, chamarei-na “imagem”. Contra o que se possa pensar, a “imagem” não é apenas qualificável de ‘boa’ ou ‘má’, ou outras qualidades, mas é um conjunto de atributos que uma pessoa tem e/ou que os outros supõem que tem em virtude do que Goffman chamou o “curso de acção” desta pessoa, quer dizer, a trajectória dos seus actos. Esta trajectória cria noutrem uma expectativa de conduta futura. Por exemplo, se alguém e habitualmente generoso, ser tacanho um dia pode romper a sua “imagem” e, em palavras de Goffman a imagem pode ficar danada.

A imagem, como recurso, cultiva-se, elabora-se, protege-se, defende-se, etc., mas também pode ser ameaçada e em consequência danada. Mas, contra o que se possa pensar, uma ameaça à imagem (por exemplo, um insulto) não pode danar potencialmente apenas a imagem da pessoa insultada, mas também a da pessoa que insulta. Os antigos “manuais de civilidade” burguesa destinado a meninhos ou senhoritas sabiam isto muito bem, a recomendar a “boa conduta” social polo próprio bem da pessoa.

A imagem é frágil, vulnerável, e portanto os humanos cuidam muito de protegerem não só a imagem própria, mas também das pessoas próximas. Evidentemente, os ataques existem, e estes ataques, em ocasiões, podem até reforçar a imagem do atacante se, por exemplo, são coerentes com o seu “curso de acção” anterior. Um ariete dialéctico no parlamento, tipicamente os porta-vozes dos partidos, devem ritualmente atacar a imagem do adversário, e fazendo assim, reforçam a imagem própria.

Algo disto é o que aconteceu neste assunto. Os Aduaneiros atacaram a imagem de Yolanda Castaño com a sua sátira gráfica consistente em fazer mudar as roupas da poeta (casacos, pantalões, saias…) recolhendo, precisamente, aspectos do que eles consideram ser a imagem pública de Castaño: a mudança de roupas é tanto uma metáfora da sua conduta no assunto de Sargadelos quanto um ícone da prática percebida habitual em Castaño de destacar a sua estética pessoal, autorreferencialidade também presente na sua poesia. A animação gráfica, por exemplo, contém prendas idênticas às que a aparecem nas fotografias de Yolanda Castaño na sua própria página web (uma saia azul, um pano de pescoço, uma blusa…). Portanto, igual que no humor verbal, aqui a sátira consiste em jogar com os duplos sentidos de “mudar de casaco”. Os Aduaneiros subvertem esta auto-referencialidade e esta reflexividade de Castaño, fazendo dela um brinquedo de outros (como já teria sido um brinquedo da Galeria Sargadelos, na sua “traição”), e esvaziando-a assim de poder.

Por sua parte, Castaño ataca a imagem dos Aduaneiros tentando deslegitimar a sua criatividade, a sua identidade (mais sobre isto depois): tentando, em definitivo, impor neles uma outra linha de acção, com uma intervenção do seu advogado Pablo Carvajal: a retirada desta gráfica e dos comentários anónimos que ela julga ofensivos (e que não são responsabilidade dos Aduaneiros), e que, como a gráfica, também “ispem” Castaño dos seus atributos simbolicamente, a revelarem aspectos sua imagem íntima. Mas enquanto estes comentários são públicos, espi-la na gráfica é um acto privado que, presumivelmente, ratos e cursores sobretudo masculinos terão feito.

A maneira como Castaño tenta danar a imagem dos Aduaneiros é, entre outras, a meio duma carta que merece atenção à parte.

Da Linguagem

A carta do advogado, que reproduzem os Aduaneiros, é um acto chamado directivo que, com uma força por determinar, quer obter como resultado que os Aduaneiros retirem tanto a gráfica como os comentários. Os Aduaneiros, nos seus comunicados, chamam isto uma “ameaça”. Yolanda Castaño chama isto uma “petição”. Na realidade, trata-se de uma advertência.

Uma ameaça é um ataque directo à face ou à integridade de alguém: “Vou-te matar, faças o que fizeres”. Uma petição parte do poder assumido no interlocutor: “Podes passar-me o sal? Se queres ou não, é decisão tua”. Uma advertência é como uma ameaça (um acto negativo para o destinatário) mas contém uma condição a cumprir: “Se não move o seu carro da minha garagem, chamo à polícia”.

As palavras do advogado são uma clara advertência:

“Nuestra intención es solventar esta cuestión de la forma mas amistosa posible, sin tener que recurrir a la via penal por un delito de injurias con publicidad, por ello en el plazo máximo de 10 dias desde la notificación de esta misiva, le aconsejo que retire de la web cualquier alusión a la persona de mi representada, así como dicho montaje de “cambiado de ropa”, fotos, etc.”

Para quem ameaça a imagem dos Aduaneiros, “solventar esta questão amigavelmente” consiste em não ter que recorrer à “via penal”, e isto está condicionado a uma acção por parte dos Aduaneiros a cumprir, além, num prazo dado. O “conselho” parte duma assumida posição de maior poder por parte de Yolanda Castaño, e portanto representa uma coacção. Eu, por exemplo, posso “aconselhar” um gigante a retirar-se do meu caminho e só provocarei a sua hilaridade; mas, como professor, sei que “aconselhar” a meus estudantes a apresentarem um dado trabalho significa que, caso de não o fazerem, há uma consequência negativa (uma nota mais baixa) que eu posso dissimular como emanando dum sistema do que não sou responsável. Da mesma maneira, um advogado percebe que as possíveis consequências negativas sobre a outra parte não emanam dele, mas do sistema, e são fruto de uma acção primeiramente negativa por parte do outro. Evidentemente, um estudante sabe que a minha “coacção” pode ser cumprida, visto que o seu papel no sistema é cumpri-la. Mas um lúdico Aduaneiro não vai pensar que o seu papel no sistema de acções positivas e negativas seja cumprir os “conselhos” da parte, precisamente criticada, e sabe que o seu trabalho é, precisamente, exercer a liberdade de expressão dentro do universo possível do humor onde se vulnera (e se espera que se vulnere) a ordem semântica por sistema. Portanto, para um Aduaneiro que fez bem o seu trabalho o “conselho” de um advogado é uma coacção.

Perante esta coacção, os Aduaneiros têm várias estratégias para restaurarem a sua imagem: pedir desculpas (as imagens de ambas partes ficariam restauradas), “contra-atacar” com mais sátira (demonstrando que são coerentes com a sua identidade, mas arriscando-se a consequências negativas) ou, como neste caso, evitar a consequência negativa abrindo, como dizem, um “juízo público”. O que os Aduaneiros estão a dizer com o seu feche é que eles exercem a sátira, não o jogo judicial. É evidente que a coacção de Yolanda Castaño é altamente ameaçante para a sua imagem, como seria para a poeta uma grande ameaça a sua imagem o hipotético “conselho” por parte da Conferência Episcopal de que retirasse tal ou qual poema erótico por ofensivo, sob advertência de iniciar contra ela um processo penal por atentado à moral.

Das Identidades

Porque o “delito de injúrias” é um dos mais insidiosos do Código Penal español. A injúria é uma forte ameaça à imagem pública. Porém, a natureza desta imagem depende em grande medida, precisamente, da natureza dos actos públicos da pessoa ameaçada. Se alguém publica na Internet um forte ataque contra uma pessoa comum da rua que não tem qualquer projecção pública além da sua família e os seus amigos, evidentemente há uma utilização malintencionada dos poderes da Rede para fazer dano. Mas a imagem tanto de Yolanda Castaño quanto dos Aduaneiros é resultado dos seus respectivos cursos de acção públicos, sujeitos ao escrutínio de um número previamente sem determinar e sem delimitar de pessoas, potencialmente muito grande (a diferença de uma família ou de um grupo de amigos). Se um escritor qualquer qualquer se “ispe” emocionalmente nas suas publicações e um humorista qualquer “ispe” a sua ideologia nos seus desenhos, não admira que ambos actos sejam recursos aproveitáveis para o confronto.

A questão, portanto, é o escopo desta imagem, quer dizer, a sua amplitude social, o número de pessoas que potencialmente podem perceber (e produzir) esta imagem. E a questão está intimamente ligada com o escopo das identidades que se projectam. A antropóloga norte-americana Judith Irvine explicou como uma identidade pública formal, por exemplo “ser alcaide”, “ser professora”, se baseia em que a pessoa estabelece uma relação com um número amplo de outras em função dos actos (e do seu tipo) que exerce para/face a elas, e é para estas pessoas para quem “ser alcaide” ou “ser professora” é relevante. Cada um de nós “somos” muitas cousas. Mas selectivamente invocamos (diz Irvine) uma ou outra identidade, quer dizer, fazemo-la relevante.

Os Aduaneiros são “humoristas gráficos”, e a amplitude desta identidade alcança as pessoas que visitam a sua página ou que a conhecem. Os que lêem a página são “leitores” ou “espectadores”, não “humoristas”, embora possam ser muito engraçados nos seus comentários. E Yolanda Castaño é “poeta”, é “escritora”, é “apresentadora de televisão”, é “directora de galeria cultural”, é “vídeo-artista”, além, claro, de ser “mulher”, “galega”, “jovem” e outras identidades.

Mas, em virtude de qual destas identidades viu Castaño ameaçada a sua imagem? Como “poeta”? Como “mulher”? Como “directora de galeria de arte”? Ou como uma identidade que resume alguma destas, a de “figura pública”? A sátira dos Aduaneiros, em consonância com a prática global de Castaño, brinca com algumas destas dimensões, a espi-la como “mulher” pola sua “traição” como uma “directora de galeria cultural” que, como “poeta”, apoiara anteriormente o defenestrado Isaac Díaz Pardo. Com efeito, Castaño mesma faz relevante a sua identidade como “mulher” quando é “poeta”, e, na intertextualidade da sua obra, também é “poeta” quando é “vídeo-artista”. Portanto a sua reacção indica que ela recolhe a amplitude da identidade que os Aduaneiros fazem relevante (“figura pública”) com a que brincam os Aduaneiros.

Mas, pode Castanho como “mulher” levar adiante um processo legal viável contra os Aduaneiros, alegando que a sátira é sexista? Pode fazê-lo como “poeta”? Ou é sobretudo como “directora de galeria artística” que procura reforçar a sua imagem, para desbotar sombras da sua “traição” e assim reforçar esta identidade e portanto a imagem da empresa para a que trabalha?

O tempo dirá. No entanto, a minha opinião como estudioso do discurso é que Yolanda Castaño, a quem apreço pessoalmente tanto como apreço os Aduaneiros, fez o que Goffman chama um faux pas social: literalmente, um passo em falso que dana mais do que reforça a sua imagem (à margem do resultado dos procedimentos jurídicos que houver), a dar mais publicidade à gráfica e aos insultos à sua pessoa da que tivera antes.

Porque a efectividade do inteligente dictum de Oscar Wilde “O importante é que falem de um, ainda que seja para bem” tem um requerimento prévio importante: ser um maldito, e reforçar a imagem provocando ainda mais crítica. Se Goffman estivesse vivo, penso que me daria um Aprovado na diagnose: perante a hipótese de Castaño danar a imagem dos Aduaneiros metendo um advogado para reforçar a própria, o mais inteligente teria sido a estratégia que se chama evitar o dano, isto é, o elegante silêncio.

O enfrentamento dos salva-pátrias

Publicado em Vieiros

Não serei eu quem defenda a organização Batasuna, cujos elementos de messianismo ideológico estão muito longe do meu ideário político, mesmo sendo consciente como sou da distorção sistemática a que as suas palavras e ideias estão submetidas polo império mediático español. Mas, se de abominar dos messianismos se trata, não esqueçamos nunca a postura e os actos da Audiencia Nacional deste Reino, com figuras como Baltasar Garzón ou Fernando Grande-Marlaska que têm tanto poder efectivo em remexerem o ambiente social e as nossas próprias mentes com a aplicação, sempre política, das leis do Reino. O auto de Baltasar Garzón para o encarceramento dos líderes de Batasuna, tal como o conheço pola edição impressa de EL PAÍS, é um exercício de uma natureza tão ricamente visionária que nos ilumina para sempre (quer dizer, até que mudem as directrizes policiais) o panorama próximo da violência (a de Estado e a outra) neste Reino de salva-pátrias. Porque, quando começavam a cheirar a cinza velha (como após uma adolescente fogueira) as imagens de Juan Carlos de Borbón, Garzón faz-nos gozar com mais uma historieta, com um texto escrito na mais peculiar gramática da língua do império, e com o recorrente leit-motiv jurídico e quase-literário de que Batasuna se reunia para “abordar el enfrentamiento”. Certo, diz EL PAÍS que esta frase está escrita a mão nas margens dum documento interno de Batasuna apanhado pola polícia na reunião. Mas esta frase é motivo para chamar Batasuna ETA, ou ETA Batasuna, ou para redesenhar a geometria dos “entornos” políticos (se se lê o auto com atenção), onde umas vezes Batasuna é ETA e portanto está dentro de ETA, outras está fora mas é de dentro, e ainda outras (quando procura a paz) está dentro mas quer estar fora, e assim por diante. Poupo aos leitores o desastre cognitivo de pretender compreender esta geometria imposta pola Audiencia Nacional e pola Lei de Partidos, uma nova geometria moderna que tão proveitosa resultou sempre para os Estados militares definirem à vontade a identidade delituosa dos sujeitos (veja-se, sem ir mais longe, a ordem pós-euclidiana do “Eixo do Mal”, a criação discursiva de “Al-Qaeda”, o “terrorismo internacional”, e outras ameaçantes construções fantasmagóricas que o jornalista Adam Curtis se encarrega de revelar no documentário The Power of Nightmares).

Não é preciso ser muito inteligente para imaginar o que se esconde após uma expressão política como “abordar o enfrentamento”. Duvido poderosamente, por exemplo, que as diversas instâncias do Estado e dos partidos não concebessem a situação política depois da bomba massiva de ETA em Dezembro de 2006 como uma nova fase marcada polo confronto. Os representantes políticos voltaram a empregar escoltas, reforçaram-se as medidas de auto-defesa, reanimou-se a violência jurídica, e a tensão voltou a notar-se na vida e sobretudo nos catequéticos jornais españóis que aos súbditos do Reino nos amargam o chá e a cálida torrada da manhã. Quem recomeçou essa nova fase e esse tipo de enfrentamento, com uma bomba brutal que assassinou duas pessoas? Evidentemente, a ETA. Mas, colocou esta bomba Batasuna ou a sua “cúpula”, curioso elemento arquitectónico dos partidos que remete para um templo em lugar de para uma rede de pessoas? Se Batasuna o tivesse feito, toda a Audiencia Nacional, a Fiscalia do Reino, os governos español, basco e madrileno e o Chefe do Estado deveriam estar todos na cadeia por flagrante e cúmplice negligência por deixar Batasuna livre. Porque, se reunir-se para “abordar o enfrentamento” é uma actividade “presuntamente delituosa”, mais presuntamente delituoso será desmembrar duas pessoas com uma explosão que esnaquiza um enorme estacionamento. Em resumo, se Batasuna é ETA, todos os seus membros, do começo até ao final, para a cadeia. E, se não é, a calar e a deixar-se de interesseiras hipocrisias e de linguagem perversa.

Portanto, calculo que concordamos que nem Batasuna nem o Estado Español são os autores nem os culpáveis da bomba da ETA que reiniciou o “enfrentamento”. Mas as novas condições políticas, herdadas dum patético “processo” encaminhado por parte do Estado sobretudo para inocular ainda mais confusão mental numa massa de súbditos já descerebrados, inauguraram um tipo de “enfrentamento” do qual não pode escapar nenhum dos dous agentes salva-pátrias desta guerra: os braços do Estado, e a patriótica (“abertzale” é uma desnecessária dissimulação) esquerda basca. Seria ridículo negar que ambos rivais vêem a situação em termos de confronto jurídico, político, e físico, quer dizer, numa relação de tensão definida pola violência: ataques físicos e verbais, privação ou coerção da liberdade doutrem, violação de direitos, exploração da propaganda como método, etc. etc.

Dificilmente a constatação deste confronto, e a vontade duma organização como Batasuna de “abordá-lo”, se pode ver como um argumento de peso como indício delituoso para uma mente racional, em ausência de detalhes explícitos na planificação do enfrentamento. Num enlamado totum revolutum que lembra mais uma fatwa que um texto jurídico, o auto de Garzón coloca lado a lado o “enfrentamento” com, por exemplo, a táctica política de Batasuna de aproveitar as mobilizações contra o AVE. E o tremendista órgão da direita intervencionista EL PAÍS, que já não sabe que hollywoodiano cabeçalho colocar agora que o Público regala DVDs, eleva ao cubo o poder evocador do “enfrentamento” reiterando-o várias vezes na notícia.

Os tristes gudáris de Batasuna, a desafiarem a lei dum Estado em que não acreditam, reuniram-se com suficiente luz: foram dous vizinhos da vila quem solicitaram o local do concelho para a reunião. Talvez se solicitou com qualquer escusa, nem sei, nem tem importância, mas calculo que como acto político da patriótica esquerda basca. A “cúpula” de Batasuna não se reuniu nos montes ou em majestáticos zulos habitacionais como os que, diz a lenda, tinha Ali-Babá-Ben-Laden nas montanhas de Tora-Bora, nem se reuniu num desses remotos e exóticos caseríos de petrúcios a que a imaginaria española nos tem habituados como campos de treinamento onde –pontifica a porta-voz do dogma da Transición Victoria Prego– se forjou a aliança de civilizações católico-etarra. Estranha maneira a da “cúpula” de Batasuna de pertencer a ETA para planificar o enfrentamento: num local dum concelho basco.

É difícil entrar nos mundos imaginários respectivos em que combatem estes dous messianismos: o do Reino de España, e o dos gudáris bascos. Devem ser territórios nacionais míticos habitados por tantos seres fabulosos e alimárias tolkenianas que a zoologia e a teratologia do nacionalismo precisariam ser reescritas. Mas um pobre súbdito como eu reage hoje assim, com a fúria das palavras, porque está canso de ser sacudido dia sim e dia também polas hostes habituais de salva-pátrias: os que levam na mão as leis do Reino Borbónico como a Lei de Deus que a invenção do “pueblo español” votou (dizem) em constituições e eleições e outros ritos de sujeição masoquista, e os que levam na mão e nos papéis uma ideologia também redentora (isto é, também nacionalista) composta apenas de quatro palavras primitivas, quatro noções sobre o que é ser pessoa, sobre o que é a acção política, sobre o que sejam as formas das identidades sociais. As mentes de todos os salva-pátrias são, felizmente, inescrutáveis. Mas, infelizmente, ainda projectam sobre nós, dia após dia, cada manhã, quando com toda a burguesa ingenuidade queremos abordar o habitual enfrentamento gastronómico com um chá e uma cálida torrada com manteiga, a sombra dum mundo repulsivamente repetitivo, circular, cansativo, brutalmente elementar como a esquálida mente e os actos de todos os guerreiros.