Os Balcãs: Outra guerra de classe

Publicado em Çopyright 71, 24 Abril 1999 • N’A Nosa Terra

Entre as características mais notáveis dos discursos actuais sobre a guerra em Jugoslávia, surpreende ver a omissão quase total da questão económica. Perante a afirmação de que também na guerra em Kosovo e Sérvia há bases económicas, tanto a direita quanto a “esquerda” parecem reagir com incredulidade, se não com clara oposição. Mas a omissão ou a negação da dimensão económica no discurso público são reveladoras. O Secretário Geral da OTAN, Javier Solana, em entrevista na TVE-2 de Espanha no programa “El Tercer Grado” (15-Abril-99) diz explicitamente “Esta guerra não é polo petróleo ou polos recursos naturais: é uma guerra polos valores humanos”. Se a deciframos minimamente, a afirmação implicita um ingénuo reconhecimento de que outras guerras semelhantes sim que foram e são polos “recursos naturais”. Perante esta descrição de Solana, um vê-se forçado a tentar compreender por que esta guerra especificamente não seria polos recursos naturais; quer dizer, um vê-se forçado a procurar as (inexistentes) circunstâncias peculiares polas quais a expulsão e o massacre de centos de milhares de kosovares das terras em que habitavam, e o intuito dos exércitos europeu e americano de, aparentemente, devolvê-los a elas, não seria um conflito económico. Eu pessoalmente não conheço nenhuma guerra que não seja económica, e a explicação é singela: nas sociedades de classes (todas), na matança de outros seres humanos há grupos armados que actuam como instrumentos de elites económicas e políticas para a apropriação de recursos e para o mantimento de regimes economicamente injustos (todos). A guerra armada é um produto da lógica de exploração que começa na submissão ao roubo do trabalho assalariado.

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Kosovo e Sérvia: Os exércitos contra os povos

Publicado em Çopyright 70, 10 Abril 1999 • Em Non! • N’A Nosa Terra

Quando se leia este texto, provavelmente a intervenção por terra da OTAN em Sérvia e Kosovo já estará decidida ou será um feito. O estado russo já estará a emprestar o seu apoio ao exército sérvio dalguma maneira, provavelmente na forma de contingentes humanos.

A guerra contra os povos em Sérvia e Kosovo convoca mais que nunca a uma aliança mundial anti-militarista, à renovação da utopia libertária baseada nos mais singelos princípios da liberdade, a igualdade e a justiça ética. O conflito está desenhado para reforçar a dependência das populações ocidentais do aparelho militar e do discurso democrático, numa era em que cresce o anti-militarismo de base mercê a essa ambiguidade de que os soldados, simplesmente, deixam de fazer-se necessários para matar. Frente ao horror bélico cultivado polas elites dos estados, as sociedades civis dos países afectados vêm-se forçadas a posicionar-se diversamente, num maniqueísta jogo que só favorece a cultura da violência de estado. É o mesmo dispositivo ideológico interpelador que leva operando com êxito em Euskadi desde há 30 anos e que a ideologia política nacionalista basca agora tenta desactivar com o projecto ilusório duma Grande Euskal-Herria.

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Biafra, sempre

Quando contemplo em detalhe o granulado fotográfico daquele meninho totalmente despido de Biafra que retratou McCullin em 1969, ou o corpo calcinado polo napalm do paradigma do terror que foi a meninha vietnamesa a fugir pola estrada borrenta, compreendo com uma força aterradora que o meu próprio privilégio de falar é a essência pura do fascismo. Sem tristeza, com a raiva dum cérebro impotente, debato-me entre a adesão ao Acaso mais inapelável ou a adesão à História. É redundante lembrar que esse meninho poderia ter sido eu, e que o meu corpo poderia ter sido aquela meninha: carne obscenamente nua, carne expiatória, desaforada mancha ética, epítome da barbárie que desde a origem do tempo não cessou.

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Um panfleto: Em favor da insubmissão

Publicado em Çopyright 4

Em 8 de Maio de 1997 teve lugar num pub da Corunha um acto convocado pola Assembleia Nacional de Objecção de Consciência (ANOC), com motivo de uma série de juízos contra insubmissos que se estão a celebrar na Galiza. Este texto foi lido nesse acto.

Ainda que poda parecer excessivo, é um grande motivo de honra e satisfação para mim ter sido convidado a este acto contra a barbárie, a este espaço reduzido, minoritário como é sempre o espaço social onde começam as verdades. Convidou-se-me a ler poesia ou outra cousa, e eu escolhim outra cousa porque para mim na actualidade só existem duas formas literárias úteis para a emancipação humana: a poesia e o panfleto. Este texto quer ser um panfleto. Só lamento que não esteja impresso em borrenta letra azul de multicopista fatigada, lamento que não circule de mão em mão nervosa pola obscuridade das ruelas interiores, e lamento não ter medo de ser detido agora polo exército, porque as palavras que aqui dizemos são clandestinas e mereceriam ser tratadas como tais. A liberdade real não consiste em poder dizer o que queremos: a verdadeira liberdade consiste em não ter já necessidade de dizê-lo.

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Prisioneiros do Discurso

Publicado em A Nosa Terra, 15 Maio 1997, p. 6

Aos desaparecidos

Este artigo ia-se intitular, por exemplo, “A clandestinidade da literatura galega”. Durante vários dias alimentei a trivialidade do tema, como se fosse interessante ou mesmo essencial. Percebim, nas minhas visitas a alguma livraria, a segregação dos volumes em ghettos políticos (Ficción, Viajes, Gallego), e percebim a mimética reprodução desta hierarquia na livraria galega que existe: Poesia, Novidades, numa mesa aparte Portugués. Polas manhãs, através dos pátios interiores, escoitei mulheres de antiga estirpe camponesa a cantarem sevillanas, emulando luminosos concursos televisados ou a ilusão por uma triste filhinha maquilada que aprende a ser sexual perante o poder fálico dos focos, perante Deus e a Monarquia. E polos corredores da universidade comecei a ver cartazes que anunciam os actos do grande Dia das Letras, a nossa miragem anual, com os repetidos nomes de conferencistas sempre agrupados em triunviratos de amor pola cultura. Na letra pequena dos cartazes figura muitas vezes o logótipo do governo que votámos.

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A sociedade militar

Enviado a A Nosa Terra; não publicado

O exército é sem dúvida a instituição mais repugnante jamais criada pola humanidade. O que começara como guerras locais entre espécies ou bandas tornou-se, com o decorrer da barbárie humana, na indústria mais poderosa do planeta. O grau de sofisticação dos instrumentos de destruição e morte é algo tão arrepiante que só nos pode levar a duvidar do sentido do universo. Há armas que estragam desde dentro, deixando cavidades irreparáveis na epiderme. Há armas de metal pequeno que furam os caminhos harmoniosos do corpo e rebotam deixando ao sair ronséis vermelhos e retalhos de carne. Há armas que estouram ao pisá-las sementando de órgãos sanguinhentos as areias. Há armas que matam lentamente; na sua agonia atómica, o corpo perde a pele e os cabelos e remata a vida entre vómitos vazios, impotentes. Há armas que matam muitos anos depois, de cancro e de cegueira. Há armas que deixam mapas queimados na pele, como metáforas macabras dos territórios ocupados: a Beira Oeste, a Faixa de Gaza, Panamá, Kuwait, Irlanda. Há armas que asfixiam e armas que desmembram. E há armas legais que assassinam nas câmaras esterilizadas dos presídios, armas que electrocutam com consenso, armas policiais que derrubam desesperados ladrões urbanos na cumplicidade da noite, armas conjugais que deixam uma mulher a dessangrar-se nos labirintos grassosos da cozinha, armas anatómicas que violam meninhas de dous anos, armas de tinta que assinam execuções e masculinas leis injustas.

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Viet-Nam, 1936

Publicado em A Nosa Terra 353, 8 Setembro 1988, p. 20

O Horror só tem um nome múltiplo mas idêntico que levamos inscrito na pele da mão, que espero que jamais desapareça da memória, que merece permanecer, e doer, e fazer que às noites nos ergamos de súbito dum pesadelo de fogo e fumo e rebúmbio infernal de gigantescos insectos bombardeando com morte corpos sem defesa. Esse nome idêntico é mil novecentos e trinta e seis, é Viet-Nam, é a odiosa guerra suja da Argentina, é o Golfo Pérsico onde os rapazes impúberes são enviados a acribilhar velhos sem esperança de voltar. O nome de Viet-Nam, simplesmente, resume uma era monstruosa. Os milhões que dalguma maneira vivemos um viet-nam pessoal composto de experiências ou memória temos a necessidade íntima e a obriga histórica de lembrá-lo, para que os monicreques imberbes que exibem os atributos sexuais dos seus ciclomotores em frente das cafetarias da cidade não esqueçam jamais de onde vêm, quê devem à nossa história assassina, como se mataram as famílias numa alvorada preta que só aos ingénuos lhes parece ridículo lembrar.

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