Publicado em A Nosa Terra 646, 3 Novembro 1994, p. 15
Caminho polo meu bairro semi-urbano, nem carne nem peixe, agora cemitério de concreto que fora bosque de alcalitos e antes, quando os povos ainda conversavam, deveu ser mesta fraga, e escoito às minhas costas a dous cativos falarem com normal espontaneidade no que ainda se reconhece como galego: singelamente, sem mais volta de folha, nesse português nosso que espanhois de todas cores nos querem extirpar. Viro a cabeça e observo a rapaz e rapariga: são ciganos, ou mohinantes, esfarrapados da língua. Volvo caminhar e, com mágoa, compreendo: o português da Galiza sobrevive sustido por dous extremos, como a sociedade capitalista feroz se mantém na mais aguda contradição da miséria do ghetto e a luxenta dilapidação do Village de Manhattan. Aqui os extremos são, por uma parte, o neo-galego de casta dos nossos locutores públicos (patética farsa que às vezes me faz, literalmente, enrubescer), e por outra esse caló rotundo e remoto que invoca sempre a palavra «ainda»: ainda se fala, si, ainda hai tribos fósseis que fazem lume com pauzinhos.
Escoito na rádio que Fraga Iribarne vem de inaugurar um livro. O tal é o volume 1 do Mapa Sociolingüístico de Galicia, ingente projecto financiado pola Xunta e desenvolvido polo Seminário de Sociolingüística da Academia Galega. Gravo a intervenção do nosso presidente intemporal no acto de apresentação da obra. Com ajuda do meu decodificador Fraga-Linguagem Humana enxergo as suas palavras: Fala de «aumento do bilingüismo em detrimento do monolingüismo em galego», o que em termos sociolinguísticos verdadeiros se chama apavorante assimilação. Fala de «aumento da competência escrita em galego», o que se entende, no nosso contexto, como formalização do uso da língua escrita. Fala, em tom neutro, dum panorama onde as duas línguas progridem na sua natural simbiose darwinista. Fala, enfim, dum processo normal de «tira-puxa» que acabará onde deus e os santos patronos e patrões de Espanha queiram.
Olho e escoito a Fraga Iribarne na televisão durante o debate do senado espanhol sobre o regime das autonomias. Não entendo nada. Nunca saberei se falava galego ou castelhano.
Sou masoquista: ponho outra volta a rádio em galego, outra tarde qualquer. Oferecem um programa sobre a história da língua inglesa e o seu estado actual. Falam do espargimento do inglês polo mundo e da sua conseguinte fragmentação. Ousam comparar a situação dialectal do inglês com a «língua» galega; por exemplo: «Assim como o galego de Lugo é distinto do das Rias Baixas, o mesminho se passa entre o inglês dos velhos pastores escoceses e o inglês da sub-cultura jovem rasta-fari de Jamaica». E aí afirmam algo profundo sobre «os numerosos dialectos da língua inglesa no mundo». Ou seja: apesar da fragmentação dialectal do inglês no mundo, pode-se considerar uma só língua. Mas, precisamente devido à fragmentação dialectal do português no mundo, há-de considerar-se duas línguas (a dividir justinho polo Minho), ou, quando se precisar, sete.
A comparação primeira e estas insinuações últimas durante o programa são insidiosas, mas não são fruto da ignorância evidente. Os faladores públicos contemplam o mundo, o planeta inteiro das línguas e da linguagem, com dous olhos diferentes: o olho grande e universal para as línguas verdadeiras (inglês e espanhol), e o olho pequeno e cego –vamos, tipo orifício– para a nossa língua, que em verdade só serve para que uns indivíduos pitorescos do Sul da raia venham comprar presunto, frango e acepipes nos fins de semana enquanto a nossa burguesia peleira maltritura o inglês de Cambridge com sotaque de feira.
Mas a maquinaria funciona, e afortunadamente cada vez nos assemelhamos menos a esses australopitecos de taparrabos rechilantes que mastigam constantes bacalhaus enquanto lêem os solenes sonetos de Florbela Espanca, que nos dão medo porque nós não os poderíamos escrever. A maquinaria funciona porque em cada semi-urbano do meu bairro que acode à sardinhada em espanhol do ano agacha-se um Doutor Jekyll e um Mister Hyde da língua, quer dizer: uma pessoa maravilhosamente espontânea que fala português e portanto pode chegar a ser universal, junto com um iluso mentecapto que, em satisfazer a libido motorística do filho ou em mudar para o Espanhol quando o escoita um urbanita, crê ingenuamente que algum dia chegará longe, mais longe da Gudinha, além do nosso cárcere de tojos e uralite, do nosso histórico ghetto caló, do nosso enorme carrussel de feira que arrecende a pulpo galleguiño.
Assim funciona a maquinaria da eutanásia. Ou, melhor dito, a máquina da deliberada agonia da língua, da língua portuguesa na Galiza. Assim funciona o grande túrmix institucional produtor dos necessários analfabetos: afinal, saberão escrever correctamente o acento grave do francês, saberão berrar correctamente o cê-cedilhado do Barça, mas jamais devem entender (jamais querem entender, porque lhes lembra o seu passado arbóreo) o primitivo til nasal do coração, do pão, da nação e da razão.