O conflito linguístico só tem uma saída

Publicado no Portal Galego da Língua

     O conflito linguístico é inerente às sociedades de classes, porque não é um conflito linguístico: é um conflito de classe, em vários sentidos amplos, de grupos em controlo de diversas peças dessa perversa maquinaria que é um modo de produção essencialmente injusto, ainda com todas as correções que se tenham introduzido. Não quisera simplificar o problema negando que a questão identitária tenha um lugar importante no conflito linguístico na Galiza. Mas a questão identitária também consiste num conflito entre grupos. Quando a supervivência material inça a vida quotidiana, qualquer elemento cultural ou social suscetível de ser apropriado, capitalizado e distribuído diferencialmente cobra o seu papel classificador. Certo, a língua não é apenas “qualquer” elemento, mas a lógica da igualdade intrínseca dos humanos deveria levar-nos a questionar por que, em ocasiões, em sociedades específicas, a língua se torna em praticamente o mais importante dos elementos diferenciadores. O combate simbólico pola língua na Galiza é velho, tão velho como a incapacidade geral de a gente assumir, precisamente, a evidência dessa realidade coletiva, além dos nossos desejos, e ainda contra as mais puras das nossas ideologias que nos dizem que o coletivo nunca deveria se impor contra a liberdade.

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Uma língua difícil para a Galiza

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Polo pouco que sei sobre as relações entre essas abstrações que são “a língua” e “a sociedade”, qualquer língua escrita é muito difícil de dominar. Frente à fala, que se vai aprendendo como parte do processo de comunicação (que inclui outras cousas), a língua escrita acarreta anos de aprendizado formal, desde a caligrafia até à prosa mais elaborada. O maior ou menor número de anos é circunstancial para compreendermos em que consiste o processo de aprendizagem da escrita: consiste no estabelecimento de critérios de classificação social entre a gente “que sabe” e a que “não sabe”. Isto é assim na China com os seus milhares de caracteres, no Japão com os seus quatro sistemas gráficos, ou no crioulo papiamentu com a sua ortografia pretensamente “fonémica”. Ou, evidentemente, na Galiza. Isto é assim em qualquer sociedade de classes.

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Língua, Mercado e liberdade

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1. A eliminação do coletivo

Num texto de 1998, Pierre Bourdieu (“L’essence du néolibéralisme”, Le Monde Diplomatique, Março 1998; acesso na Internet: http://www.monde-diplomatique.fr/1998/03/BOURDIEU/10167 ; existem traduções portuguesas como a de Informação Alternativa, http://www.infoalternativa.org/teoria/teo007.htm) lembra-nos o principal procedimento do liberalismo moderno (o duvidosamente chamado “neoliberalismo”, isto é, o ultraliberalismo que quer laminar as “conquistas” sociais e laborais) na sua procura da Utopia do Mercado: a extirpação gradual de todo o coletivo, amiúde com a rendida conivência das forças do progresso. A recente ofensiva discursiva de um setor do liberalismo programático español contra as políticas e legislações orientadas à manutenção (também programática) das línguas “españolas” não castelhanas do Reino pode ser examinada dentro deste contexto. Os discursos do fenómeno Galicia Bilingüe, o Manifiesto por la lengua común –com as aderências que obteve na Galiza– ou, sobretudo, o mais recente relatório do Club Financiero Vigo (CFV) exibem uma clara base argumental política compartilhada. Destes, o relatório do CFV, polo prestígio da sua fonte e polo debate que está a suscitar, merece ser comentado como paradigmático. O documento, com data 2 Setembro 2008, é editado em galego e em español, e intitula-se Política lingüística: Unha visión empresarial (Cadernos para o Debate 12) / Política lingüística: Una visión empresarial (Cuadernos para el Debate 12). Porém, na web do CFV na altura (9 Setembro) só está disponibilizada em PDF a versão em español, que é, consequentemente, a que utilizarei: http://www.clubfinancierovigo.com/archivos/archivo_333_2481.pdf. / http://www.clubfinancierovigo.com/cuaderno.asp?id=333&lang=es .

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“Yo lo dispuse todo imagen tras imagen”

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Reproduzido, com ficha técnica, em Poesiagalega.org

     Nunca esquecerei este verso de Álvaro Pombo, que me amartela inesperadamente igual que me amartela “and what remains is just the sense of getting older”, dum para mim incógnito John Koethe, ou como enxotar a morte / esse animal sonâmbulo dos pátios da memória”, do nosso Eugénio de Andrade. Esqueci mais, sim, a poesia de Félix de Azúa, e não tanto a sintaxe precisa do primeiro Vargas Llosa, a quem devorei com outros sudamericanos (Cortázar, Borges, Lezama) desde a adolescência até aos anos 1978-80 em Barcelona. Eram os anos em que acabei Filologia Hispânica nas aulas da então chamada Universitat Central. Lembro uma inteligente Pilar Rahola de boina escorada que destacava já pola sua palavra veloz, uma outra Pilar aragonesa que adivinhou que eu nunca seria um bom escritor, e o entranhável burgalês Javier López com quem trocava escritos e que provavelmente nunca saiba que hoje falo dele. Eram os anos em que publiquei o meu único texto em español na minha vida, um continho na efémera revista diletante Delta, de estudantes de Filologia de Barcelona.

     Sou venturoso prisioneiro do verso de Álvaro Pombo porque durante décadas fora educado só em español, excepto nas calorosas aulas de tarde de Maite Caramés no liceu Santa Irene de Vigo, provavelmente polo ano em que o poeta Carlos Oroza fora convidado por Ferrín a dar um inigualável recital em língua española que também nunca esquecerei. Sou prisioneiro da formosura dessa literatura em língua española porque eu era filho estético da sua normalidade, como o foram escritores e escritoras galegas que me antecederam e me sucederam. Foi a língua española que ofereceu o modelo de rigor estilístico e formal e grande parte da imaginaria de que tantos e tantas escritoras galegas atuais se nutriram e se nutrem, para agora publicarem em galego nas editoras monolíticas e ganharem muitos prémios. Eles podem sabê-lo, ignorá-lo ou negá-lo, mas a sua dívida com a língua española é essa, e é grande.

     Felizmente, o meu périplo cultural particular levou-me a compreender quanto tempo, também, perdera no meu interesse pola língua española. Há vinte e cinco anos, nos Estados Unidos, em contato constante com pessoas que sim que possuíam língua (brasileiros, colombianos, estadounidenses), percebi fortemente o que é uma língua, e quanto nos faltava na Galiza. Por saber español e ler as suas literaturas, deixara de saber e de ler muitíssimas cousas da língua portuguesa e das suas literaturas, como a nossa. Amiúde lamentei não ter tido a oportunidade de sentir na adolescência, quando se formam tantos critérios, a mesma pulsão pola literatura em língua portuguesa, em língua galega. E ainda não temos várias vidas. Por isso, por razões políticas, vitais e estéticas, que são as mesmas, nos EUA comecei a abandonar o español como Língua, e ré-conheci a língua que agora pratico e a que, dizem, é a do meu país e de outros. E soube que devia procurar recuperar o tempo perdido. Agora não leio praticamente nada de literatura em español: não tenho tempo para ignorar ainda mais a literatura própria. Isto não significa que conheça muita literatura galega, portuguesa ou brasileira, em absoluto. Mas o preço de não ter sido educado literariamente durante décadas na minha língua atual é que nunca chegarei a ser um bom escritor, se é que alguma vez tive a possibilidade de o ser.

     Não compreendo como nenhum inteletual com um mínimo sentido estético pode confundir essa Língua literária, rigorosa e portanto tirânica de que estamos a falar (a española, a portuguesa e galega, a inglesa) com essoutros pobres dialetos oficiais ou para-oficiais que se utilizam nas administrações (todas), na política (a que for), e noutras burocracias. Mas resulta que são estes códigos, e não a língua literária, que parece que sublimam de maneiras monstrosas as essências humanas e nacionais, e parece que é em torno deles, e não em torno da língua literária, que se argalham Manifiestos cavernícolas. Não compreendo como, nas aras desses códigos utilitários e quotidianos (no pior sentido da palavra) cuja obrigatoriedade de conhecimento até se defende, se quer negar a possibilidade de que uma geração inteira se possa inundar da tirânica língua literária do seu próprio país para que daí saiam as poetas e os poetas, como corresponde, para que nalgumas pessoas polo menos surja o assombro da palavra e anos mais tarde elas possam lembrar, inesperadamente, sem mais meta que o fascínio, um verso aberto e inapreensível.

     Por isso, o Manifiesto da pretensa língua comum do Reino exibe uma vulgaridade tal que faz duvidar que tenha sido assinado verdadeiramente, por exemplo, polo mesmo poeta que foi capaz de escrever o verso que abriu este escrito. O Manifiesto de inteletuais españóis quer negar que cada um dos países do Estado que dizem querer ser países imponha a necessária intensidade social de onde surge a Língua e portanto a boa literatura. Um feixe de escritores españóis já conhecidos, num exercício de triste solipsismo quase prevaricador, quer negar a literatura própria nos seus idiomas a milhões de jovens que a sentem ou nalguma altura a sentirão assim, como própria e como literatura.

     Mas enganam-se os manifestistas españóis se pensam que com isso a sua língua literária vai recobrar o fulgor estético dominante que nos impôs a uniformidade do Fascismo. Já não é possível, nem mesmo conveniente para eles. O único que o regresso ao passado conseguiria é que os jovens continuassem a aprender a cultivar as suas línguas atravês do rigor do español, como há décadas. Nunca desapareceríamos. Por isso, deixem os manifestistas españóis que os seus filhos hispanofalantes polos quais dizem levantar-se em armas de papel, se é que não moram no Centro monolingue, possam mergulhar plenamente numa outra língua imposta contra eles, como mergulhámos nós, e que assim, polo menos, possam ter literatura. Nenhum inteletual manifestista español quisera que desaparecessem as literaturas galega, basca ou catalã: no seu comércio, é precisa também esta concorrência. Mas, como querem que se cultivem outras literaturas se não é a golpe de imersão nas suas línguas, até como impostas línguas estrangeiras, igual que gerações inteiras sentimos durante décadas o español nos nossos próprios países? Deixem os manifestistas aos jovens escolares o prazer de descobrirem o verso perfeito da Galiza, e que, anos mais tarde, o citem por acaso, ainda sem compreenderem de todo o seu sentido poético (precisamente por não compreenderem de todo o seu sentido), e até se rebelem contra ele, contra o monolitismo da distinta língua única. Deixem os amargurados manifestistas españóis que cada um dos países agora engolidos no Reino gere os seus poetas, as suas proezas, os seus monstros e as suas misérias, porque só se podem produzir bons monstros e boas misérias quando a Língua (a língua literária, não os tristes códigos burocráticos) nos arrodeia dia após dia e nos mata, por toda parte, em centenas de livros. É esta Língua que nos une, não a sua forma.

     Fiquem os literatos españóis com o seu país de letras, que já é grande, e aí poderão fazer cousas que eles estimem também grandes como o ouro. E nós, a gente de aqui, não façamos nem caso aos seus manifestos de sereia, que vão contra a própria estética da sua língua española. Porque, isso sim: que formoso e intraduzível será sempre o verso de Álvaro Pombo, “Yo lo dispuse todo imagen tras imagen”. Em matéria de língua, não de formulário, isso é o que deveria importar: ser intraduzível.

Encruzilhada da língua

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O movimento linguístico-cultural galego está na altura numa encruzilhada mais evidente do que jamais antes na nossa história sociolinguística. O movimento linguístico-cultural, que leva anos ultrapassando na prática (polas suas iniciativas, o seu dinamismo e o seu compromisso activo) a actividade institucional e pára-institucional que promove a fragmentação cultural da Galiza, debate-se entre uma lealdade a certa tradição essencialista e diferencialista, e a absoluta e inevitável submissão à lógica das Línguas Nacionais na sociedade ocidental, burocratizada, capitalista, de classes. Não há vias intermédias na recuperação da língua como veículo de coesão social, de reconhecimento identitário, e de chamado “avanço” material dentro da lógica do mercado de símbolos. Estejamos ou não estejamos na Europa, o português é que está na Europa, minoritário dentro do Estado Espanhol, mas dominante quantitativamente na Galiza. Sobejam mais argumentos, mais definições, mais filologizações do conflito sociolinguístico, mais apelações às essências. A nação constrói-se, as classes constroem-se, as percepções sobre a língua constroem-se, as práticas linguísticas, culturais e literárias constroem-se. As redes de elites constroem-se, e, sobretudo, ré-constroem-se. Estamos a entrar, definitivamente, numa nova geração da língua, onde é fundamental a renúncia aos mitos e às letras, porque o tempo joga dia a dia contra nós, contra todos e todas os que, por origem, adscrição, vontade ou trâmite profissional fazem e fazemos da língua objecto, via, motivo, instrumento de trabalho e de acção.

A encruzilhada em que se debate o movimento linguístico-cultural galego é singela de descrever: Ou é promovida, regularizada, oficializada e naturalizada uma visão e versão do português galego que recolha elementos de uma recente tradição que teve e ainda tem o seu lugar na nossa resistência (basicamente, a proposta actual representada pola Associaçom Galega da Língua), ou abraça-se com o inevitável temor do novo a unidade linguística internacional como a única maneira de construirmos Língua Nacional. E há fortes valores ligados com cada uma destas opções, valores em oposição que sempre jogaram um papel fundamental nos movimentos sociais galegos. A nação não é uma declaração de intenções, mas uma prática teimosa e insidiosa de classificar-nos. A nação é o conjunto de práticas onde se reproduzem as formas do domínio. E seria absolutamente ingénuo procurarmos construir Língua Nacional sem construirmos os protocolos da classificação que a Língua implica. Devemos estar, em todos os níveis, em igualdade de condições contra a Lengua Española e o que simboliza, e junto a outros países, nomeadamente o mais próximo a nós, Portugal. Devemos construir e manifestar a nossa identidade cultural a respeito de Portugal e do Brasil, não da Espanha. Porque na história das nações o “nós próprios” nunca existe: só existe a diferença. Mas só se pode fazer isto se é com as mesmas regras e instrumentos simbólicos de jogo que o nosso país paralelo, os mesmos procedimentos de inclusão e exclusão, de intelectualização (a tradição é a invenção dela mesma polas letras), de lenta cocção da cultura. O mesmo tipo de símbolos, de máquinas produtoras de metáforas, o mesmo tipo de rigor arcano da linguagem. Devemos renunciar ao populismo como método.

É evidente qual postura defendo eu: a renúncia decidida a construirmos uma língua “distinta” na Galiza só porque e para que seja “distinta”. É inútil e nocivo lutar contra a língua. Mas reconheço, sem dúvida, a legitimidade do diferencialismo representado hoje pola posição actual da AGAL e algumas associações de base. Eu sou sócio da AGAL, a única associação profissional da língua existente na Galiza, com mais de vinte anos de vicissitudes, como tudo quanto se move. Precisamente polo seu carácter, é a AGAL que representa a tábua de salvação para muitos dos que ainda praticam a norma linguística institucional na Galiza. E é dentro da AGAL que se deve fazer a reunião de sectores. Eu sou contra a proposta actual da AGAL a respeito da língua, mas é essa e não qualquer outra proposta a que quero contestar. Porque é essa a encruzilhada real do projecto emancipador do movimento linguístico-cultural galego: ou língua portuguesa, ou língua portuguesa com algumas diferenças. O resto das práticas linguísticas e culturais disgregadoras que se dão na altura já são posições. E, como posições (institucionais ou pára-institucionais), o seu papel dinamizador e mobilizador cultural está a extinguir-se.

Mas o regresso de sectores na altura institucionalistas é possível. Intuo que grande parte do movimento linguístico-cultural estaria disposta a renunciar à defesa retórica da noção de “lusofonia”, se isto fosse necessário para o regresso da lucidez política a uma parte considerável da intelectualidade agora institucionalista, prisioneira de um discurso que não pode controlar. Este é, portanto, um convite ao raciocínio: Quando estão em jogo a necessária lucidez política para a unidade, e a cultura do país polo que se diz trabalhar, nunca é tarde para abandonar voluntariamente uma íntima e inconfessada sensação de derrota.

Todas as opções: Qual é o problema?

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Qual é o problema com escrever o galego oral em português, como lhe corresponde? Por circunstâncias históricas, tocou-nos um pedaço grande de língua galego-portuguesa distinto em alguns aspectos da tendência comum, e algumas pessoas (sempre muito poucas) na Galiza levam dous séculos a tentarem conciliar esta aparente aberração, a discutirem teimosamente sobre uma letra, uma terminação ou um acento. Il será pola profundidade do problema? Ou será pola sua incapacidade ou negativa histórica a compreenderem a situação e a agirem como verdadeiras elites nacionais (António Gil e Ângelo Cristóvão dixerunt em repetidas ocasiões)? Sobre-estimam-se as atitudes e a identidade essencial do “Pobo”, ou infra-estimam-se as suas capacidades cognitivas? É mais elitismo escrever uma variante linguística (o galego) na forma comum (em português), ou construir essa variante escrita ex novo, como se fosse A Lingua, mas sabendo que não é? É mais elitismo aceitar as letras próprias da língua em todo o mundo, ou aceitar as letras da língua forânea (o espanhol) que é causante da rareza linguística galega? É mais elitismo situar-se e situar a Galiza com humilde realismo no mundo lusófono, ou situar-se reciprocamente uns galegos a outros e outros galegos a uns como únicos auto-referentes culturais? É mais elitismo aceitar a lógica transfronteiriça das línguas e portanto da língua portuguesa, ou reproduzir essa lógica a pequena escala com mecanismos de poder interno desenhando uma (outra) miragem de língua e cultura democráticas?

Perante a tentação de responder estas perguntas num ou outro sentido, é mais realista e mais sensato (sobretudo agora que resta pouco tempo de oralidade portuguesa na Galiza) reconhecer que a língua não é um problema social prioritário. E, como não é, torna-se ainda mais desnecessário continuar a repartir a fome como se fosse fartura. Só as elites se podem permitir o luxo de impugnarem um sector delas próprias como se este estivesse errado. Os movimentos obreiros que marginaram parte dos seus próprios membros nos combates importantes pagaram cara a purga nessa consciência ética que pervive na história por cima e por baixo do sucesso aparente. A longo prazo, a purga por sistema fez perder a todo o mundo, embora pareça que assim se ganharam “conquistas sociais” que seriam impossíveis desde o “maximalismo”. Mas, como a língua não dá de comer a todo o mundo (só a uns poucos), temo que o exercício irracional da impugnação das candidaturas ortográficas poderá continuar por décadas por vir, enquanto mande quem manda e os que vão mandar no futuro se disponham a mandar exactamente como os que mandam agora.

Porque, quando um “Pobo” ainda não decidiu nem se auto-determinou linguisticamente (e já sabemos que o “Pobo” é quem mais ordena), como se lhe vai negar que escreva a sua tão essencial língua de uma dada maneira?

Em resumo, agora e sempre, e em todos os âmbitos, Aukera Guztiak! Que, como sabemos, significa “Todas as Opções”.

Sobre a Escrita, Contra o Populismo Normativo: Catorze Verdades de Fé dum Pseudo-Sociolinguista

Publicado no Portal Galego da Língua

Na lista Assembleia da Língua, Gerardo Uz pergunta sobre o papel dos sistemas escritos na marginação dos grupos sociais. Concretamente, a questão é se a forma específica duma norma escrita afecta o seu possível conhecimento ou desconhecimento e, portanto, ulterior selecção social. Opino longamente:

1) Nas sociedades de classes a forma específica da norma escrita não tem qualquer incidência sobre o mecanismo geral de class-ificação, selecção e marginação social baseadas no conhecimento diferencial da Língua.

2) As diferenças graduais (o contínuo) de saberes sobre a língua transformam-se em categorias discretas de classificação social. Por exemplo, tanto uma pessoa que comete muitas faltas de ortografia como uma pessoa que comete muito poucas “têm faltas de ortografia”, e portanto ambas são susceptíveis de serem classificadas como “não conhecedoras da Língua escrita”.

3) O estabelecimento da fronteira entre “os que sabem” e “os que não sabem” é contingente e depende da forma particular de distribuição desigual do conhecimento. Por exemplo, entre “sábios” absolutos alguém que ignore um só facto pode ser um “burro” total.

4) Os pontos 2 e 3 acima têm um paralelo nos contínuos da fala. O que se chamam “marcadores sociais” são elementos linguísticos isolados que adquirem o valor simbólico de toda a variedade dialectal ou sociolectal a que pertencem, co-ocorram ou não com outros elementos dessa variedade. As variedades são construções mentais dos falantes: representações globais que, embora compostas de signos (sociais) individuais, operam como signos complexos elas próprias. Por exemplo, alguém que diga “dizer” e “canção” é um “lusista” (até que essas formas deixem de ser socialmente “lusistas”). Por exemplo, um “andaluz” é alguém que aspira os “s” embora não faça o resto de cousas que fazem os andaluzes na fala. Na Galiza, alguém que “fala galego” é alguém que diz uma frase com “eu”, não “yo”.

5) Portanto, qualquer elemento linguístico (oral ou escrito, “correto” ou “incorreto”) é susceptível de cobrar o valor simbólico de distinção grupal, e de se constituir num “erro” ou um indicador de subalternidade, ignorância, etc., ou de valores positivos como inteligência, cultura, etc.

6) Portanto, não há sistemas escritos mais “fáceis” ou “mais difíceis” de aprender para o seu uso se constituir em SIGNO de competência linguística e  social. Na sociedade de classes, uma escrita “tecnicamente fácil” de aprender é ainda um procedimento de exclusão, porque não está garantida (é impossível) a destreza completa de todos os utentes nessa escrita.

7) O mecanismo geral de exclusão e dominação a meio da língua na sociedade de classes é paralelo aos outros mecanismos de distribuição inerentemente desigual dos recursos (materiais ou simbólicos). Na sociedade liberal-capitalista, por exemplo, o sistema educativo está desenhado para reproduzir a desigualdade sob a miragem da igualdade de oportunidades. Quando um recurso (a escrita, a língua) é oferecido para o seu aprendizado a todos “por igual”, mas afinal do ciclo educativo obrigatório básico não todos o dominam “por igual”, a explicação da diferença (já tornada em distinção hierárquica) cai sobre um leque de factores, todos relacionados com as características dos indivíduos distinguidos polo saber (os “listos” e os “burros”). Excluídas as explicações politicamente incorrectas sobre as diferenças entre listos e burros (por exemplo, que pertençam a “raças” ou grupos étnicos distintos), as obviamente erradas (as diferenças de género) e as invisibilizadas (as diferenças de classe), só resta uma pretensa explicação psicologista: o Indivíduo. Os listos (os que escrevem bem) são listos porque a sua mente é lista e trabalhadora. Os burros (os que escrevem mal) são burros porque a sua mente é burra e preguiceira. Melhor: cada pessoa é lista ou burra, trabalhadora ou preguiceira. O sistema educativo, portanto, fornece simultaneamente os recursos democráticos, as explicações do seu fracasso, e as culpabilizações inevitáveis polas hierarquias que reproduz.

8) As diferenças na aquisição da língua escrita têm muito a ver com o valor atribuído à língua escrita e de cultura polos grupos, e com a exposição dos meninhos a essa língua de cultura no âmbito familiar. Como a própria cultura está previamente distribuída de maneira diferencial entre as classes, nas classes mais cultas haverá mais meninhos mais cultos e “listos”.

9) A língua escrita de cultura distribuída na escola sempre está baseada na fala das classes burguesas meias mais cultas. A escola introduz o conflito social no seio das famílias onde a cultura escrita tem menor presença, ao oferecer ao meninho modelos de língua, de fala, de escrita e de saber que contrastam com os dos pais não educados. Sistematicamente, os meninhos de classes trabalhadoras menos cultas passam por um período de des-identificação com a língua da família.

10) A compensação por este escoramento de classe da língua escrita não pode consistir em tomar a fala das “classes populares” como modelo. Quando isto se faz, dá-se simplesmente uma ré-colocação de classe, pois, de novo, a fronteira simbólica e social entre formas da língua é absoluta: a nova norma  culta supostamente baseada na fala popular torna-se em língua culta de classe. Veja-se o caso galego actual.

11) O caso anterior pode acarretar o acesso ao poder simbólico da língua para novos grupos sociais a expensas de outros, mas não representa uma alteração da lógica da exclusão de classe pola língua.

12) Em definitivo: enquanto existam as classes sociais existirão as “faltas de ortografia” e as escritas boas e más, “fáceis” e “difíceis”, os “listos” e os “burros”.

13) A solução radical é mudar o modelo social e económico e portanto o sentido social da diferença linguística oral ou escrita. A solução reformista é acatar o valor classificador da Língua, não pré-julgar e pré-classificar os grupos pola sua “capacidade” ou “incapacidade” cognitiva de ganharem acesso a essa Língua, e remover qualquer obstáculo legal e social que obstaculizar efectivamente a expressão linguística e qualquer medida que representar um agravo comparativo na distribuição de recursos comuns (o dinheiro, que vem dos impostos e o mais-valor propriedade do Estado) para qualquer forma de se expressar na língua.

14) Em conclusão, a escrita mais “fácil”, “popular”, “democrática” e universal é fazer um “o” com um canuto.

Referências básicas:

  • Bernstein, Basil (1972). A sociolinguistic approach to socialization; with some reference to educability. Em J. J. Gumperz & D. H. Hymes (eds.), Directions in Sociolinguistics. New York: Holt, Rinehart and Winston, 465-497. (= Bernstein, Brasil (1996). A Estruturação do Discurso Pedagógico: classes, códigos e controle. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Luís Fernando Gonçalves Pereira. Vol. IV da edição inglesa. Petrópolis: Vozes).
  • Bourdieu, Pierre (1977). The economics of linguistic exchanges. Social Science Information 16(6): 645-668.
  • Bourdieu, Pierre (1982). Ce que parler veut dire. Paris: Fayard. (= Bourdieu, Pierre. Data? A economia das trocas lingüísticas: O Que Falar Quer Dizer. Trad. Sergio Miceli, Mary A. L. de Barros, Afrânio Catani, Denice Catani, Paula Montero e José Carlos Durand. São Paulo: Edusp).
  • Bourdieu, Pierre (2000). Poder, derecho y clases sociales. Bilbo: Desclée de Brouwer.
  • Joseph, John E. (1987). Eloquence and power: The rise of language standards and standard languages. London: Frances Pinter.
  • Scherer, Klaus R. e Giles, Howard G. (1979). Social markers in speech. Cambridge: Cambridge University Press.

O PNLG: Um desenho fechado à partida

Publicado em Tempos Novos • Em Vieiros

O PNLG parte da Língua Nacional Espanhola para manter a variedade regional “galego” em níveis mínimos como recurso simbólico e político. Na relação entre custos e possíveis benefícios, o PNLG -claramente tecnocrático- apropria sem pudor o gasto termo “normalización”, enquanto foca o sociolinguístico em termos administrativos, segmentando-o em âmbitos das Conselharias. Não é possível intervir com a crítica num desenho tão fechado à partida. A única alternativa é a definitiva naturalização social da língua portuguesa na Galiza, que é a nossa numa variedade totalmente legítima. A naturalização consiste na produtividade real da língua na vida social até ao ponto da desideologização explícita. Umas necessárias novas elites sociais deveriam abordar na intervenção linguística (sempre um projecto reformista de classe) três grandes questões: (1) Reversão decidida da maciça perda intergeracional do idioma, (2) enraizamento social da consciência da unidade linguística galego-portuguesa-brasileira, e (3) galego falado e portanto português escrito correctos como veículo dominante dos médios e do ensino, para as elites reproduzirem a miragem da igualdade democrática a meio da Língua. Esse é o desenho duma Língua Nacional. A meta (1) requer fortes incentivos e redes sociais jovens. A (2), Propaganda e troca cultural. A (3), dinheiro, docentes e (sub)produtos escritos. O consenso com o campo hegemónico nestes pontos é inviável: o único sensato é procurar uma nova hegemonia por vias políticas.

Uma questão de cultura

Enviado a La Voz de Galicia e a La Opinión de A Coruña; não publicado

O recente Encontro Nacional sobre a Língua organizado pola Mesa pola Normalización Lingüística, a que assistiram numerosas associações culturais e de base e indivíduos, concluiu aprovando uma série de resoluções para o trabalho em favor da língua. A primeira diz: “Reafirmamos a substancial unidade existente entre o galego e o português”. Esta resolução é importante, porque constata de novo uma evidência histórica e social. A unidade linguística galego-portuguesa explica, por exemplo, que este texto poda ser escrito e lido perfeitamente na Galiza, e que poda ser lido, além, em galego, com mínimas adaptações ao acento de aqui.

Estamos provavelmente na fase mais crucial da história da língua da Galiza. A acelerada perda de falantes habituais não se compensa com a congelada penetração de certas variedades da língua nos âmbitos mais formais. Perante esta situação, os poderes públicos e as instituições culturais têm a oportunidade e a responsabilidade de reafirmarem com palavras e com actos a natureza comum da nossa língua galego-portuguesa, porque o que se diz em público lembra-se, e o que se lembra dia a dia pode guiar melhor os nossos actos. O catedrático do Instituto da Lingua Galega Francisco Fernández Rei, por exemplo, escreveu na revista internacional Plurilinguismes que “dum ponto de vista estritamente linguístico, podemos admitir que o galego e o português falados hoje constituem praticamente uma só e única língua ‘por distância’”. O anterior presidente da Real Academia Galega, Francisco Fernández del Riego e muitos outros especialistas têm manifestado opiniões semelhantes. É necessário e inteligente lembrarmos esta evidência.

Por isso, é fundamental uma decisiva viragem que, sem trair nem renunciar às trajectórias culturais anteriores, nos recoloque na evidência e recolha assim o sentir de crescentes sectores de pessoas que também se interessam profundamente polo presente e futuro da língua do país. Um primeiro passo para a coesão e para o enriquecimento cultural seria o reconhecimento, por parte das instituições de poder e de cultura, da legitimidade desta concepção e desta prática galego-portuguesa da língua, que se reflecte na escrita internacional, na literatura e na própria experiência de contacto entre habitantes dos dous lados da inexistente Raia. Os intercâmbios entre escolares da Galiza e de Portugal, por exemplo, promovidos por liceus e organizações culturais, são bons exemplos de uma experiência conducente a reduzirmos as fronteiras. A possibilidade de recebermos habitualmente os meios de comunicação de Portugal acrescentaria também a nossa exposição a uma cultura próxima, e contribuiria para reduzirmos a nossa dependência das culturas anglófonas, nomeadamente dos EUA, que tão pouco têm a ver com a nossa realidade.

Numerosas pessoas e colectivos defendemos o direito da Galiza a receber material cultural de Portugal, Brasil e outros países, em pé de igualdade com o nosso próprio, como a melhor maneira de reforçarmos a nossa própria cultura. Há uma crescente demanda da aprendizagem do padrão linguístico português, cujo conhecimento é essencial para utilizarmos a língua, produzirmos saber, e lermos excelente literatura sem mediação qualquer de traduções deturpadoras. Ninguém duvidaria que os andaluzes, por exemplo, cujas falas são tão distintas da língua da cultura escrita espanhola, têm direito a serem considerados falantes da língua espanhola e de aprendê-la como tal. Não sei porquê os galegos deveríamos ser menos a respeito da língua padrão utilizada em Portugal. Devemos ter o direito de aprendermos e utilizarmos, em todos os níveis educativos e para todos os âmbitos da vida diária, o padrão linguístico que plasma internacionalmente essa substancial unidade entre o galego, o português, o brasileiro, o moçambicano… ou o berciano.

Se a língua se perde geração após geração, é também porque existe um impiedoso mercado linguístico e cultural que procura nos impor o alheio. Talvez a gente não se reconheça na função artificialmente limitada do galego actual para produzir cultura. Aqui somos uma comunidade pequena, mas para o Sul e para o Oeste fazemos parte de uma ampla constelação de comunidades. A globalização não pode funcionar sempre na mesma direcção: temos capacidade de ser outro Centro na periferia ocidental.

É o momento de superarmos o uso do galego oral e escrito como uma forma de militância, e de praticarmo-lo como uma conduta naturalizada dia a dia, para exercermos a nossa cultura dentro do âmbito linguístico e cultural próprio. Mas este projecto não é apenas uma questão de vontade individual. Os poderes públicos e as instituições têm a grande oportunidade e a responsabilidade de recolherem este desafio contribuindo para a nossa adaptação aos tempos com uma valente viragem alicerçada no diálogo.

Reclamarmos o nosso não é uma questão de fé, nem de combate: é uma questão da razão. É uma questão de cultura.

O galego-português e a lógica social da escrita

Publicado em La Voz de Galicia, 12 Outubro 1999, p. 16, dentro da fugaz série de artigos “Debate: A normativa do galego”

Quixera contribuir a este debate sobre, basicamente, as relações entre a fala e a escrita no nosso país. São reflexões gerais aplicáveis às sociedades alfabetizadas, que ilustro com o nosso caso.

Em primeiro lugar, eu penso que é necessário entender que o problema da língua escrita é pouco importante em comparança com sangrantes realidades como um nível de desemprego dos mais altos de Europa (um 40% entre as mulheres galegas), a desfeita económica e ecológica, ou a cleptocracia galopante. Mas a questão do controlo da língua não está desligada destes problemas, claro, e prova disto é que são os mesmos poderes os que, desde há já várias décadas, são parcialmente responsáveis tanto da desfeita económica quanto da provincialização crescente das culturas galegas, nas aras duma modernidade que só mostra o seu rosto mais cruel.

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