A ausência de linguagem

Publicado em A Nosa Terra 840, 23 Julho 1998, p. 31 • Non! – crítica & intervenção [ligação não operativa]

Nunca se poderá destacar suficientemente a instrumentalidade da apropriação da língua e da palavra na sociedade capitalista para a dominação social. Embora os sociolinguistas não o saibam, a primeira divisão entre as gentes que estabelece o capitalismo não é entre aqueles que falam a Língua A e aqueles que falam as Línguas B ou C, mas entre aqueles poucos que possuem uma linguagem e aqueles muitos que simplesmente são utentes duma língua, ou duas, ou três. A complexidade das condutas diárias é reduzida por políticos e sociolinguistas a cifras de “falantes” que “escolhem” uma língua (ou “Língua”) ou outra, e é curioso constatar que esta “escolha” se constitui num visível signo científico dos grupos sociais, como se houver algo inerentemente transcendental em proferirmos sons para comprar pão na loja da esquina ou para comentarmos sobre os vizinhos. Os “povos”, assim, são dirimidos em grupos de “falantes”, e estes grupos são assignados a cifras visualizáveis. A territorialização da gente em populações sociolinguísticas emula outras territorializações sociais, como amostra dos complexos protocolos inerentes ao capitalismo para impedir a emancipação, isto é, o reconhecimento próprio e mútuo das pessoas como forças activas na essencial procura da utopia.

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Um panfleto: Em favor da insubmissão

Publicado em Çopyright 4

Em 8 de Maio de 1997 teve lugar num pub da Corunha um acto convocado pola Assembleia Nacional de Objecção de Consciência (ANOC), com motivo de uma série de juízos contra insubmissos que se estão a celebrar na Galiza. Este texto foi lido nesse acto.

Ainda que poda parecer excessivo, é um grande motivo de honra e satisfação para mim ter sido convidado a este acto contra a barbárie, a este espaço reduzido, minoritário como é sempre o espaço social onde começam as verdades. Convidou-se-me a ler poesia ou outra cousa, e eu escolhim outra cousa porque para mim na actualidade só existem duas formas literárias úteis para a emancipação humana: a poesia e o panfleto. Este texto quer ser um panfleto. Só lamento que não esteja impresso em borrenta letra azul de multicopista fatigada, lamento que não circule de mão em mão nervosa pola obscuridade das ruelas interiores, e lamento não ter medo de ser detido agora polo exército, porque as palavras que aqui dizemos são clandestinas e mereceriam ser tratadas como tais. A liberdade real não consiste em poder dizer o que queremos: a verdadeira liberdade consiste em não ter já necessidade de dizê-lo.

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Prisioneiros do Discurso

Publicado em A Nosa Terra, 15 Maio 1997, p. 6

Aos desaparecidos

Este artigo ia-se intitular, por exemplo, “A clandestinidade da literatura galega”. Durante vários dias alimentei a trivialidade do tema, como se fosse interessante ou mesmo essencial. Percebim, nas minhas visitas a alguma livraria, a segregação dos volumes em ghettos políticos (Ficción, Viajes, Gallego), e percebim a mimética reprodução desta hierarquia na livraria galega que existe: Poesia, Novidades, numa mesa aparte Portugués. Polas manhãs, através dos pátios interiores, escoitei mulheres de antiga estirpe camponesa a cantarem sevillanas, emulando luminosos concursos televisados ou a ilusão por uma triste filhinha maquilada que aprende a ser sexual perante o poder fálico dos focos, perante Deus e a Monarquia. E polos corredores da universidade comecei a ver cartazes que anunciam os actos do grande Dia das Letras, a nossa miragem anual, com os repetidos nomes de conferencistas sempre agrupados em triunviratos de amor pola cultura. Na letra pequena dos cartazes figura muitas vezes o logótipo do governo que votámos.

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Exilados sem querê-lo

Publicado em Çopyright 24, 15 Dezembro 1996 • N’A Nosa Terra 761, 16 Janeiro 1997, p. 27

Por primeira vez na minha vida, olhando para a corunhesa rua São Andrés desde a janela da sala, tive a clara sensação de ser um exilado, um habitante dum país inexistente que desfaz a linha das fronteiras como uma enorme e suave língua geológica. Não me refiro a essa alienação que muitos sentimos às vezes por vivermos numa Galiza indistinta, rota, apenas suturada temporalmente pelos esforços pontuais duns poucos resistentes que sabem que morrerão no esquecimento: os marinheiros que trocam uma esmola de sardinhas por pneus queimados nas estradas, os poucos políticos que com constância percutem nos volumosos muros interiores das instituições espanholas, os insubmissos ou os desorientados que desde a Praça da Quintana de Compostela contemplam com nostálgica heroína nas veias o crescimento das Pátrias oficiais como grandes aves de artifício. Refiro-me a outra e confessadamente estranha sensação: a de ser um visitante temporal na Galiza chamada moderna, enquanto outro país sem bordas nem monarcas que também poderíamos chamar a Galiza, ou Portugal, ou longa língua de terra onde todos os Setembros vão morrer de idêntica maneira os sargaços, fica em parte oculto por uma névoa de séculos e em parte oculto pelo discurso dos mais fortes.

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Pátria e Língua, por última vez

Publicado com alterações sem solicitar em A Nosa Terra 736, 25 Julho 1996, p. 27

Toca-nos um novo 25 de Julho, uma nova celebração colectiva de identidade. Bom, sejamos claros: uma nova celebração minoritária de valores absolutos: Pátria, Língua, Identidade. Nunca poderei desbotar da minha pele a inquietude e náusea que me produz a palavra “pátria” (mais concretamente, Patria, sem acento), recitada dos catecismos fascistas espanhois durante miserentos anos de incultura. Porém, reconheço também que às vezes as Pátrias e outros construtos são úteis para distorsionarem tacticamente um sentir colectivo. Suponho que esta contradição entre a náusea e o fingido compromisso deverá viver comigo enquanto siga sendo necessário procurar formas efectivas de resistência. Mas, em que consistem, aqui e agora, estas formas efectivas de resistência?

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O mercado linguístico e o futuro da escrita

Publicado em A Nosa Terra 712, 8 Fevereiro 1996, p. 26

O meu colega Xosé Ramón Freixeiro convida de novo a reflexionarmos sobre as relações entre fala e escrita no nosso país, isto é, sobre as opções gráficas para o idioma (“A voltas coa norma lingüística na procura dun necesario pulo normalizador”, A NOSA TERRA 706, pp. 26-27). Basicamente, Freixeiro propõe um acordo que elimine as pequenas diferenças entre as normas majoritárias nas instituições (as do Instituto da Lingua Galega-Real Academia Galega, ILG-RAG) e as chamadas “de mínimos”. Tomo-me a liberdade de recolher a oferta de Freixeiro para sugerir, de primeiras, que a sua proposta (que está já na mente de bastantes utentes da escrita do galego) não resolve os vários problemas de fundo. Quero explicar em que me baseio para pensar assim. Começo cada apartado com umas afirmações gerais sobre as relações entre fala e escrita nas sociedades alfabetizadas.

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Triunfo da democracia, martírio da palavra

Publicado em a A Nosa Terra 668, 6 Abril 1995, p. 14

Para aqueles de nós que vivemos uma época na que poucas palavras careciam ainda de sentido, o terror democrático actual supera as mais imaginativas previsões. Muito mais insidiosa que o fascismo patente –e portanto combatível–, a democracia formal nega-nos mesmo a possibilidade de conceber a revolta, formoso termo dormido entre as pregas da nossa adolescência de acne, algo de Lenine, Tintin e assembleias de distrito. A guerra civil actual entre os mercenários das direitas espanholas, com as comparsas voyeuristas da ilusa minoria de esquerdas e a constante supervisão do exército, confirma a absoluta consolidação da democracia no estado e o patético caminho descendente que ainda nos tocará percorrer ajoelhados só para nos deter pontualmente a introduzir molhadas papeletas ilegíveis nas morbosas urnas oficiais de onde sai um fedor a palavras putrefactas e liberdade assassinada. Os numerosos «casos» judiciais actuais, nos que se misturam a intriga de sauna escandinava, o Perry Mason, a China dos mandarins e o Interviú de sobremesa, são o elemento que lhe faltava ao Estado Espanhol para se homologar com o mundo mal civilizado. Como a Itália recente, como Bélgica, como os Estados Unidos de Al Capone, da Lei Seca e dos sindicatos desmobilizados, como a Índia de Gandhi e Neru ou como a Alemanha de Baader-Meinhoff, durante os últimos vinte anos as forças institucionais do estado espanhol, desde o Fraga Iribarne de Gobernación até o dúctil Belloch e o ávido Paco Vázquez, ajuntaram com êxito as miúdas peças da maior operação de alienação e derriba da esperança jamais concebidas. É apavorante compreender que têm mais crédito as palavras dum polícia chulesco do que as dum presidente com sarro. É triste aceitar que o gesticuloso discurso jornalístico supra a reflexão e o debate diário entre as gentes. É aterrador confiar como recurso no mesmo sistema judicial que mantém nos cárceres a miles de réus agonizando com SIDA. Mas é inclusive mais pavoroso assumir que às vezes, talvez várias vezes ao dia, chegamos a pensar que esse magoante país é o nosso.

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Elites lusófonas? Oui, merci

Publicado em A Nosa Terra 653, 22 Dezembro 1994, p. 28

Hoje fui ao Corte Inglês e comprei os quatro compactos do cativante grupo português Madredeus. Não sei que me satisfaz mais: a sua música ou o elitismo de saber que, entre escrito e escrito ou entre cigarro e cigarro, ainda tenho tempo de escutar. Enquanto sigo as letras impressas, encanta-me também pensar que não lhe se entende tudo à solista de primeiras porque é cantado. Deve ser a mesma sensação de iluminada reverência que tinham as nobrezas proto-alemãs do XVIII ao escutarem o bel canto italiano, ou os aristocratas russos finisseculares ao escutarem as lições de francês das filhas, ou a que sentiam os latifundiários autóctonos da Índia ao escutarem um recitado em inglês de Cambridge. Esse foi sempre o problema das elites da Galiza: não olharem para fora. Cada país precisa olhar para fora. Os catalães, para a França. Os japoneses, para a China. Os portugueses, para a Espanha.

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Com as línguas cortadas

Publicado em Çopyright 10, 30 Julho 1996

UM

A realidade compõe-se de um número impreciso de mundos concêntricos de verdade e falsidade, todos eles cruzados por frechas de linguagem, o único material que nos resta para exprimirmos a complexidade e o assombro. Onde começarmos é sempre a tarefa mais inumana, quase impia, pois em articularmos um desses espaços de realidade por meio da linguagem ignoramos os outros. Isto é o que me acontece hoje, forçado a converter em território plano de palavras as multíplices dimensões dos signos do social. O quem sou, o quem me defende realmente detrás deste triste discurso, é talvez a questão acessória: o perigo é aceitarmos a estrita limitação do texto, a sua falácia, como se a razão de o texto não nos revelar a verdade fosse simplesmente uma carência nossa, não a carência imanente dos objectos.

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O país da semi-língua

Publicado em A Nosa Terra 623, 26 Maio 1994, p. 28

Paul Éluard disse: há outros mundos, mas estão neste.

O nosso país é já dous países: um país com semi-língua e um país com língua própria. O país com semi-língua tem limites precisos, Norte e Sul, é como uma borda, como a membrana duma célula, como uma contínua periferia. Porém, o país com língua própria mora dentro do outro, e também fora, em zonas irregulares e cambiantes, em redes esporádicas que medram, constituindo territórios fugazes cada vez mais sólidos, sedimentando-se na consciência colectiva de falar. O país com semi-língua é reconhecível desde fora, tem marcas registadas, hinos e bandeiras, vistosos líderes registados, estabelece relações com outros mundos registados, limita. Porém, o país com língua própria não limita, é errante, não tem hinos, nem privilégios, e os seus poucos líderes são pobres líderes, líderes falsos que talvez desejariam só ser líderes registados do outro país, do país com semi-língua.

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