“Recrimíname un lusista”: Postura política e ortografia

Publicado em Galicia Literaria. Suplemento Cultural de Diario 16 de Galicia, 3 Julho 1993, p. IV

As palavras, como outros instrumentos de expressão do social (os símbolos, os hinos e mesmo os números), carregam-se involuntariamente com o seu uso de conteúdos imprevistos. Poucos usuários da linguagem são alheios aos deslocamentos semânticos que imbuem às palavras de atributos apenas inicialmente sugeridos. A reflexão vem a conto duma coluna de Isaac Díaz Pardo (La Voz de Galicia, 17/6/93) titulada «Recrimíname un lusista». O artigo é uma resposta a outro recente de Xavier Vilhar Trilho nas páginas de Diario 16 de Galicia sobre a decisão de Díaz Pardo de se apresentar nas listas do PSOE nas recentes eleições. Este terceiro texto meu tenciona, sem entrar no fundo de ambas colaborações, relacioná-las através da interpretação desse singelo titular: «Recrimíname un lusista».

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A sociedade militar

Enviado a A Nosa Terra; não publicado

O exército é sem dúvida a instituição mais repugnante jamais criada pola humanidade. O que começara como guerras locais entre espécies ou bandas tornou-se, com o decorrer da barbárie humana, na indústria mais poderosa do planeta. O grau de sofisticação dos instrumentos de destruição e morte é algo tão arrepiante que só nos pode levar a duvidar do sentido do universo. Há armas que estragam desde dentro, deixando cavidades irreparáveis na epiderme. Há armas de metal pequeno que furam os caminhos harmoniosos do corpo e rebotam deixando ao sair ronséis vermelhos e retalhos de carne. Há armas que estouram ao pisá-las sementando de órgãos sanguinhentos as areias. Há armas que matam lentamente; na sua agonia atómica, o corpo perde a pele e os cabelos e remata a vida entre vómitos vazios, impotentes. Há armas que matam muitos anos depois, de cancro e de cegueira. Há armas que deixam mapas queimados na pele, como metáforas macabras dos territórios ocupados: a Beira Oeste, a Faixa de Gaza, Panamá, Kuwait, Irlanda. Há armas que asfixiam e armas que desmembram. E há armas legais que assassinam nas câmaras esterilizadas dos presídios, armas que electrocutam com consenso, armas policiais que derrubam desesperados ladrões urbanos na cumplicidade da noite, armas conjugais que deixam uma mulher a dessangrar-se nos labirintos grassosos da cozinha, armas anatómicas que violam meninhas de dous anos, armas de tinta que assinam execuções e masculinas leis injustas.

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Tristes monolingues do poder

Escrito em Berkeley, EUA • Publicado em A Nosa Terra, e em Gaveta 4 [Revista da Faculdade de Humanidades da Universidade da Corunha], 1993, pp. 33-35

NOTA NA PUBLICAÇÃO EM GAVETA:

Estivem a ponto de dizer: «Este texto foi escrito em 1989 e publicado previamente em…», mas não seria certo. Um texto perigosamente semelhante ao que segue foi composto, com efeito, nesse ano cada vez mais remoto, desde o estrangeiro, e naufragou para comum esquecimento na ilha A Nosa Terra na singular data do 28 de Dezembro.

Todas as palavras daquele escrito coincidem basicamente com as de este, e exibem idêntica orde. Neste texto muda, isso si, a grafia, por aquilo de complicar as cousas, e por exercitar a saudável prática de nunca concordar de todo com um mesmo.

Mas nestes anos mudaram, sobretodo, várias cousas que alguns ainda proclamam valentemente não pertencerem já a «o próprio Texto»: a história do país, que amparo assi na ambigüidadade por preservar em cada um de nós um distinto referente imaginário; as nossas maneiras de falar ou não-falar, que às vezes me pergunto por que não poderão já duma vez ser o mesmo; o mapa do poder, ou dos poderes, desenhado a golpe de ditames e intercâmbios mentres dormíamos ou singelamente admirávamos de espaldas uma reticente primavera; a tinta da minha impressora fadigada (quase digo «máquina de escrever», pero logrei voltar a tempo a este tempo); e, talvez o menos importante, mudou a minha própria leitura limitada dos feitos e das cousas.

Este texto sai hoje aqui a pedimento suficientemente explícito da Redacção de Gaveta. Nunca comprendim de todo certas afeições polo vazio, pero muito me temo que as respeito.

Em Mil altiplanos: Capitalismo e esquizofrenia, 2, Deleuze e Guattari aventuram que «é na língua própria na que um é verdadeiramente bilingüe ou multilingüe». Não sei se isto é mero jogo de palavras, mas, pode-se falar da língua sem fazer jogos de palavras? Penso que os autores nos recordam que falar não é só pronunciar, senão ter vozes, identidades invocadas, posicionamentos e atributos locais, situados nos encontros sociais, e que acham na fala um entre vários vieiros de expressão, uma saída, uma manifestação ou uma fugida do heteroglóssico universo interno que tantas vezes, desnecessariamente, sentimos como trampa. Invocar estrategicamente uma das nossas identidades por meio da fala é o poder que temos e o jogo que nos caracteriza como actores sociais, já não como indivíduos senão como divíduos: como vozes.

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A ambiguidade

Escrito em Berkeley, EUA • Publicado em A Nosa Terra

Há pouco dizia-me uma amiga que os meus escritos eram ambíguos demais e, polo tanto, fascistas. Talvez isto seja porque a linguagem possui um defeito irresistível que é a nossa arma e a nossa perdição: confere um falso sentimento de certeza. Em realidade as palavras, supostas representações de conceitos, situam-se em pontos diversos dum imaginário espaço sem fronteiras. Mesmo é frequente que uma palavra ocupe mais dum lugar figurado simultaneamente. Mas um hábito nosso bipolar e maniqueu, que nos ajuda a dar-lhe sentido à irregularidade social, tende a assignar-lhes às palavras conteúdos absolutos, a afastá-las a um lado ou outro da conveniente mas arriscada dicotomia verdade/falsidade.

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Viet-Nam, 1936

Publicado em A Nosa Terra 353, 8 Setembro 1988, p. 20

O Horror só tem um nome múltiplo mas idêntico que levamos inscrito na pele da mão, que espero que jamais desapareça da memória, que merece permanecer, e doer, e fazer que às noites nos ergamos de súbito dum pesadelo de fogo e fumo e rebúmbio infernal de gigantescos insectos bombardeando com morte corpos sem defesa. Esse nome idêntico é mil novecentos e trinta e seis, é Viet-Nam, é a odiosa guerra suja da Argentina, é o Golfo Pérsico onde os rapazes impúberes são enviados a acribilhar velhos sem esperança de voltar. O nome de Viet-Nam, simplesmente, resume uma era monstruosa. Os milhões que dalguma maneira vivemos um viet-nam pessoal composto de experiências ou memória temos a necessidade íntima e a obriga histórica de lembrá-lo, para que os monicreques imberbes que exibem os atributos sexuais dos seus ciclomotores em frente das cafetarias da cidade não esqueçam jamais de onde vêm, quê devem à nossa história assassina, como se mataram as famílias numa alvorada preta que só aos ingénuos lhes parece ridículo lembrar.

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