A ambiguidade

Escrito em Berkeley, EUA • Publicado em A Nosa Terra

Há pouco dizia-me uma amiga que os meus escritos eram ambíguos demais e, polo tanto, fascistas. Talvez isto seja porque a linguagem possui um defeito irresistível que é a nossa arma e a nossa perdição: confere um falso sentimento de certeza. Em realidade as palavras, supostas representações de conceitos, situam-se em pontos diversos dum imaginário espaço sem fronteiras. Mesmo é frequente que uma palavra ocupe mais dum lugar figurado simultaneamente. Mas um hábito nosso bipolar e maniqueu, que nos ajuda a dar-lhe sentido à irregularidade social, tende a assignar-lhes às palavras conteúdos absolutos, a afastá-las a um lado ou outro da conveniente mas arriscada dicotomia verdade/falsidade.

Observemos o discurso etnocentrista que nestes anos originam as elites políticas norte-americanas: a volta aos seus verdadeiros ideais de democracia, à ideia dessa grande família onde o Sonho Americano não é Sonho mas realidade diária, como uma fantasia infantil onde as personagens puras da literatura desenhada desafiam os falsos limites do papel e acedem à existência entre as pessoas. Daí filmes como Who framed Roger Rabbit?, uma excelente peça de ensonhação onde mito e realidade se confundem e, portanto, perdem o seu sentido. E daí discursos políticos como o de Dan Quayle, o candidato republicano à vice-presidência: juntos, Bush e mais Quayle, Pai e Filho da Revolução Reagan, prometem-nos escrever “outro capítulo glorioso na história da mais grande nação que Deus colocou nesta terra”. A palavra revolução já não lhes mete medo: roubou-na Reagan e os seus acólitos, esvaziou-na dum conteúdo que para ele não tinha, fixo-a figurar como pé dum fotograma eterno onde ele mesmo, lamentável homem velho que se descompõe arrastando a uma lama incerta ao seu país, sorri ombro com ombro com os seus adversários objectivos: por exemplo, Martin Luther King, o criador dum gigantesco Sonho já prostituído.

Talvez cumpra pensar no sentido intrínseco desse Sonho, se é que existe. Quando Alfonso Rodríguez Castelao regentava desde América do Sul o governo dum país imaginário, quiçá também ele tinha um Sonho. Quarenta anos mais tarde o seu Sonho ia ser roubado, com o seu corpo, polo falso governo doutro país imaginário. É singelo apropriar-se dos sonhos estrangeiros. Porque quando se observa de perto o conteúdo isolado das palavras que tentam resumir um universo, o que mais sobrevive à nossa análise é a superfície formal das vozes que escutamos ou que lemos: a cadeia fónica povo, os sons que compõem soberania.

No interior dessa membrana fónica residem significados variáveis, quase líquidos. A chamada osmose das ideias consiste precisamente numa tarefa de negociação conflituosa de sentidos. Mas a falácia que ainda rege o troco de conceitos é crer que, através dessa negociação e esse conflito, se pode de feito encher com a certeza dum tipo determinado de matéria ideológica o interior duma borbulha finíssima de sons que infrutuosamente pretende acomodar várias cousas. Não é assim, pois os significados conflituosos coexistem num mesmo espaço de constituição variável: um espaço social e ao mesmo tempo irregular, imaginário.

A ambiguidade subjaz assim a quase todas as palavras. Perante o horror vacui da fala, os orientalistas aliam-se com os ignorantes e os chamados apolíticos em pretenderem que falar não tem sentido. Polo contrário, para nós, educados numa cultura oral e numa interpretação conflituosa da existência, resolver a contradição duma palavra equivale a resolver o conflito que supostamente reside nela. Os actos de fala suplantam assim outras condutas: dizer amamo-nos substitui o fazermos o amor num lugar insuspeitado, dizer povo reempraça o acto de reconhecer-nos socialmente. O discurso oficial e jurídico aproveita-se deste hábito cultural para impor sempre conteúdos oligárquicos: no tempo ocidental a oligarquia das palavras faz boas migas com a oligarquia dos bens económicos e das armas. Como preocupante consequência, o tentar situar-se pessoalmente noutra dimensão do discurso dicotómico -quer dizer, num espaço sem sentidos absolutos, além da dialéctica- é interpretado por muitos como render-se a um adversário. E é assim que as palavras se interpretam erradamente: ou bem como “o que são” ou como “o que não são”, não como uma intensa e genuína vontade de negociarmos conflituosamente a realidade desde uma atitude de constante rebeldia, surpresa e extravio.

Dizia Octavio Paz que “o universo é um texto insensato porque o número dos seus signos é infinito e por isso nem para os deuses é legível”. A falácia do texto de Paz -à própria vez insensato porque nasceria dum código infinito- não radica em ignorar que os deuses somos nós: radica em supor que os signos dos sistemas limitados, como a linguagem humana que creio compartilhar com os que lêem, sim que possuem, polo contrário, um único sentido. Além do processo de leitura, nunca existiu nem o texto de Paz nem o meu próprio. Além do exercício de combater um universo de pessoas e de objectos, o código do social não só pode resultar supostamente ilegível: é que nem paga a pena perguntar-se se existe.

A palavra resiste-se assim à interpretação linear dos que acreditam poder desvelar o sentido intrínseco das cousas. Toda análise dos actos de fala, do texto ideológico, da discussão bêbeda e apaixonada à noite na fumegante espessura dum café caduco de bairro urbano, está condenada à circulariedade pola natureza recorrente dos vocábulos. Admito que as línguas naturais e a lógica que criamos para entendê-las contêm pares de antónimos como sim e não, branco e preto, mau e bom, que facilitam o matizarmos a desordem ou ordem oculta da existência. Mas se existisse um único termo para resolvermos conjuntamente o positivo e o seu hipotético contrário, a singeleza conceptual do vocábulo não evitaria que os falantes tentassem clarificar momento a momento, acto a acto, luta a luta, o seu sentido.

Não se acham tantos textos ideológicos feitos de fala ou de escrita que se subtraiam à dialéctica redutivista. Tanto o não quanto o sim negam a validade do falado: ao afirmarmo-nos num ideal (o Sonho) que para ser construído não precisa necessariamente dum contrário, paradoxalmente estamos negando aos dominadores o rol e o nome que nós mesmos teimamos em conferir-lhes; e ao nos negarem conjugar a palavra soberania ou a palavra independência, eles, os Alheios, estão a negar o seu próprio discurso de domínio e a eles mesmos.

Alguém poderia pensar que a retórica sofista deste escrito consiste em confundir singelamente os contrários e, assim, substraer-se ao compromisso. Não é assim, a não ser que, para entendermo-nos, coincidamos em que a expressão “os contrários” é metáfora, e que “compromisso” carece dum único sentido. Talvez, por isto, este texto seja ambíguo. Mas não nos enganemos: não advogo pola procura de nomes absolutos num espaço intermédio entre o Sonho e este letargo. Não existem pontos intermédios, porque o espaço das palavras que nos constroem e com que construímos o social é basicamente ageométrico.