Golpe económico de ‘Al-Qaeda’?

Publicado em Vieiros

Os resultados das eleições gerais espanholas podem ser fruto dum golpe do terror económico internacional. Uma série de circunstâncias faz pensar num plano detalhado de obscuros interesses, em última instância ligados à crise energética mundial e à luta (verdadeiramente) polo controle dos recursos: o petróleo é absolutamente crucial para a indústria pesada, incluída a armamentística. Dentro da obscena lógica do capitalismo internacional, a matança de Madrid é um sintoma de que, na guerra económica, as oligarquias devem respeitar certas regras de jogo, polo seu próprio benefício. Enumero apenas alguns dados e hipóteses, para que quem tiver mais inteligência, as ligue e extraia conclusões. Tudo isto é tão especulativo como grande é a minha ignorância de muitos factos. Em todo o caso, quando se dão eventos históricos desta magnitude é legítimo perguntar-se: A que interesses beneficia a nova situação?

Concorrem nestes acontecimentos vários factos recentes. Podem ser coincidências, ou pode ter sentido ligá-los. Em 5 Dezembro 2003, dous dias antes das eleições parlamentares russas, uma potente bomba estourou num trem de proximidades em Yessentuki, em semelhantes circunstâncias às do massacre de Madrid. Eram as 7:45 da manhã. No ataque morreram mais de 40 trabalhadores e estudantes. A explosão destroçou parte do trem em maneira semelhante à das bombas de Madrid. Discutiu-se se fora um ataque suicida ou uma acção por controle remoto. Putin atribuiu o atentado a “separatistas chechenos”. Nunca se soubo quem fora. Dous dias depois, Putin ganhou esmagadoramente as eleições. Em 29 Dezembro foi detido um tal Israpilov como implicado nos ataques. Encontraram-se-lhe explosivos e material para estourar bombas por controle remoto. Em 2001, o Ministério de Interior espanhol informava que alguns dos detidos de “Al-Qaeda” tinham ligações com o terrorismo checheno. Há pouco detiveram-se ainda mais membros de “Al-Qaeda” (dos quais se falou muitíssimo menos que dos da ETA). Em 12 de Março informava-se que agora mesmo o exército EUA está a realizar operações em Algéria contra as brigadas salafistas, que têm membros residentes em Grã Bretanha, França e Espanha. O massacre de Madrid tivo lugar no dia 20 Muharram 1425 no calendário religioso islâmico (de base lunar, não solar), exactamente no aniversário islâmico das grandes manifestações em Espanha e todo o mundo contra a invasão de Iraque (23 Março 2003, isto é, 20 Muharram 1424). Curiosamente, o vídeo de Abu Dukhan Al-Afgani (“Pai do Fume, O Afegão”; Gebel Abu Dukhan é o nome duma montanha em Egipto) que reivindica o atentado, refere-se a um aniversário cristão (“Dous anos e meio depois” do 11 S), o qual faz duvidar do carácter fundamentalista religioso dos autores, da verossimilhança do vídeo, ou de ambas cousas. Em qualquer caso, ao dia seguinte do massacre, milhões de pessoas saíam de novo à rua no Estado Espanhol contra o terrorismo, quer dizer, contra a guerra. Dous dias depois, as eleições espanholas forçavam um novo governo.

As circunstâncias políticas dos países da “aliança” também merecem comentário. Parece que, pouco antes dos atentados, o Partido Popular estava a perder pontos e até a maioria absoluta. Mas para nada estava assegurada tal vitória do PSOE. Por sua parte, o Partido Republicano dos EUA já começara a sua campanha eleitoral capitalizando a mensagem antiterrorista até com imagens do remoto 11 de Setembro 2001. Mas existe também a impressão de que pode ganhar o candidato democrata, John Kerry. Portanto, de cumprir-se alguns prognósticos, sem o atentado de Madrid poderíamos encontrar-nos com um binómio Kerry-Rajoy, não já com o tandem Bush-Aznar. E Blair está também debilitado. Bush representa a possibilidade duma nova intervenção em oriente médio (Irão, Síria) polo controle dos recursos energéticos. Kerry pode significar um hiato táctico na campanha de terror contra o Golfo Pérsico, um hiato no qual, sem abandonar o Iraque, os interesses se dirijam agora a África Ocidental, com grandes reservas de petróleo ainda sem explorar (sem dúvida um novo “golfo pérsico”, como alguns analistas o chamam, mas sem as turbulências daquele). África pode ser, por uma série de razões, um alvo militar e económico muito mais fácil para o capital ocidental.

A presença de tropas ocidentais em Iraque garante o estabelecimento duma “constituição democrática” que ameaça as famílias oleogárquicas do Golfo. O “efeito dominó” dos ataques de Madrid pode acelerar a retirada de tropas ocidentais de Iraque, uma situação mais aproveitável para o “fundamentalismo islâmico” (quer dizer, os oligarcas sauditas, “Bin Laden” incluído). Certo, a possível presença de tropas conjuntas da ONU no Iraque não elimina totalmente o risco de ataques em países ocidentais. Mas é possível que a nova constituição definitiva (?) que surgir das eleições em Iraque (não antes de finais de 2004) tenha muito pouco a ver com a provisória actual. Em todo o caso, uma “democracia” no Iraque debilitaria a autocracia saudita, por exemplo, e certos opressivos valores do “Islão” em que se escuda a sua forma de dominação.

A tragédia de Madrid e o resultado eleitoral em Espanha podem precipitar uma reconfiguração das peças na guerra económica internacional. A retirada das tropas espanholas poderia relaxar a ameaça de mais atentados em território espanhol: simplesmente, o terror é uma táctica, não um estado permanente de cousas. Mas é claro que outra parte beneficiada é “Al-Qaeda”. O ataque demonstra que, quando se vulneram flagrantemente as regras da guerra santa entre as grandes famílias económicas (uma vulneração que começou muito antes do ataque do 11 S 2001, que pode ser interpretado como uma advertência perante um plano já pré-desenhado dos EUA para invadir o Afeganistão) pode haver terríveis consequências. A capacidade de pressão do “terrorismo islâmico” é, neste sentido, muito grande. O petróleo está fundamentalmente sob os “seus” territórios, nos “seus” países. Os interesses de “Al-Qaeda” não são só recuperar os “seus” territórios (todo o Islão!, incluindo o Iraque) para reestabelecer um regime teocrático medieval, mas também ter bons clientes petroleiros entre os países industrializados: a China, cliente de Irã; Europa e Rússia, clientes do Iraque; EUA, cliente de Arábia Saudita. Donos do seu petróleo, os oligarcas poderiam negociar mais facilmente com uma Europa mais dócil militarmente (Alemanha, França, uma Espanha reincorporada, uma Rússia de Putin) do que o fazem com o ávido eixo anglo-saxão. E a sua mensagem é que, se a voracidade do grande capital industrial de Ocidente deseja este petróleo, agora que só restam tão poucas décadas dele, deve aprender a pedi-lo e a negociá-lo, sobretudo quando as famílias oligárquicas da região têm de garantir também a sua distribuição para os próprios interesses da sua classe. O capital industrial americano, por exemplo, deverá diversificar os seus alvos de “segurança energética” (algo explícito, além, nas próprias recomendações dos think-tanks conservadores americanos), olhando para a África e para a América do Sul. Por isso, espero atinar com a hipótese de que “França” ou “Alemanha” não são objectivos de “Al-Qaeda” na altura. E espero que esteja errada a hipótese de que sim que o são “Grã Bretanha”, “Itália”, “Polónia”, “EUA” e “Austrália”, estes dous últimos, com próximas eleições em finais de 2004.

Com a invasão de Iraque, o sector hegemónico do capital espanhol (“Aznar”) apontou-se a uma viragem arriscada: favorecer-se dos EUA para as contratas petroleiras em Iraque, e talvez para a exploração do possível petróleo das Ilhas Canárias e do seguro petróleo frente à costa do Sara Ocidental, calculando que dentro do clube de Europa não poderia competir com economias mais fortes polo reparto dos recursos. Numa ocasião, dantes da invasão de Iraque, Aznar disse-lhe a Zapatero no parlamento: “Se você estivesse no meu lugar, faria o mesmo”. O apoio de “Espanha” aos “EUA” era, portanto, uma questão de Estado: de assegurar-se o acesso aos decrescentes recursos por décadas por vir. Essa política está a fracassar tragicamente, com milhares de mortes no Iraque, Marrocos, Turquia, Espanha. Agora o relativamente modesto capital industrial espanhol deveria restaurar alianças com o europeu, sem pretensões de grandeza económica, e com muita cautela perante os actuais e futuros detentores do petróleo mundial.

Mas provavelmente ainda restem muitas décadas de tragédia: até que dure o petróleo. No entanto, como sempre, será a gente de toda parte quem continuará a pagar o piche com sangue.

Aquelarre

Publicado no Semanário Transmontano • No Portal Galego da Língua

Depois da Grande Finale eleitoral de hoje, há jogo o domingo em España. Eu vou jogar, vou votar, vou introduzir entintadas papeletas num féretro pequeno donde sai o fumo dos ausentes. São féretros que cheiram a Iraque, Palestina. Levam as letras de Alá em tinta de petróleo. Os versículos do Al-Corão chegam à tua casa em recolhidas papeletas. Cada profeta canta as suas virtudes na única Língua do universo. São todos enormes ídolos masculinos, representados sem imagens, representados por palavras sagradas. Vou votar no dia 23 do mês de Muharram do ano 1425 após a Hégira do profeta, no sonoro 14-M 2004 após a Morte do profeta, que era o mesmo ser monstruoso. Vou votar contra mim próprio, pois cada partido ao que vote é contra mim próprio, cada brigada de Abu Hafs Al-Masri reencarnada em brigada eleitoral, ou viceversa, que são todos o mesmo ser monstruoso, com várias cabeças comparáveis e uma única devoração unánime. Vou votar a parte desse monstro, aquele que ainda não me devore a ilha de utopia que sobrevive no meu centro. Vou votar contra a palavra, com o absoluto silêncio dos altivos vencidos, vou votar na silenciosa língua portuguesa que hoje representa por puro acaso o mar dessa inútil utopia: vou votar sem língua, como as alimárias primitivas. No dia 23 do primeiro mês de Muharram quando Mohammed se expulsou a si próprio da Mecca como um Cristo do deserto para maior glória da vesânia, vou alimentar orgulhoso as filas do silêncio, orgulhoso da inútil resistência. Porque não quero ser esse dia ainda mais resto de mim próprio. Vou votar em preto, em piche e sangue, que são as duas cores das entranhas dos seres primitivos. E essa noite celebrarei com ânsia o banquete das cifras, e trocarei sons guturais com os outros amigos derrotados, e celebraremos o aquelarre, e esperaremos pacientes outra guerra refugiados debaixo dos tanques que são as casas, as garagens clandestinas, onde naufraga o amor, o sexo, que são o mesmo prelúdio da morte. E serei feliz, como hoje, como todos os seres primitivos. Aberta a boca ao alimento, enfrente do ecrã e dos pálios, aberta a boca enorme ao alimento.

Do Iraque a São Tomé: Preparando uma longa resistência

1. A crise energética mundial

Temo-me que este texto poderia ter sido escrito há anos (talvez décadas), ou poderá ser ré-escrito no futuro por vir. O projecto de controlo dos recursos energéticos mundiais polas oligarquias ocidentais -sobretudo as que só tangencialmente se podem chamar “dos Estados Unidos”, pois as principais Raças que dividem o mundo são a classe e o género, não a nação– é logicamente longo, detalhado, cuidadoso, consciente, sério e evidentemente responsável. Ao longo da história, nenhum grupo dominante deixou de preservar por todos os meios possíveis os seus interesses já não para eles próprios, mas para os seus descendentes e herdeiros sociais. A iminente escassez dos recursos energéticos pesados é uma evidência tão clara que só uma cegueira colectiva pode levar a subsumir os motivos de muitas “guerras” actuais sob escusas ideológicas. Diversas fontes indicam que, ao ritmo actual de produção petrolífera, e para as reservas que se conhecem, ao planeta lhe restam uns 50 anos de petróleo. As reservas dos EUA durarão 10 anos; as do Reino Unido, 5. As de Arábia Saudita, mais de 100. Mas, em toda lógica, uma vez acabadas as reservas num lugar, e com o crescimento económico exponencial, a produção dos jacimentos restantes deverá aumentar, e esses 100 anos da Arábia Saudita ficarão em menos. Mesmo se se acharem novos jacimentos e se melhorarem as técnicas de extracção (na altura aproximadamente a metade do petróleo é desaproveitado no processo), estamos a falar só de décadas (não séculos) de reservas. Nas páginas excelentemente documentadas de Planetforlife (http://planetforlife.com/OilPeak.htm ) mostra-se como a curva de reservas mundiais de petróleo e gás descerá a partir de 2010, e em 2050 as reservas estarão à altura, aproximadamente, das de 1965:

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Mas, reparemos, as necessidades energéticas mundiais em 2050 serão muitíssimo maiores do que em 1965! Estes são arrepiantes factos, não uma alucinação dos ideólogos da conspiração. O horizonte da “segurança energética”, como o discurso económico conservador o denomina, está muito próximo: a escassez de petróleo atingirá, se não os meninhos de agora, sim os seus filhos. Planetforlife situa este horizonte em 100 anos: “Um mundo sem petróleo não é o futuro que imaginam a maioria dos americanos, mas é um facto. Precisa-se uma visão de longo prazo: sobre 100 anos”. “Longo prazo”, cem anos? 100, 70, 50 anos, pouco importa: isso não é nada na história duma classe. Quantos séculos durou a nobreza feudal? E quantos poucos levamos de capitalismo industrial?

No massacre de Cosova e Jugoslávia não transparentaram tão claramente os interesses económicos, também conectados dalguma maneira ao acesso ao petróleo de Ásia Central. Mas, no rosário de simulacros cada vez mais sofisticados em que consiste o imperialismo militar ocidental, o capital chegou ao seu mais alto grau de transparente cinismo. O necessário consenso popular constrói-se agora polo reconhecimento explícito das causas das invasões militares. Enquanto na segunda guerra do Golfo, perpetrada polo pai de Bush simplesmente como representante da óleo-garquia americana, o motivo explícito era a “libertação” dum país (Kuwait) patentemente invadido polo exército doutro tirano, nesta terceira “guerra” de Iraque que continua, as conexões com os interesses económicos saem à luz da maneira mais evidente.

Ignoram-se ainda as intenções exactas da atrocidade das Torres Gémeas de Nova Iorque. Sabe-se que os fundos para essas acções vinham da Arábia Saudita, e que o entramado principal que suporta a metáfora de “Ben Laden” é também a Arábia Saudita, país extraterrestre no seu ordenamento jurídico e na coalescência entre a religião, o estado, a classe e a enorme família dos Saud, e paradigma do fascismo petro-monárquico. Sob o chão expoliado polo estado de Arábia Saudita acha-se a maior reserva de petróleo do mundo. Sob o chão expoliado polo sempre militar estado de Iraque acha-se a segunda. A economia dos EUA depende na altura num 54% de petróleo estrangeiro. Em 25 anos (se ainda há mundo) dependerá num 70%. O panorama é apavorante, não nos enganemos. Um pergunta-se em que medida se podia sentir de pressionada a oligarquia saudita sabendo que era a principal fornecedora do seu regime aliado americano. Até quando poderiam continuar a subministrar petróleo? E quanto restaria para eles próprios, para a perpetuação da sua casta? Embora pareça irónico, tanto o ataque de Nova Iorque como a conquista de Iraque para a libertação das suas grandes reservas de petróleo resultam positivos para Arábia Saudita: no jogo do capitalismo, o melhor que podes ter é um bom competidor, que será o novo petróleo de Iraque quando saia maciçamente ao mercado, agora pago em dólares. Voltará a baixar o euro.

2. O novo cenário de África Ocidental

Quanto à visão do actual regime norte-americano, a sua lógica não tem fissuras. É o pensamento conservador de sentido comum mais enraizado nas masculinas hierarquias familiares: Há escassez de arroz entre os vizinhos do teu prédio. Se tu tens mais poder, e observas que o teu vizinho tem mais arroz, mas vende-lhe-lo (em euros, não em dólares) aos outros vizinhos (Europa), por acaso não entrarás na sua casa, capturarás o chefe de família que os curdos escondem drogado num zulo e apropriarás-te do arroz para a tua família? Não quererás que os netos da tua casta continuem a manter os teus privilégios, para o qual devem comer desse arroz? E não considerarás que é injusto esse reparto desigual do arroz no teu mundo? Substitua-se arroz por petróleo, e vizinho por Iraque, e obtemos o panorama.

Mas o panorama continua. Outro vizinho com muito arroz é Irão, que o vende sobretudo à China. Também haverá que entrar dalguma maneira na sua casa (com cuidado, porque a China é nuclear e espreita) para que no-lo “venda” a nós (que casualidade que um membro do clã Bush é alto cargo num importante Comité de relações sino-americanas). E mais tarde ou mais cedo haverá que controlar Síria. E, logo, haverá que ir procurando o arroz dos outros vizinhos ainda pobres, quase desconhecidos, que ignoram que têm grandes recursos nas suas alazenas fechadas: o ocidente africano, por exemplo, novo “teatro” da expansão militar norte-americana. Informes dos conservadores Programa para África do Center for Strategic & International Studies dos EUA ou do grupo AOPIG (African Oil Policy Initiative Group) do Institute for Advanced Strategic and Political Studies, baseado em Israel mas com actuação também nos EUA, falam explicitamente da necessária “diversificação” das fontes de energia dos EUA, por “segurança energética”, e do carácter estratégico de África e África Ocidental especialmente (ver p.ex. “U.S. Oil Stakes in West Africa“, por Jessica Krueger). Outras fontes falam da possibilidade dum novo Golfo Pérsico em África em termos de reservas. O petróleo do ocidente africano, de bastante boa qualidade, é mais ligeiro e mais barato de transportar aos EUA. Além, a maioria acha-se sob a plataforma continental, não na terra firme, que é sempre motivo de conflito. Em África não há grandes exércitos que poderiam molestar. Há, sim, “corrupção” e lutas “tribais” que convém destacar, para impor a necessidade de certa ordem e estabilidade, com as quais a maquinaria capitalista funciona melhor. Em troca da intervenção americana em África Ocidental, e de bons acordos comerciais para a “ajuda” na exploração deste petróleo, estabelecerão-se regimes democráticos “estáveis”, desenvolverão-se minimamente as comunicações internas, e impulsará-se um sistema de ensino “universal” e “democrático” comparável ao que sofremos em Ocidente, requerimento ineludível para o disciplinamento ideológico e para a reprodução da classe política. Polos hoteis de luxo dos países de África Ocidental pululam de cada vez mais executivos americanos do petróleo, procurando acordos para um futuro próximo. Obviamente, precisará-se estabelecer também bases americanas de controlo e para treinamento militar para os caducos exércitos africanos. Depois, haverá que “modernizar” os exércitos africanos com armamento pesado: haverá que lhe-lo vender em troca de petróleo. Esta “diversificação energética” reduzirá também a dependência dos EUA do petróleo de zonas “geo-estratégicas” conflituosas, como Oriente Médio.Um claro exemplo de como isto já se está a cumprir encontra-se no acontecido em São Tomé e Príncipe. Um informe da AOPIG de Janeiro de 2002 para a administração Bush falava explicitamente de

“Declarar o Golfo de Guiné área de “interesse vital” para os EUA; estabelecer um sub comando regional semelhante ao US Forces Korea; esse sub-comando regional deveria considerar decissivamente o estabelecimento duma base regional, possivelmente nas ilhas de São Tomé e Príncipe“.

Apenas sete meses mais tarde, em Agosto de 2002, o presidente eleito de São Tomé e Príncipe, Fradique de Menezes, um rico homem de negócios, anuncia planos para estabelecer uma base naval dos EUA no país. Em Outubro de 2002 De Menezes substitui o primeiro ministro Gabriel Costa, do Movimento para a Libertação de São Tomé e Príncipe, a quem meses antes encarregara formar governo por o MLSTP ser o partido mais votado. Em Julho de 2003, um golpe de estado militar com elementos de antigos combatentes depõe De Menezes e o seu governo sob acusações de corrupção e passividade perante a injustiça social. Após uma semana de negociações e conversas entre a facção golpista, o embaixador dos EUA Kenneth P. Moorefield e representantes de Nigéria, Gabão e outros países, De Menezes é restituído na presidência. Moorefield, um condecorado militar texano que lutou no Vietname, fora delegado comercial em Venezuela durante o mandato de Bush pai, e tivera outros cargos diplomáticos. Em Novembro 2003, Moorefield anuncia que o exército dos EUA colaborará com a “reestruturação” do exército são-tomense. Embora São Tomé e Príncipe ainda não explorou uma gota de petróleo, espera-se que a extracção comece em 2007. As companhias ExxonMobil, ChevronTexaco, Royal/Dutch Shell e TotalFinaElf têm indicado interesse nas explorações. Ao meter as mãos também em São Tomé e Príncipe, os EUA quer previr a possibilidade deste estado cair na órbita da mais poderosa Nigéria (com quem compartilha a exploração do petróleo da zona), sob crescente influência islámica.

3. O discurso e os factos

Mas, porque o petróleo? Se os maiores recursos energéticos mundiais ainda por explorar estão no gás natural, porque ainda o carácter estratégico do petróleo? Cada vez se está a utilizar mais o gás natural e o gás em estado liquado (que ocupa 600 vezes menos que o natural –melhor para o transporte– mas que é muito mais perigoso de manipular). Sectores crescentes da economia capitalista (telecomunicações, informática) podem se reconverter a outras fontes energéticas, até a solar. Mas a indústria pesada não é reconvertível não: precisa de fuel, de derivados do petróleo. E a indústria pesada (a do aço, por exemplo) é a que fabrica, entre outras cousas, as armas que se empregam na conquista dos territórios onde se acha o petróleo para fabricar as armas. É também com maquinaria pesada que se fabricam muitos outros bens de consumo: precisa-se petróleo. O círculo vicioso é interminável.

Portanto, não se prevê no futuro imediato saída a esta lógica do grande capital industrial, do que Chomsky chama o “complexo militar-industrial”. Parte desta lógica é transparentemente articulada no discurso das oligarquias industriais (os EUA, Europa, Japão e outros países). Os think-tanks ultra-conservadores norte-americanos, que nutrem o pensamento dos “falcões” do Pentágono (muitos deles filhos, por certo, de judéus liberais que sofreram o nazismo ou o exílio), expressam as metas com uma clareza que não precisa tradução. O Project for the New American Century (Projecto para o Novo Século Americano), ao que pertenciam o intrigante Dick Cheney e Wolfowitz, elaborou em Setembro de 2000 (antes das Torres Gémeas!) o informe Rebuilding America’s Defenses (“Reconstruindo a Defesa Americana” http://www.newamericancentury.org/RebuildingAmericasDefenses.pdf ) que explicita sem lugar a dúvidas o lugar militar dos novos EUA no mundo:

«O liderado global de América (sic), e o seu papel como garantia da paz actual entre os grandes poderes, depende da segurança da pátria americana; da preservação dum equilíbrio favorável de poder em Europa, no Oriente Médio e a região circundante produtora de energia, e no Leste asiático; e da estabilidade geral do sistema internacional dos estados nacionais relativamente aos terroristas, ao crime organizado, e a outros “actores não estatais”».

Em breve: não estamos a falar só de interesses pontuais tácticos (eleitorais ou de hegemonia cultural), mas duma estratégia geral de colonização (num recente artigo em EL PAÍS, Carlos Taibo desmonta o mito da “globalização” económica e caracteriza o processo actual como de pura americanização), envolvida, sim, numa nauseabunda retórica cristã megalómana e messiánica, comparável à dos sionistas, os fanáticos islâmicos ou os fundamentalistas hindus, mas que não é mais do que retórica. E o que contam são os factos: as armas, não as metáforas. Seria ingénuo pensar que as actuais elites industriais e as petromonarquias árabes não planificam a longo prazo o futuro das suas castas, sobretudo quando este futuro está tão próximo. Para eles, trata-se duma questão de sobrevivência.

Não tento psicologizar nem personalizar: cumpre entender esta lógica para tratá-la como uma verdadeira encruzilhada económica e política global. Não compartilhar (naturalmente) o modelo económico capitalista e lutar por outro(s) não resolve o dilema energético. As diferenças entre o Capital da “velha Europa” e o dos EUA neste assunto são de táctica, não de filosofia geral. Portanto, muitas das futuras guerras, invasões, massacres e outras violações do triste “direito internacional” serão de novo uma função da tensão entre os blocos económicos, e das oportunidades pontuais dos seus regimes. Por exemplo, a decisão de intervir proximamente em Síria ou no Irão de uma maneira ou outra dependerá de se não é mais rendível intervir, por exemplo, no Chad, no Sudão, ou em Nigéria, onde “lutas tribais” (dizem as notícias periodicamente) obstaculizam a produção petrolífera. Esta dinâmica poderá ter o hiato duma administração americana do partido Democrata (mas, lembremos, foi Clinton também quem em 16 Dezembro 1998 ordenou atacar objectivos civis de Iraque), ou de outros dirigentes republicanos que representem interesses doutras famílias económicas. Mas a lógica é imparável, e os detalhes do processo são contingentes. Por exemplo, o ex-candidato democrata Al Gore também tem interesses na Occidental Oil, que passa um importante gasoduto por Colômbia. Colômbia, portanto (sob a escusa da guerrilha terrorista e do narcotráfico) poderá ser mais um próximo objectivo. Devemos por isso estar alertes aos avisos retóricos dos dirigentes dos regimes económicos ocidentais contra os países do “terrorismo”, simplesmente porque esse discurso pode dar dicas sobre os possíveis lugares de intervenção próxima: a legitimação da barbárie precisa do anúncio prévio às massas. As frequentes viragens na delimitação do “eixo do mal” internacional podem expressar interesses tácticos cambiantes: poucas semanas depois de Líbia deixar de pertencer ao “eixo do mal” por “pregar-se” à condição de não produzir “armas de destruição em massa”, a ministra espanhola Ana Palacio visita o ditador Gaddafi. Repsol já tem contratas em Iraque. Mais petróleo, é a guerra. O mesmo se pode dizer sobre os cambiantes apoios de regimes políticos e partidos a determinadas “causas” ou “povos”, oprimidos ou não.

4. Uma longa resistência

Em resumo: devemos estar preparados para uma longa resistência, uma resistência que pode durar toda uma vida. E aqui o dilema está em se é possível ainda proclamar a utopia e fazê-la compatível com o protesto pedestre. É evidente que os estados assentes em territórios que, por pura coincidência, possuem o petróleo, não têm o direito legítimo de fazer o que queiram com um recurso que é de todo o planeta. Os povos que ali vivem, sim, têm o direito e a obriga de administrá-lo, mas há que economizá-lo e reparti-lo. A utopia é que, se compreendéssemos que estamos no mesmo barco que afunde, fariam-se desnecessários os estados fragmentados, perante a iminência do desastre (económico, ecológico, sanitário, humano). A realidade é, porém, que o desastre ainda é selectivo, e igual que se matam ratos que poluem os “nossos” esgotos, se é necessário exterminam-se colectivos inteiros que se interpõem no “nosso” labor de latrocínio.

Por isso, a alternativa é procurar negociar os termos do privilégio de classe sobre o petróleo. As organizações internacionais, partidos, grupos de pressão, ou o próprio Foro Social Mundial devem tentar negociar no âmbito mundial e local, nos mais altos níveis e instâncias, os termos e condições em que se pode efectuar o controlo de classe dos recursos. Desde a resistência anti-colonial deve procurar-se a interlocução sobre uma politica energética mundial que evite os genocídios e o império militar, e devem explorar-se com inteligência as fissuras naqueles regimes económicos (a “velha e caduca Europa”, por exemplo) que ofereçam outras “soluções” internacionais, igualmente antidemocráticas por capitalistas, mas menos sanguentas. A resistência humana em favor duma nova sociedade será longa, muito longa (e sem garantias de que nunca vaia dar frutos!). Poderá desaparecer George W. Bush do panorama mundial, sujeito a contingências eleitorais. Poderá oscilar Europa entre períodos mais negros e mais grises. Mas o projecto de apropriação dos recursos por parte do capital não tem volta atrás. E, dentro do ódio ideológico que lhe professemos às oligarquias, uma resistência o mais ampla e organizada possível deve tentar compreender a lógica delas para tentarmos minimizar o sangue, para tentarmos erradicar o massacre como método. Afinal, só se trata de conjurarmos o cinismo: porque aqui em Ocidente reside a resistência privilegiada, a quem seguramente nunca lhe cortarão a luz dos computadores enquanto haja um iraquiano ou um nigeriano a quem voar em pedaços para garantirmos o oleoduto que nos nutre.

Um casamento irreal

Publicado no Semanário Transmontano on-line, secção Crónicas da Galiza, 3 Novembro 2003

É notícia que o príncipe de Espanha, Felipe de Borbón, acaba de anunciar o seu próximo casamento com a jornalista Letizia Ortiz. Entrado o século XXI, o povo continua a ver-se sujeito a cerimónias medievais, adereçadas mediaticamente com o bombardeamento humanitário dos telejornais, magazines, e outros subprodutos. Entre os absurdos desta situação política e social está a necessária aprovação deste futuro casamento polas Cortes espanholas (as câmaras do Congresso e o Senado). O epígrafe 4 do artigo 57 do Título II da Constitución Española diz (intraduzo, porque as leis espanholas, espanholas devem ficar, não distorcidas polo falacioso exercício de pretender fazê-las galegas, bascas ou catalãs a traduzi-las): “4. Aquellas personas que teniendo derecho a la sucesión en el trono contrajeren matrimonio contra la expresa prohibición del Rey y de las Cortes Generales, quedarán excluídas en la sucesión a la Corona por si y sus descendientes”. Quer dizer, se as Cortes espanholas não aprovarem este casamento, Felipe de Borbón não poderia ser rei de Espanha quando Juan Carlos morrer. Mas a hipótese é impensável. E, contudo, outro rei ou reina sofreríamos.

Mas, que lhe deu a monarquia, esta monarquia, qualquer monarquia, à Galiza, a qualquer dos países do reino? Ignoro tanto a história política da Galiza como a de Espanha, é um dos meus problemas mentais. Mas, como amostra, dos últimos fotogramas que mais ficam na minha retina é o do actual rei Juan Carlos a descer ex-machina à praia totalmente petroleada de Mugia, quando do inacabável desastre do Prestige, com os seus impecáveis sapatos pagos por nós, a fazer-se a foto enquanto criticava os políticos que se faziam a foto. Pura propaganda monárquica e direitista. Porque, não esqueçamos, o rei é o Chefe do Estado, do mesmo estado que leva décadas a mostrar negligência, desprezo e esquecimento polo bem-estar das gentes da Galiza. E o rei é o Chefe de Todos os Exércitos, dos mesmos exércitos que tardaram semanas em baixar a limpar o piche das nossas praias mas tardaram dous dias em ir a Iraque a matar humanitariamente ou repartir esmola ocidental a um povo que deveria ser deixado em paz. Portanto, o rei não é nem pode ser neutral: nem este, nem o vindeiro, nem nenhum. A monarquia é um jacobino resíduo sexista, classista e espanholista, num país de países envenenado por Gran Hermano. Porque, por qual razão que não for primitiva se herda patrilinearmente a representação política, o controlo de todos os exércitos, o privilégio de sancionar as leis, de nomear o presidente do governo eleito polo parlamento, etc. etc.? A monarquia é o maior obstáculo para o raciocínio humano numa Espanha politicamente esclerótica.

E um parlamento inteiro de 350 pessoas terá de se pronunciar, de uma maneira ou outra, sobre se o sangue azul de Felipe se pode mesclar ou não com o sangue vermelho de Letizia! Se podem ou não os amantes legitimamente misturar os seus orgânicos humores nas noites em que os seus exércitos continuem a ocupar humanitariamente qualquer país! Será interessante ver que posição política sobre esta erótica ligação (ir)real tomam no parlamento espanhol os (poucos) representantes do nosso republicano Bloque (sic) Nacionalista Galego.

Mas dizem as boas línguas que entre os inconfessados planos políticos deste principinho azul Felipe estaria, quando herdar na coroa, renunciar e submeter a monarquia a referendo. Ou algo assim. Seria o acto mais inteligente da sua vida. Espero viver para vê-lo, agora que o povo está desactivado para botar directamente a monarquia aos caimães do esquecimento, que é o que merece. Sim, seria inteligente, sobretudo porque Felipe poderia ganhar o referendo! Mas já sabemos que a inteligência está renhida com o Poder. E a Galiza, se na altura ainda existe, continuará a ter rei para um tempinho. Até anda outro nobre chamado de Bragança por aí a fazer-lhe as beiras à Galiza, como se um só pretendente não fosse suficiente. Vaites, vaites!, como enxotamos nós os maus agoiros. Saúde e república –diz o colega António Gil–, que é uma forma algo menos cavernícola de oprimir-nos.

O direito a sermos dominados pola Língua

Publicado no Semanário Transmontano, 30 Setembro 2003

Pouco se sabe em geral nesse lugar que por convenção chamamos Portugal do que acontece em matéria de língua(s) (e de muitas outras cousas) nessoutro lugar que por convenção chamamos a Galiza: refiro-me à parte da Galiza na altura submetida (como todos os países naturais) aos efeitos dum Estado, o Reino de España, em cujo centro mora um enorme eñe imperial. Na realidade, as cousas da língua na Galiza são tanto muito complicadas como muito singelas. Tentarei resumi-las pobremente, para ver o comum no respeitante ao papel da língua na vida diária.

É sabido, isso sim, que na Galiza se falam dous idiomas. Do espanhol, nem direi muito: é uma forma de espanhol que não se pode identificar com o falado na Andaluzia ou na Bolívia, mas que, na mente de muitos (esse prodígio de catalogação da realidade), é “o mesmo”. Da outra e primeira língua da Galiza, o português –que coloco em segundo lugar simplesmente para poder estender-me mais–, direi quase o mesmo: o português galego não se pode identificar plenamente com o alentejano ou o carioca; por isso (e aqui vem a curiosa diferença), na mente de muitos é “outra cousa”, “outra língua”.

Qual é a fonte de tal divergência no tratamento destas duas línguas na Galiza? (a própria, que é o português, e a historicamente alheia e agora socialmente dominante, que é o espanhol). Que faz o Estado espanhol para impor tal distinção nas mentes? E que não faz o Estado português para restaurar o equilíbrio na visão das línguas na Galiza?

Simplesmente, o Estado espanhol impõe sobre nós as letras: a palavra escrita, a cultura escrita, o sistema educativo em espanhol… enfim, a ignorância do próprio como método. Por meio do sistema educativo e doutros dispositivos criam-se os contrastes entre os falares “regionais” galegos (periféricos, quase atávicos, perdidos num recanto dessa tristíssima piel de toro, e portanto “tolerados” como curiosidade) e a letra impressa espanhola, que da sua ortografia até ao discurso vem embebida de ânsias nacionais espanholas, quer dizer, coloniais.

Mas, por acaso não é isto o que faz o Estado português com os falares dos seus súbditos? Não impõe o “ão” onde se diz o “om”, o “o” onde se pronuncia “ou”, o “v” onde se realiza o “b”, o “também não” onde existe o “tampouco”? Por acaso não cria o Estado português miragem de unidade da mesma maneira? Sim, e não. Portugal estabelece estas diferenças (sempre de classe) entre falares e escrita, e portanto entre grupos sociais, sobre e contra a sua própria língua, o qual não deixa de ser um mecanismo de dominação dos estados tão comum que se torna, por obediência, em direito dos cidadãos ocidentais a serem correctamente disciplinados na Língua.

É isto exactamente, nem mais nem menos, o que queremos muitos galegos e galegas (provavelmente muitos mais do que se pensa): que a nossa língua escrita, a que nos divide e classifica como sábios ou parvos, como pobres ou ricos, seja o mesmo instrumento que têm outros países de língua comum. Não queremos escrever (ou falar) o galego em espanhol: queremos o direito a sermos dominados, como qualquer país ocidental normal, pola Língua própria, que no nosso caso é a portuguesa. E nesta matéria Portugal inibe-se porque cai do outro lado dum rio inexistente. Má sorte, ou má política de estado?

Se as cousas fossem normais na Galiza, nem este textinho seria necessário: falaríamos dos assuntos que têm importância.

Razões ocultas?: Iraque, o euro, Espanha e o Sara Ocidental

Publicado em A Nosa Terra

São sabidas bastantes das causas para este ataque do regime dos EUA sobre o território e os recursos desse país agora chamado Iraque. Também, do apoio do governo do Reino Unido a esta agressão. Menos entendida é, porém, a decisão do governo espanhol, até nas próprias filas do Partido Popular. O cisma entre a direita francesa e a direita estadunidense quanto à política bélica internacional (representadas nas posturas respectivas de Chirac e de Bush) também surpreende. Há alguns factos para mim significativos desta guerra que nos poderiam dar pistas para compreender uma complexa situação.

Facto número 1: O dólar e o euro. Em Novembro de 2000, Iraque adoptou o euro como moeda de troco para a venda de petróleo. Naquela altura, o euro valia 80 centavos de dólar. Hoje, vale sobre 105, uma revalorização considerável. Ou, com outras palavras, o dólar depreciou-se. Isto foi uma aposta do regime iraquiano polo euro, aposta que lhes estava a sair bem, e que com o final do bloqueio económico sairia-lhes ainda melhor. As petroleiras americanas temem que esta viragem do “petrodólar” ao “petroeuro” se poda estender a toda a OPEP, especificamente a Irão primeiro. Significativamente, a intervenção no Iraque é levada a cabo por dous países sem euro (EUA e RU), mas oposta polos governos das principais economias do euro, França e Alemanha.

Facto número 2: Alasca: Recentemente o Senado EUA rejeitou começar as prospecções petroleiras na grande reserva natural de Alasca. O voto republicano foi fundamental para esta surpreendente decisão. Decidir não utilizar o próprio petróleo significa que há mais aí fora, mais barato de conseguir. Iraque é um desses lugares.

Facto número 3: As “razões de Estado” de Aznar. De todo o discurso e contradiscurso entre o governo espanhol e a oposição política (especificamente o PSOE), a mim pessoalmente surpreenderam-me dous factos: a) Em mais duma ocasião (uma vez Aznar, outra vez Arenas), o governo interpelou cripticamente ao Partido Socialista sobre a sua oposição à guerra dizendo-lhes: “Se vocês estivessem no poder estariam fazendo o mesmo que nós”. Não houvo réplica nem tentativa de esclarecimento por parte do PSOE. Isto é destacável na medida em que a linha entre governos defensores e opositores desta guerra não segue linhas partidistas “esquerda/direita”. Porque deveria a “esquerda” do PSOE ter a mesma postura do que a “direita” do PP se aquele estivesse no poder? Deve haver poderosas razões que desconhecemos. b) O secretário geral do PP de Galiza, Palmou, numa entrevista na Cadena SER o domingo 23 disse que “Deve haver razões de estado” que Aznar sabe e nós não. O mistério sobre estas afirmações de destacados membros do PP, e do silêncio do PSOE, esvoaça sobre a operação de extermínio em Iraque.

Facto número 4: O Sara Ocidental, o grande ausente. Surpreende também o silêncio do governo espanhol, e especificamente da carteira de Exteriores, sobre o problema do Sara Ocidental. Em Março 31 deve adoptar-se uma (outra) resolução sobre a situação do Sara. E Espanha está temporariamente representada no Conselho de Segurança da ONU. James Baker, comissionado especial da ONU, e ex-secretário de Estado dos EUA, quem representa os interesses do governo (portanto, das oligarquias) desse país, pode estar mudando a sua posição anterior sobre a autodeterminação do Sara. Baker estava conectado também a interesses petroleiros. É possível que a administração EUA queira apoiar agora uma solução “intermédia” que conceda soberania talvez só à parte sul do Sara, enquanto a norte ficaria sob administração de Marrocos. Isto poderia não ser à partida aceitável para o Frente Polisário, mas ao parecer tampouco o Polisário estaria em condições de recomeçar a luta armada, e no Sul poderia formar-se um estado independente suficientemente auto-sustentável. Porque, que acontece nas zonas norte e sul do Sara Ocidental? No norte, estão os fosfatos. No sul (nas águas jurisdicionais correspondentes à não reconhecida República Árabe Sarauí Democrática) estão a fazer-se explorações petrolíferas por várias companhias, entre elas uma australiana (governo que apoia a guerra do Iraque). Os seus informes iniciais indicam que há petróleo comercializável. Também há uma concessão do governo marroquino de 2001 à companhia francesa TotalFinaElf e outra à estadunidense Kerr-McGee para a prospecção e comercialização do petróleo que se encontrasse. Mas expertos legais de vários países consultados pola União Europeia coincidem que um novo governo saído dum referendo no Sara não teria porque respeitar os acordos contraídos por Marrocos, ocupante ilegítimo do Sara Ocidental.

E como podem encaixar estes factos, então? Que se lhe perde à direita económica espanhola na guerra de Iraque? Um cenário possível é o seguinte:

1) O controlo ao acesso e aos preços do petróleo do Iraque por parte de petroleiras EUA daria-lhe às óleo-garquias estadounidense e à grande indústria pesada que depende dele (entre elas, a indústria do aço e portanto a armamentística) vantagens substanciais sobre as de outras zonas, nomeadamente Europa. São precisamente estes sectores os que não se podem reconverter facilmente a outras fontes energéticas. Por outra parte, esvaeceria-se o perigo da “eurização” do petróleo. O grande capital americano estaria em condições de repartir as reservas petroleiras ora no seu próprio benefício (sem ter que explorar as próprias), ora para países industrializados selectos (Espanha, por exemplo), ora para países em subdesenvolvimento onde se precisa a criação de capacidade aquisitiva para criar mercado. Durante muitas décadas a vir, as oligarquias EUA e algumas ocidentais estariam em condições ainda mais claras de decidir o destino económico de grande parte do planeta. O acesso ao petróleo do Iraque favoreceria à “economia” espanhola (quer dizer, ao capital), frente à francesa e alemã, maiores competidores para os EUA do que Espanha. Significativamente, os governos de “países menores” europeus apoiam os EUA.

2) Claramente, a administração EUA não precisa do governo de Aznar nem do PP para os propósitos imperialistas do capital. Mas a aliança com “Espanha” ajudou-lhe ao governo EUA a criar o cisma com os governos francês e alemão. Que mais obtém “Espanha” em troco disto?: A defesa dos “seus” interesses económicos no Sara Ocidental. E a situação especial que se dá agora, e não há alguns anos, é que Espanha está no Conselho de Segurança da ONU, uma circunstância que entre alguns sectores independentistas sarauís é vista como uma “grande oportunidade” para “Espanha pagar a sua dívida histórica”. Portanto, o cisma entre França e EUA/Espanha a respeito de Iraque estaria em paralelo com o seu cisma a respeito do Sara (França continua a apoiar a actual anexação por Marrocos, e um regime de “autonomia” para o Sara).

O petróleo seria a principal e quase única fonte económica do novo estado sarauí, suficiente para o seu desenvolvimento. Um novo estado saraui poderia rescindir os acordos de exploração petroleira às companhias francesas e conceder-lhe-las a petroleiras americanas. Uma recente informação da BBC de 4 Março 2003 afirma que “Agora as reservas de petróleo do país tornaram-se já um factor nesta luta quando as companhias petroleiras estadunidenses, francesas e australianas começam a informar dos seus primeiros achados”. E, significativamente, outra informação da BBC tomada de Le Quotidian d’Oran de 8 Fev. 2003 diz que: “É de destacar que os espanhóis se alinharam sem reservas com Washington relativamente ao assunto de Iraque. Portanto, os americanos poderiam pedir-lhe a Madrid que fosse menos ‘rígido’ no tema do Sara Ocidental, com a promessa de que os seus interesses serão tidos em conta“. Que significam estas expressões?: “Ser menos rígido” significa aceitar e promover na ONU o plano de Baker sobre a independência da parte Sul do Sara. “Ter em conta os interesses de Madrid” significa que “Espanha” levaria uma parte do pastel dos recursos energéticos do novo Sara. “Os interesses” também pode significar a pesca. Por enquanto é “França” a que perderia com tudo isto, e, em menor medida, “Alemanha” (quem também tem um projecto de exploração de energia eólica em toda a costa ocidental de Marrocos e o Sara).

Em resumo: O governo espanhol e José María Aznar obteriam do seu apoio à administração EUA na invasão de Iraque, além doutras cousas que nem sabemos: 1) Acesso a petróleo iraquiano, sem dúvida. 2) Prestígio internacional pola sua defesa, desde o Conselho de Segurança da ONU, duma solução intermédia para os sarauís promovida por Baker-EUA, alinhando-se de novo com os EUA mas sem romper os vínculos com Marrocos (que conservaria o norte do Sara). E 3) Mantimento dos “interesses de Espanha” (os das petroleiras espanholas também?) no novo foco geo-estratégico mundial da África Ocidental. Tudo isto significa que qualquer governo espanhol (PP ou PSOE), por pressões do grande capital e por defesa destes “interesses”, provavelmente teria agido igual a respeito da guerra do Iraque, como a misteriosa mensagem de Aznar sugere: “Vocês os socialistas fariam o mesmo se estivessem no poder”.

E não sou analista político, nem economista, e tudo isto, claro, é bastante especulativo. A situação é mais complexa. A resolução da ONU deste 31 de Março pode pospor-se mais uma vez. O tempo dirá, quando o tema do Sara Ocidental saia de novo à luz pública, e quando se veja se o governo resultante da imperial conquista do Iraque retorna ao dólar para vender o seu petróleo.

(Algumas fontes: http://groups.yahoo.com/group/Sahara-Update/message/1082
http://groups.yahoo.com/group/Sahara-Update/message/1063
http//www.rebelion.org/imperio/040303clark.pdf)

O PNLG: Um desenho fechado à partida

Publicado em Tempos Novos • Em Vieiros

O PNLG parte da Língua Nacional Espanhola para manter a variedade regional “galego” em níveis mínimos como recurso simbólico e político. Na relação entre custos e possíveis benefícios, o PNLG -claramente tecnocrático- apropria sem pudor o gasto termo “normalización”, enquanto foca o sociolinguístico em termos administrativos, segmentando-o em âmbitos das Conselharias. Não é possível intervir com a crítica num desenho tão fechado à partida. A única alternativa é a definitiva naturalização social da língua portuguesa na Galiza, que é a nossa numa variedade totalmente legítima. A naturalização consiste na produtividade real da língua na vida social até ao ponto da desideologização explícita. Umas necessárias novas elites sociais deveriam abordar na intervenção linguística (sempre um projecto reformista de classe) três grandes questões: (1) Reversão decidida da maciça perda intergeracional do idioma, (2) enraizamento social da consciência da unidade linguística galego-portuguesa-brasileira, e (3) galego falado e portanto português escrito correctos como veículo dominante dos médios e do ensino, para as elites reproduzirem a miragem da igualdade democrática a meio da Língua. Esse é o desenho duma Língua Nacional. A meta (1) requer fortes incentivos e redes sociais jovens. A (2), Propaganda e troca cultural. A (3), dinheiro, docentes e (sub)produtos escritos. O consenso com o campo hegemónico nestes pontos é inviável: o único sensato é procurar uma nova hegemonia por vias políticas.

Carta de chapapote a Manuel Fraga Iribarne

Publicado no Portal Galego da Língua • Em Renovação núm. 14 • Em Areanegra

Sr. Manuel Fraga Iribarne:

Sou súbdito seu. Estivem prestes a lhe enviar um pedaço de chapapote dentro dum envelope, anónimo, obviamente. Direi-lhe porquê anónimo: Primeiro, o Sr. nunca receberia o chapapote, interceptado polos seus serviços. Segundo, o Sr. poderia actuar até judicialmente contra mim, ou os serviços do estado, que é o seu, poderiam se encarregar de registar ainda mais um dado nos extensos arquivos negros, como o piche, que o Sr. se encarrega de manter. O Sr. tem uma longa trajectória no controlo do Estado. Afinal, decidim não enviar-lhe o chapapote, mas escrever-lhe esta carta, que nunca lerá.

O Chapapote, Sr. Fraga Iribarne, é um símbolo da sua trajectória, da sua vida, do negrume dos seus muitos actos contra a História. Afinal, reiteram nestes dias os marinheiros, o mar sempre devolve o que não é dele. A História é como o mar: também devolve o que não lhe pertence. Hoje o Chapapote é o lixo histórico com que você, Sr. Fraga Iribarne, foi poluindo este país e também Espanha. O Chapapote é signo da insolência da sua casta. Não será preciso que lhe lembre, nem que lembre à pouca gente que leia isto, em que consiste esta insolência. Fraga Iribarne é o seu duplo apelido: é o que sempre o definiu, o do lacaio do Estado que se banhou desafiando o resíduo nuclear e instaurando a Propaganda como método. O Chapapote é o símbolo do seu nepotismo cacical, com o qual infectou o campo da Galiza prometendo esmolas enquanto desarticulava conscientemente o tecido produtivo. Com o Chapapote compra você a mente dos sul-americanos de origem galega, os mesmos que são comprados polo Chapapote doutros governantes. O Chapapote representa a sua arrogância ao desprezar durante décadas as palavras da gente. Sobre o Chapapote foi construída a sua casa e será erigida a vindeira cidade faraónica que levará o seu duplo apelido, e com o Chapapote rasgou você, Sr. Fraga Iribarne, uma falaciosa trama de autoestradas para os rápidos automóveis que se nutrem do Chapapote universal. Para você um voto valeu sempre um metro de monstruoso Chapapote dissimulado em alcatrão de vila a vila para cortar o país, sim, como aquela famosa navalhada à terra que se denunciava no outro franquismo. Os velhos, como eu (já levo quarenta e quatro anos de domínio sob os seus e sob os que são como os seus) lembramos tão bem como você essa profecia cumprida dos perigosos radicais dos 70, quando você, tentando inutilmente ser o cadáver de Franco, se negava até ao ridículo regime autonómico que sofremos. O sangue que saiu dos operários bascos que matou a sua palavra era de Chapapote. De Chapapote está feito o selo de lacre da bíblica Constitución Española que rege as suas noites e os seus dias de faisães. Sr. Fraga Iribarne: você inaugura dia a dia o Chapapote em todos os lugares da Galiza. O barco que se afundou, cevado de Chapapote do capital, é o símbolo do seu féretro político.

Mas não pense você, Fraga Iribarne, que o acuso pessoalmente de nada, nem sequer de nadar no Chapapote dos seus actos: Você é tão insignificante para o projecto ignominioso do Capital como eu o sou para o seu combate. Você passará às letras enciclopédicas do Chapapote como um simples lacaio da anti-história, esse processo de morte que sempre foi contra os humanos. Nem sequer é você um oligarca, Fraga Iribarne: é um ser irreal mantido polo exército da miséria sobre um esqueleto de Chapapote. Nem pudo nunca você emular a nitidez estética dos grandes ditadores, dos verdadeiros oligarcas. Os actos mais importantes da sua vida, pense-o bem, foram um jogo de dominó e uma frase totalmente atrapalhada. Tente você pensar que grande estadista passou à história por construir estradas de chapapote, torres telefónicas e albergues rurais. É você um fantasma de si próprio que nem merece a demissão como escusa. E a História, que tem muita força, saberá deixar-lhe continuar o seu rumo de manipulações, roubos e mentiras, o seu triste périplo pola terra, até que passe tempo e o seu corpo se afunde, como se afundará o meu, que felizmente vou, com muita outra gente, num barco diferente.

Não procure outras causas, não finja outras explicações para os seus actos, Fraga Iribarne: Você sabe o quê são as forças materiais da História, esse desejo e essa vontade de total igualdade que contém a mente humana. E você sabe também qual é o braço armado da miséria, o que quer matar a mente da humanidade, e elegeu sempre posicionar-se aí, contra o mundo, do lado do roubo e a lobotomia como métodos. Todos os do seu grupo de classe elegeram o mesmo, e muitos fantasmas políticos doutros grupos também. A sua classe é a simples e triste gerente do Chapapote do mundo, mas você sabe que o verdadeiro centro está alhures, nas enormes fábricas de morte de Ocidente, nos intestinos metálicos do monstro onde a sua classe cacique nem seria recebida. Poderá você sonhar às vezes com imortalizar a sua efígie nalgum dos corredores subterrâneos onde novas promoções dos legionários do euro pudessem admirá-la, mas na verdade essas galerias só estão ladeadas por transparentes urnas onde se adoram mísseis, fardos de heroína afegã e turvos instrumentos de tortura sexual, como tudo o que nos causa dor. Nas entranhas do monstro urde-se o contrabando universal da miséria. Esse é o Projecto, e esse foi sempre o seu projecto, Fraga Iribarne: o roubo da matéria, do trabalho, dos corpos e das mentes como método. Porque esse foi sempre o único projecto do Capital, que existe e não mudou desde as origens. E para esse ingente e odioso plano você será esquecido, como eu o serei e o será este texto. Você, Fraga Iribarne, é apenas uma molesta incidência.

Portanto, durma tranquilo, e sobretudo para dormir melhor não deixe de pensar que toda a gente está errada, e que você é Importante. Porque a resposta é fácil, Fraga Iribarne: A História (que não verá você nem verá a minha geração) tem uma força enorme e é capaz de criar monstros de Chapapote como símbolos para que ressuscite a consciência. E cada mente do planeta que cultive dentro o mapa da utopia será uma prova do seu fracasso, Fraga Iribarne, do irrisório fracasso da sua classe.

Atenciosamente, sempre desejando-lhe que respire:

Celso Alvarez Cáccamo

Dizer o intocável

Enviado a A Nosa Terra, não publicado • Publicado no Portal Galego da Língua

As catástrofes e crises colectivas oferecem-nos, infelizmente, muitos motivos para reflectirmos sobre a linguagem. Levo um mês observando e registrando o discurso público sobre a agressão económica e política a este país causada polo desastre do Prestige, sobretudo nos médios de comunicação, e o que observo confirma-me nas teses de Pierre Bourdieu sobre o carácter construtor e dominador do Discurso. Muitas das minhas observações, suponho, são de senso comum, e nem se comentam por óbvias: por exemplo, a coerente insolência desses locutores legítimos da televisão espanhola a pronunciarem em espanhol os topónimos “Muksía”, “Lákse” ou, como não, “La Korúña”. Aqui o exercício de apropriação simbólica não pode ser mais evidente: “Muxía” e “Laxe” são palavras espanholas, pois pertencem a uma das “lenguas españolas” consagradas na sua Constitución. A pronúncia dos “x” por esse locutor é a correcta, as outras são dialectais.

Mais ricos em significados são os contrastes simbólicos e sociais entre o português de muitos marinheiros e o espanhol dos locutores da TVG, variante regional do espanhol da TVE. Bourdieu destaca que a legitimação duma nova língua de autoridade não consiste apenas na sua regularização formal, mas, sobretudo, na geração de novos discursos com novos vocabulários e novos universos conceptuais para representar o mundo social. A Língua Espanhola que se está a normalizar na Galiza sob duas variedades formais gera o discurso democrático da Modernidade, do Estado, da Eficácia, do Voluntariado, da Responsabilidade Cívica. Em programas de televisão sobre o desastre do Prestige mostra-se nos intervalos propaganda oficial sobre a segurança no trabalho no mar: barcos limpos, grandes e totalmente equipados. A voz que nos fala, em espanhol ou galego-espanhol, é um acento grave e masculino, regular, profundo, sério e (como não), ceceante como España. Os discursos de ministros, jornalistas e científicos baralham cifras sobre ajudas macroeconómicas, cifras sobre graus de toxicidade e viscosidade do “fuel-óleo”, sobre profundidades submarinas. Por contra, o discurso galego-português de marinheiros e mariscadoras fala em termos quotidianos dos ganapães, os trueiros, as redes de almofadas caseiras, o Monstro do chapapote, a necessidade de comer ou emigrar. Eufemismo e materialismo associam-se assim correlativamente com duas cosmovisões de classe intrinsecamente antagónicas, com duas linguagens e duas línguas irreconciliáveis no espaço deste Estado, em definitivo com dous projectos sociais em conflito.

Contudo, os protocolos da tolerância ocidental permitem um certo grau de crítica a esse próprio Discurso que tenta tornar a agressão económica e social sistemática em imponderável “natural”, como no caso dos temporais que estragam vilas mal condicionadas, como no caso das epidemias de vacas loucas causadas pola cobiça económica, como no caso dos terramotos vinculados a monstruosas barragens antiecológicas. As fendas que permite o Discurso são cousas como a utilização pública da acusação de “MENTIREIROS”, a própria petição de “demissão” (que, não paradoxalmente, legitima os governantes como os nossos governantes), ou os jogos de palavras com “bigote” (sic) e “chapapote”, como se o que caracterizasse o totalitarismo fosse o pêlo facial. A personalização das culpas da catástrofe não ajuda para a compreensão das suas causas e para o seu combate. Sabemos também, por exemplo, da rápida apropriação por parte da oligarquia política do lema Nunca Mais. Tentam esvaziá-lo de conteúdo, como com toda a imaginação popular, e agora há que lutar para destinar-lhe novos sentidos, ligar esse Nunca Mais a outro projecto social e económico desafiante e potencialmente emancipador. O Poder sabe bem o quê são e como são as armas do Discurso.

Mas as grandes palavras ausentes de toda esta confrontação social são a palavra rei, a palavra monarquia, o nome próprio Juan Carlos de Bourbon. Eis o imenso tabu que nos sobrevoa como uma imensa maré negra discursiva, obturando os coídos da consciência. Avonda com cartografar brevemente a colonial conduta do rei de España (e, quando escrevo estas linhas, do seu filho) contra as suas palavras na sua visita a Muksía: Manchou de piche os seus sapatos pagos também por nós, para fazer-se a foto enquanto criticava os que se faziam a foto. Veu como representante dum Estado que é na realidade miserável, um longo fracasso histórico que desde há décadas os governantes espanhóis tentam paliar em Europa. Mas no quadrículo do televisor a imagem era outra: o Estado engrandece-se polo zoom preciso dos jornalistas lacaios do Discurso focando o rosto real afectado por tanto sofrimento nos seus domínios. Logo, a cena televisiva elegida para ré-legitimar um chefe de estado colonial é, de novo, a do cidadão ou cidadã “popular” que louva o Rei e o venera nataliciamente como se fosse o quarto Melchior ou Gaspar. O Chefe do Estado espanhol desceu ex-machina, como no teatro clássico espanhol, para citar-nos Fuenteovejuna, uma referência tão remota para nós (polo menos para mim) como os Ananda Randa ou o mito do Tempo dos Sonhos dos aborígenes australianos. Porque na realidade a mensagem real não ia dirigida a nós: ia dirigida a España, para que, desde abaixo, desde o “pueblo”, desde “los pueblos de España”, chegassem procissões de voluntários e caixas de turrão a demonstrarem a inutilidade do pouco autogoverno da Galiza que ainda se gere desde aqui.

Não lamento intrinsecamente a debilitação desse pedaço de Estado, dessa Xunta desaparecida nas fauces do chapapote espanhol. Só tento destacar que as práticas de auto-organização que contemplamos, como defesa material, estão também ligadas a uma linguagem, uns discursos e uma língua que contêm o potencial da revolta, paralela a este Estado, e portanto contra dele. E que o Intocável, o Inominável, portanto, o adversário histórico desse espírito de revolta, deveria ser já também nomeado e tocado por essas linguagens. Por exemplo: o Reino de España, como não podia ser doutro jeito, “falhou-nos” de novo porque nunca foi concebido para não nos “falhar”. A Juan Carlos de Bourbon, responsável constitucional máximo para as boas e para as más, por essa dignidade que declara ter a realeza deveria dar-lhe vergonha ser Chefe desse Estado.

Por princípio, não posso nem sequer ser republicano, defender qualquer forma de estado. Mas devo constatar que a resistência actual contra o chapapote –símbolo e produto da lei capitalista– é uma forma de república. Quando lhe comentei a um conhecido intelectual independentista na manifestação contra Aznar na Corunha que a consigna deveria ser Juan Carlos, Abdicação, não só Políticos, Demissão, ele tentou desactivar: “Claro que estou de acordo, mas essa não é a questão agora”. Não, o regime monárquico nunca é a Questão. O Discurso fagocita também as elites intelectuais, já o vemos. Mas lembrem os nacionalistas galegos que nunca poderá haver soberania sob um regime e com um Chefe de Todos os Exércitos que, por lealdade constitucional, poderia enviar o mesmo exército que agora está a escarvar nas praias para matar marinheiros independentistas se ao Reino lhe fosse necessário. Isto é constitucionalmente assim de claro, não nos enganemos. Ou é que alguém ainda pensa que a forma do Estado moderno pode ser neutral? O Intocável é agora o rei e a monarquia, uma forma de estado que é essencialmente antidemocrática porque glorifica o privilégio do sangue masculino de família e porque consagra a propriedade privada do Reino e as suas colónias, incluindo as nossas costas infectadas. Digamo-lo, a ver quem escuta, e sobretudo a ver se se entende, para que os partidos que dizem “defender-nos” não defendam em lugar disso os privilégios do autoritarismo monárquico: Nunca Mais. Nunca Mais monarquia capitalista na Galiza. Em nenhuma parte. Sempre preferirei o idealismo das palavras deste tipo a esse “realismo pragmático” dos políticos que, dia a dia, não deixa de ser uma derrota.

A nação das mulheres

Enviado a Faro de Vigo; não publicado

A todas as mulheres assassinadas. Com a minha culpa como homem.
Com desculpas polo meu atrevimento e pola dureza deste escrito

O caçador diminuiu a marcha e detivo o camião poucos metros mais atrás. Sabia que uma fêmea assim, separada da manada, não se devia deixar escapar facilmente. A Lei era clara neste sentido: Qualquer exemplar solto, sem marcar, é propriedade de quem o capture. As fêmeas assustam-se facilmente com o ruído dos motores. Nessa hora da manhã o resto da manada abrevava ou estava ainda por acordar. O caçador desceu do camião e prendeu habilmente a fêmea sem que esta pudesse fazer nada. Botou-na na caixa do camião, amarrou-lhe as patas, fechou as portas rapidamente para apagar os ruídos de queixa da presa. A Lei é explícita neste sentido: O gando sem marcar será propriedade de quem o capture. Às vezes é mais produtivo revender a fêmea ao seu antigo proprietário. As negociações polo preço podem durar meses. Alguns homens caçam a sós, outros ocasionalmente em grupo, quando voltam irmanados dos lugares de encontro e topam com uma fêmea isolada na curva de uma estrada. Baixam do veículo e rodeiam-na, sobem-na, mantêm-na tranquila com suaves vozes aprendidas secularmente para apaziguar animais enquanto se dirigem a um lugar escuro. Outras vezes, o caçador sofre tanto de soidade que precisa utilizar a fêmea sem revendê-la. A noite é demasiado longa num veículo ou alpendre isolado. O caçador tem direito a utilizar o que é seu. Logo do uso sacrifica a fêmea e bota-a ilegalmente entre arbustos. O caçador volta polo alvor à casa. Quando tem sorte, aguarda por ele uma esposa de olhos abertos com um café de amor nas mãos. Quando não, diante do caçador há só um televisor ligado que transmite incessantemente feiras de gando numerado, fortes e formosas fêmeas para o comércio mundial. A Lei é boa e justa para os homens que a votam, a Lei é clara: Os meios públicos devem promover a Economia, o Culto, a Ordem. A Lei é coerente.

Até à hora do sol-pôr o caçador come produtos democráticos enquanto contempla as mostras numeradas das feiras. Vê passar muitas fêmeas fortes e formosas polo ecrã. O caçador súa de soidade. Nas pausas comerciais onde se oferecem mais fêmeas, o caçador dá brilho às suas armas: o laço da palavra, o rifle masculino. Ao cair a noite o caçador está de novo preparado. Fecha a sua cabana. Ou sai despedindo-se levemente de uma esposa de amor sem pentear. O caçador prende o camião, e marcha. Mas hoje está confuso. Leva tantos anos a admirar tantos exemplares numerados fortes e formosos que está confuso. Primeiro precisa percorrer a sós estradas solitárias, e pensar. Pensar, pensar. A Lei é boa, a Lei é clara: Toda fêmea que não tem marca é de quem a caçar. Mas o trabalho não é fácil. Ninguém compreende a imensa tristeza dos caçadores solitários. Por algo a maioria dos homens preferem ser proprietários. De quando em vez um proprietário sacrifica uma fêmea que já não era produtiva, ou que fugira por um injusto instinto, desagradecida de tantos anos de ser alimentada e protegida. Mas as fêmeas fugidas polos arrabaldes sempre deixam um rasto de cheiro que o proprietário reconhece e segue. Afinal, o proprietário alcança a fêmea e sacrifica-a com gasolina para que deixe de fazê-lo sofrer com a sua ausência. O caçador pensa que tal desperdício de fêmeas é injusto. O caçador pensa tudo isto enquanto sulca a planície da estrada, o corredor ladeado por um desfile de fêmeas fortes e formosas para a caça. Já é noite fecha.

A última vez o caçador também botou o cadáver da presa à beira-rua. Ocultou-na entre as sebes, deixou que as alimárias aproveitassem o seu corpo. O caçador está preocupado, a Lei é explícita neste sentido: O cuidado do meio-ambiente é imperativo para a Economia. O abandono de cadáveres utilizados está fortemente castigado. O caçador observa uma Patrulha da Moral Ecológica mais adiante. Os patrulheiros fazem sinais com luzes. O caçador diminui a velocidade. Passa devagar junto a eles. O caçador e os patrulheiros saúdam-se, fitam-se serenos nos olhos. É evidente que os três homens são honrados trabalhadores da Economia. As suas olhadas são limpas. Cada um tem a sua função na manutenção da Ordem. Quando uma fêmea marcada escapa e acaba refugiando-se por cansaço nos Locais da Patrulha Ecológica, os patrulheiros devolvem-na ao seu proprietário. É natural. A Lei é explícita neste sentido: A propriedade privada deve estar sempre vigiada. Então os patrulheiros acompanham a fêmea à casa do proprietário. O proprietário abre-lhes a porta, recolhe agradecido a sua pertença, assina algum Recebim necessário. No televisor do fundo vê-se a Mostra Mundial de Gando. Os patrulheiros e o proprietário trocam cúmplices olhadas perante tanto exemplar forte e formoso. A fêmea recuperada lambe docilmente a mão do proprietário. O caçador pensa tudo isto, pensa, pensa. O caçador sabe que os patrulheiros, os proprietários e ele mesmo trabalham por uma única Ordem, polo mesmo Culto e a mesma Economia. Às vezes o caçador quisera ser proprietário. Às vezes um proprietário também se faz caçador, por não perder uma tradição ou por cansaço da rotina. Às vezes um proprietário aluga as suas fêmeas a caçadores ou a outros proprietários. A Lei e a Economia favorecem esta mobilidade social entre os homens, é necessária. A Ordem é precisa, justa, exacta.

A nação das mulheres é um território imenso que não conhece siglas, nem fronteiras, nem bandeiras, nem dinheiro. É a maior nação do mundo, colonizada, sequestrada, invadida, escravizada, mutilada e assassinada diariamente num inenarrável circo de sangue de tal crueldade que fixo a deus suicidar-se há muito tempo. Cada dia os caçadores matam todos os cérebros do mundo, toda a humanidade, e cada dia a vesânia volta a ressuscitar numa notícia de rádio. Eu sei isto porque sou varão e como tal também levo dentro uma indesejada arma de ódio, e também tenho poder, e dia a dia combato contra um cancro na minha mente que me ordena matar a mente da humanidade, matar a nação das mulheres. E estou convencido que eu também, de maneiras diversas, contra a minha própria vontade, dia a dia contribuo para matar essa imensa nação enquanto luto por deixar de matá-la.

Mas a nação das mulheres erguerá-se contra a loucura e contra o ódio. Pouco a pouco, com a firmeza da razão humana, com a justeza da razão humana, e contra a resistência dos varões, dos estados masculinos e dos escravistas da carne, a nação das mulheres imporá a utopia da igualdade, que é o lugar onde nasceu e aonde deve chegar a humanidade. E cairão os ídolos e desaparecerão os caçadores e as presas, e os proprietários, e aqueles homens monstruosos e miseráveis vagarão sem armas num horrível desterro polos caminhos da mente que agora ainda cheiram a sangue e gasolina e não deixam dormir.

A nação das mulheres não é apenas um nome sonoro para descrever o mundo: é o nome da assembleia humana que leva milénios em jogo. Maldigo a história enquanto aguardo esperançado a que se erga dia a dia a voz universal da igualdade, o reconhecimento definitivo de tanta humilhação e crime, a compensação final por este longo genocídio.