Da Nación à nació, e tiro porque me toca

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O discurso referido consiste em reproduzir literal ou indirectamente palavras emitidas ou escritas por outra pessoa ou pessoas. Nalguns dos seus tipos, a citação é introduzida com um dos verbos de dição, ou verba dicendi, do tipo dizer, comentar, perguntar, etc. A fórmula pactada entre o PSOE e CiU para o preâmbulo do novo estatuto catalão é um destes casos de discurso referido:

“El Parlamento de Cataluña, recogiendo el sentimiento y la voluntad de los ciudadanos, ha definido de manera ampliamente mayoritaria a Cataluña como nación. Esta realidad nacional tiene su traducción en el artículo 2 de la Constitución Española, que define a Cataluña como nacionalidad”.

A formulação contrasta com a aprovada polo parlamento catalão na proposta de Estatut, que incluía as expressões “La nació catalana…” e “Catalunya es una nació”. Vale a pena comentar brevemente as implicações e significados da nova fórmula pactada. Por que esta citação dos actos linguísticos do parlamento catalão?

O novo estatuto catalão deve ser aprovado agora polas Cortes espanholas, quer dizer, por “España”, não polo próprio sujeito catalão que redigira a primeira proposta. O acordo PSOE-CiU significa que “España”, como conjunto da cidadania do Estado, não se compromete com a auto-definição de Catalunha (conjunto da cidadania catalã) como nação. “España” só pode definir-se a si própria, como “Nación”, com maiúsculas (preâmbulo e artigo 2 da Constitución), e, como entidade indivisível, pode também definir os territórios que a compõem, como “nacionalidades y regiones” (dum ponto de vista social e histórico) ou “comunidades autónomas” (dum ponto de vista administrativo e jurídico). “España” sim que pode, porém, fazer constar (declarar) como se define uma parte da sua cidadania. Eis o sentido discursivo do acordo entre as partes.

Com efeito, a atribuição da definição de Catalunha como nação ao seu parlamento, não às cortes do reino, situa-se no polo “descrição” da dicotomia “descrição / definição”, como argumentou o governo espanhol. Por outras palavras: o preâmbulo descreve uma definição nacional. Reparemos que descreve também esta auto-definição de Catalunha como “real”, na expressão “Esta realidad nacional”.

Mas, o que acontece, por sua parte, com a caracterização nacional de “España” na Constitución Española? Talvez surpreenda saber que o vocábulo “Nación” só aparece duas vezes, e que o adjectivo “nacional” aparece apenas 5 vezes em 169 artigos: nas expressões “soberanía nacional” (art. 1.2, soberania que recai no “Pueblo Español”), “territorio nacional” (art. 19), “Patrimonio Nacional” (art. 132.3), “interés nacional” (art. 144) e “política económica nacional” (art. 148.13). Por sua parte, o adjectivo “estatal” aparece 13 vezes. Evidentemente, todos os usos de “nacionalidad” se referem ao estatuto jurídico dos cidadãos espanhóis, e “internacional” às relações entre o Estado Espanhol e outros estados. Por outras palavras: na Constitución Española, “nacional” parece ser sinónimo de “estatal”. A força jurídica de ser “Nación” deriva das competências auto-atribuídas ao Estado, não da palavra em si, nem na auto-definição.

Quanto ao jogo discursivo “descrição / definição” da “Nación Española”, também o preâmbulo da Constitución é descritivo, e também é um exemplo de discurso referido. O Título Preliminar começa, imediatamente antes do preâmbulo:

“DON JUAN CARLOS I, REY DE ESPAÑA,
A todos los que la presente vieren y entendieren, sabed:
Que las Cortes han aprobado y el Pueblo Español ratificado la siguiente Constitución.”

Quer dizer, o chefe do estado constata e faz saber que o parlamento e senado espanhóis aprovaram que “La Nación Española, deseando establecer la justicia, la libertad y la seguridad…”. Como no caso do Estatut, é o parlamento correspondente que define o país como uma nação, e o “povo” que o ratifica. A Constitución descreve estes factos.

Pragmaticamente (e argumentativamente) o procedimento para definir “España” como uma nação na Constitución é o que se chama uma pressuposição existencial: não se afirma que “España es una nación”, mas pressupõe-se (dá-se por certo) este facto “real” a meio do artigo definido “La”, que abre o que se chama uma expressão referencial definida. Quer dizer, “La Nación Española” faz-se existir no mundo real polo simples facto de mencioná-la como uma entidade singular identificável e distinta de outras. Da mesma maneira, na proposta inicial de Estatut, “Catalunya” faz-se existir como nação polo sua menção na expressão “La nació catalana…”. Este procedimento eliminado, de facto, era mais forte argumentativamente do que a definição ‘X é Z’ (‘Catalunya es una nació’), pois uma aseveração pode ser questionada explicitamente como verdadeira ou falsa. Finalmente, uma diferença entre Constitución e Estatut é que, no acordo PSOE-CiU, há uma exenção de responsabilidade, por parte de “España”, da definição da “realidad nacional” de Catalunha, tenha esta auto-definição a força veritativa que tiver (seja “verdadeira” ou “falsa”) e a força jurídica que eventualmente poderá ter.

Em conclusão, se o acordo PSOE-CiU prosperar, a diferença entre Estatut e Constitución não residirá na questão da descrição/definição nos respectivos preâmbulos, como às vezes se argumenta. Sim que o vocábulo “nació” desaparece do articulado, o qual parece coerente com a identificação “nación=estado” que se dá na Constitución, visto que, segundo a fórmula pactada, a única identificação possível do vocábulo catalão “nació” é o vocábulo espanhol “nacionalidad”. Contra o que declarou Zapatero, não parece, portanto, que esta “España” possa chegar a ser juridicamente uma “nación de naciones”, em espanhol, mas só uma “Nación de nacions/nacións/nazioak/etc.”, em todas as “lenguas españolas”: um Estado Nacional composto de “nacionalidades”. Cada cidadão poderá dizê-lo livremente na sua língua, mas a semântica política dominante é a da língua espanhola.

Em termos discursivos, o acordo PSOE-CiU sobre esta questão é uma solução inteligente. E em termos políticos, parlamentares e de propaganda pública (permito-me opinar), ainda mais: representa uma derrota do nominalismo efectista (aquele que só aspira a um “reconhecimento” abstracto da “realidade nacional” na língua doutrem), um reforçamento da forma unitária do estado monárquico (que impede a autodeterminação), e uma tentativa de caneio total a ERC. Nunca se deve infraestimar a inteligência de parte do nacionalismo espanhol. Talvez no novo Estatuto galego se pudesse obter a mesma fórmula fantasmal (e os três partidos parlamentares tão contentes, que o jogo continua), se não for porque não está comprovado que o PP seja inteligente. Como outras vezes, talvez a compensação da previsível derrota do PP no parlamento de “España” seja a sua vitória na Galiza, impedindo o acordo. Se for assim, neste jogo da oca, “Galicia” não chegará a ser ambiguamente “nación” (que, além, não se sabe se está em galego ou em espanhol), embora todos saibamos que em Panlíngua Trescientos Millones “a nación galega” só deveria ser sinónimo de “una nacionalidad administrativa de la España indivisible”. Mas é que, por não acatar, o PP nem acata a peculiar língua espanhola.

Hospital do Reino

Cheira a hospital. Nos arrabaldes da Espanha cheira a hospital sujo, barato, de corredores onde sobrevivem durante décadas os mesmos eivados. A luz dos hospitais de urgências é sempre cansa, mais amarela, incapaz de chegar até ao final do percorrido. As ruas da Espanha são os corredores deste hospital barato: vencidos prédios provisórios onde ardem de frio os refugiados. No último dia do ano cheira a esse formol usado dos hospitais de campanha, que são sempre os desta guerra. E os cirurgiãos percorrem rápido os corredores a amputarem velhas mãos que já não trabalham, a alimentarem com elas os distantes cemitérios, sempre distantes da terra onde nascera o corpo. Os uniformes dos cirurgiãos e os dos soldados, e os dos capatazes, e os dos catedráticos, e os dos financeiros, e os dos generais, são todos iguais sob a luz negra da pobreza. E os uniformes correm entre as salas de urgência deste hospital que é um reino em sombras. A luz da Espanha é um mito. Os eivados e idosos aguardam nas beirarruas da metrópole, e os soldados baixam das ambulâncias e amputam as mãos e a língua, como então, como sempre, como sempre que existe um antigo hospital de campanha que é um estado em ruínas. E os cirurgiãos botam os restos amputados no calabouço ou no fundo das usinas, dia e noite, noite sem dia nos camarotes de urgência. E os velhos pervagam polas ruas do hospital com a esmola de poucas moedas enrugadas, em irregulares batas sem lavar, e as mães solitárias prematuramente mirradas rebuscam no lixo urbano restos de órgãos para comerem na última noite do ano, como se acabasse o mundo entre as bombas que continuam a cair. Cheira a hospital em guerra, e é difícil afastar esta tenra náusea constante da consciência. De olhos estranhamente abertos polo sono, nos corredores deste hospital que é a Espanha procuramos com ânsia sempre os corpos familiares, os eivados nossos, a quem levarmos da mão fria respirando a sua pele que cheira a leite azedo até a uma tumba designada para deixarmos lugar a mais doentes, a mais velhos eivados, com uma miserável moeda do reino na algibeira da lenta bata sem lavar. E cada ano recomeça o ciclo, cada ano refornecem-se cárceres e obscuras usinas e hospitais do reino, tanta carne, tanta devoração oculta por proclamas. Cheira infinitamente a Espanha, a matadouro.

A rapidez do Discurso

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Em 48 horas, a Guardia Civil espanhola deteve dez membros da Assembleia da Mocidade Independentista vulnerando locais sociais de base, os detidos e detidas foram acusados de figuras estranhas, os jornais publicaram nomes e fotografias, as rádios arejaram análises e entrevistas, os políticos fizeram declarações das quais não se arrependerão, a web da AMI foi sequestrada pola Guardia Civil, outras foram obstaculizadas (como fechar o microfone a um orador; como faz a Radio Martí dos EUA interferindo as emissoras cubanas), a Internet e os correios electrónicos encheram-se de notícias, comunicados e protestos, houve concentrações, cartazes, panfletos, os dez detidos foram libertados provisoriamente, as rádios anunciaram-no sucintamente, e hoje é Quarta-Feira e continuam as nuvens. A rapidez do Discurso, que é também acção, ultrapassa a medida humana do tempo necessário para reflectir sobre os significados. Campanha político-policial-mediática, cortina de fumo diante do processo 18/98 do juiz Garzón, criminalização do nacionalismo, interferência nos processos de reforma estatutária, criação de fissuras no crescente soberanismo galego, em definitivo alti-baixos emocionais nesta versão distorcida da Política a que o Reino e ocidente nos têm habituados. Táctica deliberada, improvisação ou erro, já ninguém o sabe. Há tempo que o determinismo histórico morreu. Mas os factos e os efeitos estão aí, e não deveriam minimizar-se nem, muito menos, ridiculizar-se. Seria tentação qualificar a “Operación Castiñeira”, com Ñ espanhol, de absurdo fiasco. Se assim fizermos, estaríamos absorvendo (mais uma vez) o discurso hegemónico sobre a necessária Seriedade das forças da ordem: Olha aí, a polícia espanhola nem deter sabe, e são os salvadores juízes os que por fim situam as cousas no seu ponto, pois não há tais indícios de “terrorismo”, que alívio. Até Nós-UP se congratula da libertação dos detidos, como se esta libertação indicasse liberdade. Calculo que ré-encontrar companheiros é sempre gratificante, mas Madrid não é o único exílio. Esta ré-legitimação do sistema judicial espanhol pode ser calculada, pode não sê-lo. Em todo o caso, a arbitrariedade no disciplinamento foi sempre uma das características políticas do fascismo. Literalmente, do fascismo. Com Franco nunca se sabia quem podia ser detido ou não, nem por quê. Guantánamo não é apenas um reino remoto, mas uma ordem mental. O meu telemóvel pode estar em lista negra ou intervido, e eu sei por que facto trivial. O teu também. Não me preocupo grandemente, mas não estou habituado a dar as chaves das minhas gavetas a um estranho de uniforme. A imunidade do corpo, que é a nossa mente, onde reside a gloriosa Liberdade de Expressão, é já assunto do passado. E nós, a vê-las vir, porque os números eleitorais já nos cegam a necessária lucidez visionária. Sim, visionária (espero pacientemente os insultos), porque, chegados a este nível de cegueira, sermos visionários consiste simplesmente em vermos exactamente o que existe: uns empregados do Estado com passa-montanhas irrompem na sagrada propriedade privada a roubarem papéis, computadores e dinheiro. Levam dez pessoas para Madrid sem o seu consentimento. Acusam-nas de fazer cousas, em linguagens que os detidos talvez nem compreendam: a noção de “delito” remete para uma ordem total compartilhada, e assumir a noção pressupõe inscrever-se voluntariamente nessa ordem. Não se pode exigir que a mente do Reino entre na mente da AMI, é excessivo. Até os ultraliberais sabem intimamente isto, embora amiúde ajam como polícias. O que se pode exigir, sim, é que a arma do polícia não me mate, porque eu não pedi ingresso nesta guerra, neste tipo de guerra. Nem que a bomba de gasolina estoure no teu nariz, porque tu não pediste entrar neste tipo de guerra. Claro que somos também culpados, mas este tipo de guerra não se merece. Mas, que fazer, se o terror é semeado ocultamente, polos bispos, contra uma infância forçosa em cárceres educativos teocráticos. Que fazer se o terror adquire mais tarde a máscara de uma bomba de fósforo branco que monstruosamente abrasou corpos, de outra bomba que felizmente não cortou a carne, ou de um sequestro legal na manhã cinzenta de Compostela. Tudo é o mesmo terror, senhores polícias: não foram as vítimas quem inventaram as bombas. O Modelo foi criado por vós, e ainda vos funciona. Parabéns, tristes parabéns: bem sabedes que isto não é só um telefilme. Por isso, desde a distância do Discurso, eu creio compreender o que é um ataque físico de terror, deixar de respirar, e intuo que Maria A. nunca o perdoará. Porque ainda resta futuro, e exércitos de vários lados quererão forjar mais cicatrizes para medalhas. E a gente continuará a sofrer um excesso de abnegados funcionários da bala, heróis, salvapátrias. Saber isto não ajuda a compreender-nos politicamente, mas é quase o único que podemos constatar. Em toda lógica, daí à soberania da mente deveria restar pouco. Mas, alguém confia nesta frase?

Monarquia e racismo

Publicado em Novas da Galiza 36 (15 Nov. – 15 Dez. 2005), p. 15

Como pode uma pessoa chamar-se socialista ou simplesmente progressista e defender ou simplesmente aceitar a monarquia? Como pode alguém justificar com critérios democráticos que a máxima representação e poder de um Estado descansem sobre alguém que os obtém ou herda em virtude dos genes, da família, da classe social e do sexo? Digam os democratas, progressistas, socialistas e até comunistas todos que ainda há medo, sim, medo de falar, medo do exército (por exemplo), e compreenderei a sua posição. Mas não se justifiquem alegando que “o povo” apoia a aberração monárquica, porque, segundo isto, o “apoio do povo” também estaria por detrás do regime de Franco, do nazismo, de tantas aberrações como a clitorictomia, a amputação das mãos, a pena de morte, o escravismo, a invasão de Afeganistão, o massacre das Torres Gémeas, a lapidação das adúlteras e o encarceramento de homossexuais. E o próprio capitalismo.

A realidade é que a monarquia espanhola actual se sustenta em princípios literalmente racistas que não deveriam ter lugar em nenhuma sociedade chamada democrática. Quando a ciência genética quer destacar a essencial igualdade dos seres humanos, quando categorias como “raça” vão caindo nas fundas gavetas da história, numerosos territórios do mundo, entre eles a frágil amálgama chamada “Reino de España”, ainda conservam formas de estado intrinsecamente racistas, quer dizer, fundamentadas na diferença genética. Porque o racismo não consiste só na discriminação por razão das características morfológicas das pessoas: o racismo consiste na classificação social da gente por critérios genéticos. Como o sexismo, o racismo não é uma ideologia só discriminatória, mas é em primeiro lugar classificatória. Porém, a declinante categoria de “raça” é apenas o trivial resultado da concentração relativa de um conjunto de traços fisionómicos activados por vulgares genes que se transmitem na copulação. Porquê este ordinário acaso pôde chegar a ter algum papel na organização hierárquica da humanidade moderna, é algo que só surpreendidos historiadores da utopia futura poderão abordar.

A racialização das pessoas não é uniforme nas diversas sociedades. Nos EUA, por exemplo, é “negro” quem possui algo de “sangue” de escravos africanos, pois, em geral, os descendentes da união entre “brancos” européus e escravas africanas (o caso mais frequente, fruto de relações impostas ou de violações) ficavam com o grupo de escravos e eram socialmente “negros”. Consequência disto é a quase total correlação actual entre etnia afro-americana e classe baixa nos EUA. Em contraste, na Espanha colonizadora de América existia uma classificação escalar das “raças” em função das percentagens específicas de “sangue”: havia negros (com ambos progenitores “negros”), mulatos (um “negro”, outro “branco”), cuarterones (só um dos quatro avôs “negro”), indios, mestizos, etc. No regime nazista, por sua parte, demonstrava-se oficialmente “raça ária” com ter só os oito primeiros apelidos de origem germana. Parece que foi assim decidido por Hitler mesmo porque o seu noveno apelido era judeu. No nazismo, o “sangue judeu” limitava direitos ou condenava à morte, e o “sangue ário” concedia privilégios. E assim por diante.

Com efeito, nos sistemas políticos racistas, como o do “Reino de España”, a distribuição de “sangue” e genes limita direitos ou concede privilégios aos cidadãos: o racismo está inscrito na própria Constitución que impôs a monarquia. O facto é que a Coroa, quer dizer, a chefatura vitalícia do Estado e todos os poderes e privilégios que esta acarreta, se herda em virtude dos genes, e portanto a Monarquia vulnera frontalmente o princípio da igualdade perante a lei. O possível herdeiro (ou, já agora, a possível herdeira) deve ter “sangue” da gínea Borbón/Bourbon em Espanha, que, num dado momento, se fundiu, via Louis XIV Dieudonné de France, com genes da meia-irmã de Carlos II “el Hechizado” María Teresa de España, da rama Habsburg ou Áustria, descendente portanto de Philipp I von Habsburg “el Hermoso” e de Juana I de Aragón “la Loca”. Juan Carlos de Borbón, Felipe de Borbón e Leonor de Borbón y Ortiz são, portanto, descendentes directos dos Reyes Católicos, do Imperador Maximiliano I de Áustria e de Henri IV de Bourbon, entre outros. Vamos, como um sapateiro da Rua Real da Corunha ou uma limpadora da Rua Príncipe de Vigo.

Sabemos que na história dos Borbón e dos Habsburg houve grande endogamia, por mor de garantir o controlo dos domínios e a unidade do grupo genético que poderia herdá-los. Que na gínea Borbón actual haja mistura de genes e apelidos não empece a base racista da monarquia espanhola: É a presença de “sangue” Borbón que valida o privilégio (não “direito”!) à herança da Chefatura vitalícia do Estado, enquanto a presença de outro “sangue” (Ortiz, por exemplo) não invalida este privilégio.

Agora assistimos a uma ré-legitimação deste sistema anti-democrático por parte da partitocracia espanhola. Argumenta-se amiúde que a Monarquia deve continuar porque “o povo” assim o quer. Porém, na minha humilde opinião e experiência, o que a gente quer é simplesmente independência. O que quer é a auto-determinação e independência verdadeira, a da mente, a liberdade de união e desunião em todos os níveis sem figuras perenes de autoridade, a libertação do material, a liberdade de escolher representação se fizer falta, de auto-organização, de exercer formas de relação laboral sem exploração, a emancipação dessa prisão que é a desigualdade diária. A emancipação que no meu velho e estranho vocabulário é sinónimo de auto-gestão livre e colectiva.

E uma cousa parece certa: com Monarquia, emanada dum princípio discriminatório fundacional, nunca haverá tal independência da gente. Sem ela, já se verá. Mas é uma irresponsabilidade, até do independentismo galego, pensar que a forma de estado de “España” não deve ser uma prioridade política porque é assunto de outro “povo”. Isto seria não compreender a natureza da dominação política na Galiza. A Coroa garante constitucionalmente a unidade de “España”. Essa é a sua função primordial. E o exército é o seu braço armado. A pretensa “concessão” feita ao regime monárquico pola partitocracia espanhola há agora 30 anos já chegou longe demais. Sob o regime monárquico espanhol, um processo soberanista galego não tem qualquer hipótese de sucesso. Infelizmente, penso que só sem monarquia em “España” se poderiam abrir as portas à soberania dos súbditos (falo em tecidos sociais reais, não em “essências” étnicas também geneticistas) que agora constituem o que se chama a Galiza. Desde qualquer concepção da liberdade, interrogar publicamente e com intensidade o regime monárquico espanhol deveria ser uma prioridade.

Trinta anos e um dia

Publicado em Vieiros

O 30 de Outubro de 1975, Juan Carlos de Borbón y Borbón assumia interinamente a chefatura do Estado Espanhol durante a doença artificialmente prorrogada de Francisco Franco, e sem o conhecimento deste. Juan Carlos já nunca abandonaria o cargo de monarca no Conselho de Administração. Trinta anos e um dia depois, como uma longa sentença democrática, o avô da empresa familiar e portanto de todos os espanhóis Juan Carlos, neto à sua vez do avô de todos os espanhóis Francisco, vê consumada a sua longa jogada dinástica de pai-filho-nai (“tres en raya”, para os estrangeiros) com o nascimento da filha do seu filho. Desejo-lhe longa vida à meninha, que não tem culpa de nada. Bastante condena é nascer rainha.

O jornalismo rosa deve estar frenético. Quero dizer EL PAÍS, El Mundo, La Razón, La Voz de Galicia. Quero dizer a SER, a COPE, essa emissora pirata dos bispos. Quero dizer, portanto, o aparelho propagandístico da Monarquia. Não se lhe deve negar a este monopólio bicéfalo a sua genuína perícia nas artes da propaganda, isto é: discurso desenhado para deixar de pensar. Por algo praticamente todos os jerarcas da informação são herdeiros da Falange e do antigo Ministerio de Información y Turismo do deputado Iribarne. No jornalismo rosa, o privilégio de reinar converte-se agora no “direito à sucessão”. A “igualdade de género” passa por cima da desigualdade de ADN, de classe, de família. O Reino de Astúrias converte-se no piar de uma España (Rouco Varela e Francisco Vázquez dixerunt) incombustível, eterna, pré-romana, pré-histórica, atapuerquense, pré-jurássica. España nasceu providencialmente no centro do universo para criar o cristianismo.

Parabéns, visitas, telefonemas, telegramas. Enxames de curiosos que fazem vela, como há trinta anos perante um cadáver, para adorar o fruto do ventre de España, Leonor. Ouro, incenso, mirra para a primogénita nascida numa humilde clínica do bairro de Salamanca. Arcanjo Anunciador do Portal transfigurado em águia imperial do logótipo da Clínica Ruber. A reforma constitucional é o Novo Testamento da España eterna, católica, sentimental. O Triângulo de Deus (Pai-Filha-Mãe) completa agora a sua geometria. No centro do triângulo, pisca o olho panóptico da câmara web que tudo o contempla, que a todos nos contempla, sempre suspeitos de blasfémia, heresia ou injúria, que é a mesma figura de traição. Porque, se o deus é infalível, o monarca é inviolável, e a bandeira espanhola de Paco Vázquez na Corunha, indestrutível.

Trinta anos e um dia é uma longa condena para milhões de pessoas. Há quem nasceu e morreu durante esta sentença. A Constitución monárquica de España garantia-lhe direito à vivenda, mas morreu numa choupana. Garantia-lhe liberdade de residência, mas ele morreu emigrado, exilado político. Garantia-lhe trabalho, mas morreu de sobredose. Quando se pinchava na veia esse último caballo adulterado, sobrevoava Gredos o helicóptero Cougart de Deus como uma pomba bicolor. Pilotavam-na Bono e Trillo: bicolor.

E a partitocracia espanhola está disposta a prorrogar-nos a condena trinta anos mais. Será porque muitos ainda não nos arrependemos. Será porque dentro da prisão não há correcção possível. Como na guerra, a fuga maciça é uma obrigação moral.

Triunfam Ouros: A jogada mestra de ser ‘nació’

Enviado a Vieiros; não publicado

A única cousa sensata do discurso extraterrestre que está a proferir certa Caverna espanhola a respeito do novo Estatuto de Autonomia para Catalunha é a seguinte: que este “segundo golpe de Estado” perpetrado por PSOE-ERC contra a “Nación española” (o primeiro seria o de 1934) tem o apoio do rei. Com efeito, numa comemoração qualquer na Academia Militar de Saragossa, Juan Carlos de Borbón lembrou ao exército a “indivisível unidade” da “nación” espanhola e o seu próprio papel como servidor desta unidade. Bem, lógico, só são palavras. Mas, é que há desnecessário ruído de sabres ou está a Monarquia a dizer que Espanha vai bem? Porque qualquer leitura racional da proposta de novo Estatuto catalão leva, precisamente, nesta segunda direcção Real: Catalunha define-se como uma nação dentro do Estado espanhol. É mais: O Artigo 3 define explicitamente a submissão de Catalunha à soberania do Estado espanhol:

“ARTICLE 3. MARC POLÍTIC. 1. Les relacions de la Generalitat amb l’Estat es fonamenten en el principi de la lleialtat institucional mútua i es regeixen pel principi general segons el qual la Generalitat és Estat, pel principi d’autonomia, pel principi de plurinacionalitat de l’Estat i pel principi de bilateralitat, sense excloure l’ús de mecanismes de participació multilateral.”

Por sua parte, a Constitución espanhola faz recair a soberania ambiguamente ora na “nación española” (Preámbulo) ou no “pueblo español” (Título Preliminar, Artigo 2: “La soberanía nacional reside en el pueblo español, del que emanan los poderes del Estado”). Mas reparemos que os preâmbulos são declarações de intenções para contentar uns e outros, e o substancial é o articulado. No articulado, “pueblo español” é sinónimo de “ciudadanía española”, sem mais estórias.

Eu suponho que qualquer leitura não essencialista dos vocábulos “nación”, “nació”, “pueblo español”, “poble català”, “pobles de l’Estat” e outros relacionados nos dous textos deveria levar os juristas racionais à conclusão de que o novo Estatuto catalão não pode vulnerar a constituição espanhola, por duas razões. Primeiro, o Estatut só pode definir o âmbito e o sujeito da soberania catalã. Não poderia ser de outra maneira, polo seu próprio rango inferior à constituição de Espanha. Segundo, quando se refere à definição do Estado no Preàmbul, o Estatut expressa uma posição subjectiva de “Catalunha”, não um facto de lei: “Cinquè. Catalunya considera que Espanya és un Estat plurinacional”. Podemos perguntar-nos se tal peculiar expressão tem lugar num texto jurídico, mas dificilmente se pode argumentar que a expressão de um juízo não vinculante por parte de um colectivo seja anti-constitucional. Será, em todo o caso, anti-estatutário, por não poder ter qualquer efeito jurídico.

Destas premisas de submissão de Catalunha ao Estado como parte dele, o resto do articulado do Estatut detalha os direitos e deveres dos cidadãos de Catalunha, quer dizer (e com total transparência), dos espanhóis (cidadãos do Estado espanhol, com independência da sua origem) residentes em Catalunha: “ARTICLE 7.1. Gaudeixen de la condició política de catalans els ciutadans de l’Estat que tenen veïnatge administratiu a Catalunya. Llurs drets polítics s’exerceixen d’acord amb aquest Estatut i les lleis”. Isto quer dizer que não há qualquer contradição entre ser catalão e ser espanhol: ser catalão, é, de novo, uma forma contingente de ser espanhol. Decerto, o “povo catalão”, que poderia entender-se como um sujeito étnico, não civil, aparece cá e lá no novo Estatuto, mas não se lhe atribui qualquer papel especial (por exemplo, no exercício da soberania) além de ter preservado costumes, tradições e direitos próprios durante séculos.

Em resumo, como a Generalidade é estado espanhol, e exerce dentro do território de Catalunha em função da prioridade da legislação própria, a proposta não difere muito da antiga “administração única” do deputado Manuel Fraga Iribarne, excepto na retórica nacionalitária. Até a “prioridade” dada ao direito e à legislação de Catalunha sobre os gerais do Estado é vazia. Porque, ao estar submetida Catalunha à legislação geral do Estado, também qualquer díscola normativa catalã é e será susceptível de anticonstitucionalidade e, portanto, de nulidade jurídica.

Portanto, a definição de “nació” para Catalunha é (como talvez chegue a ser no caso galego) um nominalismo acadado como efectiva cortina de fumo para desviar o assunto fundamental do Estatut: a renúncia de facto ao direito de auto-determinação e de secessão. Decerto, Catalunha não renuncia aos seus “direitos históricos” (Disposició Addicional Primera do Estatuto). Mas a eventual actualização destes direitos fica subordinada à Disposición Adicional Primera da Constitución, que impõe o quadro da própria Constitución como limite para estes direitos. E a Constitución monárquica impede a secessão. Só após uma reforma da Constitución poderia Catalunha reclamar legitimamente a independência. Em resumo: Que melhor cenário para a direita espanholista que desenhou o regime monárquico como tampa para a secessão do que uma “nació” que, podendo reclamar a independência, renuncia à soberania para continuar fiel à Coroa?

Claro que, sabemos todos, o assunto de fundo não é a Nación nem a Nació nem a Nação, mas a pela, os quartinhos dos grandes dominadores. No Estatut, o complemento de um detalhado articulado em defesa de todo tipo de direitos dos espanhóis catalães a que nenhum verdadeiro liberal se poderia opor é, por uma parte, a definição do papel do governo catalão, claramente intervencionista em todos estes aspectos como suposto garante destes direitos. Vamos, nada novo: exactamente como o papel molhado da Constitución Española e de outras constituições liberais. Mas o verdadeiro contraponto é o articulado final relativo ao financiamento e aos tributos, onde “Catalunha” reclama o lógico direito liberal de contribuir para o Estado geral em função da sua população, do seu “esforço fiscal” e outros critérios, mas sem comprometer a sua posição económica. Com outras palavras: se sobrarem quartos, a empresa “Catalunha” será “solidária” com as outras companhias do Estado, mas o “nivelamento” não poderá rebaixar em nenhum caso a posição relativa de “Catalunha” no ranking das rendas per cápita do Estado (Artigo 210.d). Com efeito, por quê deveria sob o capitalismo uma “nação” muito produtiva do Estado pagar ou manter outras empresas-nação que produzem menos? De novo, “Catalunha” não poderia ser uma empresa mais liberal: para cada pessoa, uma série de direitos, um voto, um pedacinho de imposto, e que não no-los roubem outros. E os benefícios colectivos, para dentro (isto é, para os proprietários da “Nació”). Nem mais, nem menos. É isto o que assusta a improdutiva Caverna espanhola que quer continuar a chuchar fundos de todos roubados polo Capital sob a escusa da “solidariedade” e o “nivelamento”. O resto são farrapos de gaita.

Quanto a “Galicia”, talvez vá por um caminho semelhante: ser nación para continuar a ser empresa de España. Jogada mestra nesta longa baralhada: voltará a triunfar o Rei de Ouros e de Sabres. Os liberais do PSOE e do BNG estarão contentes. E os independentistas socialistas deverão repensar a que jogam ainda dentro deste partido. Romper o baralho real deveria ser o prioritário.

Fazer um monstro ou matar o pai

O sangue dos Reyes Católicos circulará polas veias do meninho ou meninha de Letizia Ortiz. A criança não terá a culpa, mas os seus pais, e avôs, e bisavôs de sangue real sim que a terão de fazer dela ou dele um monstro. A menos que o lance já esteja planificado e Felipe de Borbón y Grecia, quando reine (se reinar), ponha o seu privilégio real a referendo popular com a esperança de perdê-lo, essa criança que será filha dele sofrerá uma educação destinada a fazer dela um ser especial, um enviado divino que deverá reger a Pátria até contra a sua própria vontade, se é que chega a ter consciência dela. Como os Grã-Lama. Como os imperadores chineses. Como os pobres meninhos semideuses de rabo de porco que nascem nas aldeias da Índia e são venerados em lugar de operados facilmente. Como todos os párias que não têm eleição.

E esta criança não terá mente. Não poderá ter mente própria. Nascida na casta mais poderosa de Espanha (um só será chamado, e um só será o elegido), o seu universo de ideias será único, auto-contido, fechado como os dogmas das seitas, inexpugnável à interrogação e à rica crítica de um mesmo. Será Alteza, e depois Majestade, nunca pessoa. Essa criança será refém de uma história caduca, que continua a remexer-se contra a corrente da igualdade: da igualdade genética, social, da essencial igualdade dos corpos e das mentes. Essa criança sem culpa que será educada só para reinar não merece um destino tão ruim, tão mesquinho. Só a persistência de poderosas forças económicas, contra as quais o combate é cada vez mais necessário, explica que numa sociedade que se diz moderna os genes determinem a tortura de crescer para ter que reinar.

Mas muita gente do Reino, mesmo milhões, desejarão exactamente isto. Na mais pura tradição do sadismo popular, onde se criam touros também “de raça” para o extermínio ou capões para a asfíxia por sobreingestão, parte do Pueblo Español considerará lógico, lícito e necessário que uma criança sem culpa seja criada no cárcere da coroa, para passar subitamente de Filho a Pai de todos. E o Povo, a contemplar com delírio o espectáculo.

Nunca imaginei que o sentimento de ausência de Pai desde a morte de um antigo deus cristão por tortura numa cruz chegasse tão longe como para glorificar o estigma de nascer para reinar. Inconfessada, eterna orfandade de um suposto “povo espanhol” sem projecto, de uma fragmentada família de interesses apenas fragilmente alinhavada pola figura de um singular senhor ou senhora com coroa. No patriarcal ocidente, quando um pai morre, a família desfaz-se. Por isso há que mantê-lo vivo eternamente.

Mas não sei se alguém lembra ainda a frutuosa expressão “matar o pai”. É metafórica, mas, para um ser mais livre, funciona.

Escutem os políticos, se quiserem. E chamem-me, claro, ingénuo ou insolente.


Monarquia e independência

Publicado em Vieiros

Já começou a ofensiva. Asseguro que não pensava publicar um artigo assim, embora algo semelhante já estivesse escrito. Mas hoje publica um jornal porta-voz de España um retrato feliz de Felipe de Borbón y Grecia, que não li. Em poucos meses nascerá um meninho ou meninha com apelidos de Borbón y Ortiz. Em 2008 o seu avô, Juan Carlos de Borbón y Borbón, cumprirá 70 anos, e terá reinado 33 sobre esta terra, como Cristo. No mesmo ano, Felipe cumprirá 40. Momento perfeito para uma bem planificada abdicação de Juan Carlos. Ou algum tempo depois. Afinal, Juan Carlos de Borbón não é um político vocacional (não sei bem qual é a sua profissão, mas esse é motivo doutro artigo). E España prepara a sucessão com boa antelação.

Com a abdicação no seu filho, Juan Carlos de Borbón resolverá o contencioso que puder haver ainda nalgumas mentes malpensantes sobre a sua legitimidade. Nomeado por um ditador, Juan Carlos de Borbón passou por cima da linha sucessória, jurou as Leyes Fundamentales e os Principios del Movimiento franquista, mas, segundo tenho entendido, ele nunca jurou a Constitución Española, posterior à sua designação (rogo correcção se estou errado). Muitos democratas esquecem isso: que a Constitución foi feita para os espanhóis prometerem fidelidade ao Rey, não viceversa.

Por se isto fosse pouco, a reforma da Constitución Española projecta recolher por primeira vez explicitamente os nomes das comunidades autónomas. Conta-me o teorista do estado Xavier Vilhar Trilho que só em algumas constituições de España se recolhiam os territórios que ela ocupa… perdão, “compreende”. Há uma certa indefinição a este respeito, porque com a Constitución actual na mão poderia entender-se que uma declaração de independência (unilateral, claro, como devem ser sempre as independências) poderia encontrar uma base num vazio legal existente. A Constitución é a de España, sim, mas nem se diz exactamente o que é “España”. Certo, a presença do aparelho do Estado Español em territórios como o galego ou o basco poderia interpretar-se de facto como prova de que a Galiza ou Euskadi são “España”. Mas, dependendo, também poderia interpretar-se juridicamente como que não. Com uma Constitución que o explicite, porém, não haverá maneira de dizer que a Galiza não é “Galicia”, nem que “Galicia” não é “España”. O nacionalismo galego no Parlamento Español deveria rechaçar também este aspecto da reforma constitucional.

E, porfim, o segundo gambito da reforma da Constitución é, como sabemos, conceder também o “direito” da chefatura do estado a uma mulher se esta fosse a filha de Felipe de Borbón. Um, dous, três: o jogo do pai-filho-nai está completo.

Na minha opinião, a monarquia é o maior obstáculo político actual para a independência da gente e das gentes. O obstáculo não é tanto “España”, não, que como absurdo estado mental é até maleável: o obstáculo é o regime monárquico. Dentro do independentismo galego, acho que a visão dominante é que a monarquia é problema “dos espanhóis”. Pois não: estamos sujeitos ao seu regime jurídico, inescapável se não é pola força, quer dizer, inescapável.

Resulta-me absolutamente extraterreste constatar com frequência como até entre pretensos progressistas a questão do regime monárquico é ignorada. Quando faço surgir o tema, os democratas caem então em confusas redes argumentais para justificarem que, embora este rei nunca fora eleito, já está legitimado pola sua trajectória, e a monarquia é uma questiúncula. Eu pensava que democracia significava escolher. Mas os democratas dizem que o povo já escolheu votando em favor da Constitución. Eu pensava que escolher significava isso: escolher, polo menos entre duas opções. Mas em 1978 só havia uma: ou o Rey, ou nada. E a gente tinha, e ainda tem, muito medo.

A questão da chefatura vitalícia de uma pessoa, para qualquer democrata, deveria ser crucial, não marginal. A chefatura vitalícia do Estado, a inviolabilidade da sua pessoa (“La persona del Rey es inviolable y no está sujeta a responsabilidad”, art. 56.3 da Constitución Española), o seu controle dos exércitos, e outros privilégios reais, vêm determinados polo sangue, num século que nominalmente inaugura a igualdade genética como motivo da ciência, do pensamento, da ideologia, da política. Ninguém nega que um meio “moro” ou uma meia “mora” com bilhete de identidade espanhol possa chegar a reinar em España no século XXII. Mas essa pessoa deve ter polo menos sangue Borbón, isto é, Habsburgo, isto é, que deve ser descendente directo dos Reyes Católicos e do Imperador Maximiliano I de Áustria, pai de Philipp I von Habsburg que casou com Juana, filha de Isabel e Fernando. O Chefe do Estado deve ser alguém com privilégios por nascimento. Desde a Idade Média, España foi posse directa de monarcas herdada por virtude do sangue, da família, da classe e, na altura, também do sexo. E por isso o sangue misturou-se tanto com o sangue: Isabel II de Borbón y Borbón, por exemplo, era simultaneamente neta, bisneta, sobrinha-neta, sobrinha-bisneta e outros parentescos de Carlos IV, e o seu marido Francisco de Asís María de Borbón y Borbón também. Isabel e Francisco eram cônjuges, primos por partida dupla, e primos segundos por partida dupla. O sangue, os genes, a base do supremacismo.

Além dos lios de família, a herança genética da chefatura do Estado ou de qualquer outro posto de poder e representação é simplesmente incompatível com qualquer concepção democrática racional. É esse princípio supremacista que tem regido a apropriação de “España” por parte do lobby monárquico. Até alguns independentistas sabem que uma “España” republicana era (pretendia ser) outra cousa. Mas numa “España” monárquica singelamente não cabe a soberania da gente: nem a de galegos, nem a de navarros. A função da monarquia espanhola é sobretudo manter a unidade territorial, quer dizer, política e económica. E a sua Constitución unitária, que consagra o capitalismo, impede qualquer outra forma de relação laboral nos seus domínios que não seja o império do mercado.

Por isso, se eu fosse activista independentista, não deixaria a monarquia tranquilinha como se fosse “assunto dos espanhóis”: acabar com essa forma de estado até nesse país “estrangeiro” que é España é prioritário.

Último texto sobre a Língua

Publicado no Portal Galego da Língua • Em Vieiros

Levo algum tempo procurando imaginar o meu último texto sobre a língua (não jogarei com o sentido do título: simplesmente, “derradeiro” não é eufónico). Espero que esta seja a oportunidade. Peço desculpas por referir-me a mim próprio, mas é do que ignoro menos.

Durante anos, escrevi muitas palavras sobre a língua, às vezes sem saber exactamente porquê. Suponho que era arrogância, e uma ânsia infantil. Estou ciente de que nem todas as palavras eram minhas: tudo está já dito, em diferentes ordens e com diversas ênfases. Agora é imperativo resumi-lo, e, para as pessoas que quiserem, agir em consequência. Não citarei nenhum autor ou autora, em parte por preguiça, em parte por não deixar de citar outras pessoas. Que cada um(a) se reconheça no que digo, ou não.

A ideia elementar é que a Língua é sempre uma questão de classe, e que, enquanto houver classes, haverá sempre alguma questione della lingua. Que não se saiba isto é terrível sintoma da descerebralização maciça. E que outras intelectualidades noutros países não abordem a questão é responsabilidade delas. Mas, na Galiza, país existente e para muitas pessoas nação desejada, a responsabilidade das elites chegou longe demais. Penso que repeti muitas vezes que não há tempo. Não resta tempo histórico, sobretudo quando as elites distorcem as prioridades, demitindo até do seu trabalho pago. Por isso só resta a maior coerência possível. Lembremos, então, o Processo e os resultados actuais.

Durante trinta anos, o chamado isolacionismo demonstrou o seu fracasso até para construir a sua miragem de língua independente na Galiza. Atribuir vontade deliberada a todo o sector seria excessivo. Mas o resultado é que a sua glorificação das falas e do (inexistente) poder linguístico do “Pobo” deu como produto um fantasma, e muito, muito discurso auto-alimentado.Para alguns dentro do sector, este era precisamente o objectivo: espanholizar definitivamente a Galiza. Quanto aos outros, ou “picaram” na trapaça ou preferiram não querer saber o que se avizinhava, porque os corpos vão envelhecendo, envelhecendo, e, nalguma altura do trajecto, um descobre que não deve desaparecer da cena sem fazer ou dizer algo pola Pátria. Aqui e alhures, o sacerdócio sempre uniu mais do que a religião.

Por sua parte, um sector do único movimento linguístico-cultural galego actual, o chamado reintegracionismo (o isolacionismo já não é movimento), continua a arvorar também a diferença linguística como salvação. É um grave erro, porque acredita que a consciência comum sobre cada Língua se forma sobre a base de um par de formas ou sons particulares. Esta posição ignora que a Língua, no capitalismo, é um instrumento necessariamente totalizador. Ou há Língua, ou não há. E na Galiza não resta tempo para que continue sem havê-la. Alguns reintegracionistas continuam a querer fazer língua, mas frequentemente a fazê-la mal. A diferença entre esta posição e a “normalidade” linguística é que na “normalidade” é a Língua que faz e constitui os falantes, e sobretudo os escreventes. Poderemos rebelar-nos e demonstrar com as nossas práticas cada idiossincrasia falante ou escrevente, sim, mas isto pouco adianta: a Língua, como Solução Final, é um dispositivo de categoria social, não individual.

Até aqui, a superfície da diagnose. Serão argumentos brutais, mas não são novos. A questão, a verdadeira questione della lingua, é o que terá a ver tudo isto com a emancipação da gente. Porque só se se reconhecer um inegável esforço de muitas pessoas durante tantos anos por pretender fazer Língua e Cultura, haverá que lhe procurar a este esforço um sentido, enquadrável dentro de um projecto soberanista mais amplo. E o sentido de muitas acções para (pretensamente) construir Língua simplesmente não existe. Muitas são iniciativas esporádicas, recorrentes, e desligadas de qualquer concepção emancipatória. São miragens de auto-satisfação: sacerdócio série B. A imposição (imposição, sim: a Língua é sempre uma imposição) da Língua portuguesa na Galiza só tem sentido se se conceber como sintoma de uma poderosa resistência. Por exemplo: é incompatível proclamar defender a língua submetida (na versão que for) de um país submetido e, simultaneamente, ser monárquico. Ou “democrata”. Ou liberal. Isto é tão incompatível como combater o desflorestamento mas não o genocídio. Porque, em ambos casos, há uma distorção das noções de emancipação e soberania. Mas já vemos que o Discurso hegemónico sabe tornar essa incompatibilidade em necessidade, tornar os assuntos culturais em prioritários e os materiais em acessórios.

Durante séculos, a Galiza foi, tem sido, e é uma formação social mantida na maior das pobrezas, ignorâncias e decrepitudes. Como consequência (ou como causa), esse “Povo” que tantos glorificam manifestou e manifesta alguns dos valores mais retrógrados imagináveis. Calculo que outros “Povos” também são assim, mas não faço parte deles, e não é o meu papel assassiná-los: tenho direito é primeiramente de assassinar o “meu” próprio “Povo”, como ele, por definição, me assassina a mim.

A Galiza é uma formação social real composta por redes de relação, leis e trocas materiais. E, na sua maioria, aceitou passivamente por ignorância o ditame da Ciência Filológica Galega sobre a existência da “lingua galega”, como os ignorantes fundamentalistas aceitam, por exemplo, a mentira deliberada do criacionismo divino. (Outros ignorantes aceitamos outros dogmas, sim). O “Povo” aceitou isto, talvez, não só por inseminação ideológica, mas por inferioridade social e cultural, e por infantilismo. Depois de séculos de verdadeira castração mental (não é metáfora), uma grande parte da “Galiza” chegou a acreditar que os povos realmente machos devem ter Língua Própria, e que qualquer cousa distinta seria derrota.

A única alternativa soberanista racional é dar volta a tudo isto. Se queremos “normalidade”, não se pode deixar a língua nas mãos do “Povo”, e muito menos nas mãos e computadores das “suas” elites (incluo-me, como parte do privilégio). Para elites, já temos os exércitos. Foi Pessoa que sentenciou essa aberração de “A minha pátria é a língua portuguesa”, não é? Substituamos “portuguesa” por “galega”, ou “galego-portuguesa”, e a aberração é comparável. O Povo e as elites são as duas faces da Pátria, e esse é o problema. Cada Pátria imposta preexiste e é eterna: uma inescapável mácula mental. Mas a Língua é um instrumento material totalitário e contingente: a sua forma não conta, o que conta é o seu poder. Então, para que inventar uma forma nova da Língua? Por isso, e por muito mais, o Povo galego, e igualmente as suas elites, estão deslegitimados pola história para fazerem nada deliberadamente com a língua: que a falem, que a escrevam e que a leiam em todo momento, que a naturalizem para sempre expulsando de vez o verme mental de España, sim. Mas que não a altarizem como essência da Pátria, ou continuaremos perdidos.

A alternativa à Pátria é a soberania da gente e da mente. E isso acarreta deixar a língua em paz, e submeter-se a ela para esvaziá-la de sentido. O racional é submeter-se à língua que tocar, seja esta a que for. Má sorte (ou boa, ou indiferente) que a língua que tocou na Galiza tem sons e letras absurdos e se chama portuguesa! Podemos trocar-lhe o nome e fazer o exercício de submissão mais deglutível ou risível (as empresas conhecem bem o efeito placebo de trocar-lhe o nome a um mesmo produto para vender mais). Mas isso pouco adianta se esquecermos o objectivo da soberania da mente. Libertar-nos do estigma da língua para começarmos a pensar é prioritário. Só assim poderemos compreender intimamente que qualquer forma de miséria humana, por exemplo, é muito mais importante do que a manobra infantil de querermos impor um acento ou uma terminação sobre um conjunto de símbolos.

Para mim, já tudo está dito. Ocasionalmente, poderei ainda sentir ânsia de querer escrever sobre os últimos acontecimentos patéticos relativos à língua do país. Nos próximos meses, e até anos, haverá actos, e declarações, e políticas encaminhadas a alimentar a cortina de fumo da língua: Afinal, os profissionais da propaganda têm o seu trabalho que cumprir. Haverá pseudo-polémicas sobre um incontinente e falacioso “Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega”. Haverá liortas, e exclusões, e vitimizações, e vitimismos, e cleptocratismo, e miragens, e declarações altissonantes, e louvanças, panegíricos, martirologias, grosserias, e até alguns argumentos racionais. Haverá flagrantes ataques de España contra a língua portuguesa da Galiza. Por haver, até continuará a haver duros ataques tácticos de galegos espanhóis contra a “lingua galega” que eles próprios inventaram: dirão, de novo, que se está a asfixiar a liberdade de usar o espanhol. E então todos os sacerdotes de todas as cores sairão às palestras jungidos em defesa da única língua para eles possível, da “Lingua Galega”, sem pisar-se mutuamente as túnicas. E será o fim da “polémica”. Periodicamente, haverá também conversões linguísticas: haverá quem vê por fim a outra Luz normativa, a outra forma da Força (sobretudo a luz ciciante da Força Verdadeira, que é a vermelha), e brandi-la-á por primeira vez com esperança nas suas mãos, na sua fala, nas suas terminações, nos seus escritos. Em resumo, continuará a haver mares de palavras sobre a língua na Galiza. No entanto, o “Povo” sem inteirar-se. E os visitantes extraterrestres (“estrangeiros”) continuarão a admirar-se ou a rir de tanta energia para nada.

Para nada? Bom, eu não sei (como poderia saber?) se de tudo isto algum dia sairá por fim o catalizador social que acabe de vez com a besta e nos permita pensar. Suponho que sem a soberania mental e real da gente, sem a independência, será impossível. Independência quer dizer que cada pessoa e a gente vai fazer o que queira, e se associar livremente com quem queira, e tentar manipular a única Língua como queira. Independência significa que, no momento que houver qualquer forma de exploração, submissão, opressão, dominação, de qualquer pessoa ou grupo sobre outros, não haverá independência. Só na independência e na soberania da mente poderíamos combater a Língua noutros termos, desde outras atalaias de razão e de acção. No entanto, o racional e modesto é reconhecermos todas as formas que está a tomar a derrota, abraçarmos definitivamente a esmagadora realidade da língua talvez mal chamada portuguesa com todas as suas letras, e das falas nossas com todos os seus sentidos, e por fim (quem quiser) dedicar-se a tentar compreender em verdade a existência da miséria, da guerra, da doença e do assassínio: a existência do Capital.

Talvez este texto tenha comentários e críticas. Se houver, agradeço-os de antemão. Mas, contra o meu costume habitual, e lamentando-o, desculpem-me se eu não responder: não há tempo.

Dia D da Vitória do Povo

Apenas 16 anos após a vitória eleitoral do PP na Galiza, o Povo Galego conseguiu botar definitivamente a opressão do poder. Com uma esmagadora vitória 38-37, o Povo Galego demonstrou o poder da democracia para fazer imperar a lei dos esfarrapados. Estou contente, porque é o que queria eu, e o meu voto também foi um Boto, e foi Nacional, e Útil. Eu votei em Anxo Quintana e Pablo González Mariñas.

Durante 16 anos (ou 24, se contarmos o primeiro governo de Gerardo Fernández Albor), o Povo Galego desenvolveu uma inteligente táctica de resistência para acadar o triunfo. Primeiro, deixámo-los ir ganhando pouco a pouco mais poder, mais votos e mais assentos no parlamento, para que confiassem. Deixámos que criassem poderosas redes clientelares que eram, na realidade, uma ilusão. Em muitas ocasiões, participámos destas redes como verdadeiros quinto-colunistas de bomba em peito. No Parlamento Nacional, a resistência foi subindo ou baixando ao chou para dar a falsa impressão de debilidade e desconcerto. Fingimos ter liortas personalistas internas, como eles, embora na realidade a nossa Ideologia sempre estivesse por cima destas mundanidades. O Povo Galego berrou muito várias vezes por crises horrorosas, e depois deu-lhe a maioria eleitoral outra vez ao PP para confundi-lo. E por fim, com a constância dos verdadeiros revolucionários, sem presas e sem pausas, há uns dias fizemos saltar a surpresa para acabar com um PP dividido, queimado pola sua política espanhola, gasto de tanto que lhe deixámos mandar. No dia D da Vitória, 19 de Junho de 2005, com as melhores roupas de Domingo, o Povo Galego baixou às furn-… quero dizer, às urnas, com as únicas armas da liberdade, para proclamar o “Câmbio”, que é muito mais sério que a mudança.

É o começo de uma nova era gloriosa. Sei que muito possivelmente não havia outra opção, mas é o começo de uma era. Gloriosa, como foi a Transición Española, quando todos cantavam “Habla, Pueblo, Habla”, e o Povo falou: falou na UCD, falou no PSOE do 23-F, de Roldán, Mariano Rubio, Vera, Barrionuevo. Falou no PP da FAES, do Iraque, dum falangista galego, de Zaplana. Falou no PSOE de Ibarra, de Bono, de Vázquez. Mas agora por fim haverá Câmbio. O espanholismo será substituído polo espanholismo. Por fim a gestão do benestar substituirá a gestão do benestar, e o malestar será desterrado por sempre para onde hoje está o malestar. O crescimento, o progresso e a modernização darão passo à modernização, ao progresso e ao crescimento. Em lugar de edifícios megalómanos, autoestradas e portos exteriores, haverá edifícios megalómanos, autoestradas e portos exteriores. Os velhos líderes serão substituídos por líderes novos, que se farão velhos, e estes serão substituídos por líderes novos, que se farão velhos. É uma mudança imparável, como a queda newtoniana de uma papeleta numa furn- digooo, uma urna. Porque na democracia todos valemos igual e o nosso voto vale igual. E por isso os partidos, sabiamente, decidiram não impugnar os votos irregulares que não valiam igual porque não mudariam o resultado eleitoral.

Estou contente. Sinceramente, estou contente. 16 anos tentando botar a mesma gente já cansava. Agora temos uma nova oportunidade, abre-se um novo ciclo. O Povo Galego, sábio como sempre, teimudo e constante, saberá aguardar a nova oportunidade, daqui em 16 ou 20 anos, para botar a direita do poder. Na máquina de movimento perpétuo que é a política parlamentar e eleitoral, a direita mais direita desaparece afundida no espectacular sol-pôr fisterrão que há dous mil anos contemplou Iunius Brutus com assombro, enquanto a direita do país faz-se direita mais direita, o centro faz-se direita, a esquerda faz-se centro, a extrema esquerda faz-se esquerda, e dos lugares escuros onde continua sem chegar o pão a fim de mês vai surgindo a esquerda mais esquerda que votará sempre NÃO ou não votará, a jovem ou desiludida extrema esquerda que não conta porque não tem um voto na frente e no bico um cantar. E de pouco a pouco, com as armas do voto no quente ventre da urna (por fim me saíu!), em 20 anos os descendentes dos revolucionários de hoje berrarão como hoje berrámos nós: HÁ QUE BOTÁ-LOS!, quero dizer: “HAY QUE ECHARLOS!”. Que, traduzido para a Lingua Galega do Porvir será “Caciques Go Home!”.

No entanto, a filha de Felipe de Borbón y Grecia herdará España. Mas isso hoje tanto tem: Já os botámos.