Não penses no NH

Na essencialização da luta jurídica e social sobre o sentido dum famoso pseudo-topónimo, La Coruña, esquece-se (intereseiramente?) o outro aspecto crucial da questão que nos deveria ocupar: Coruña ou Corunha? Ou Crunha? Ou Acrunha? O poliglóssico nominho debate-se assim entre duas fontes de conflito semiótico interno, ambos símbolos de Língua e Nação, ambos susceptíveis de serem ré-significados tacticamente: um artigo espanhol, La, frente a uma letra também espanhola, ñ. Ao priorizar um símbolo morfológico sobre outro gráfico, o Discurso (inerentemente espanhol) mascara eficazmente o significado do símbolo adversário. De maneira crucial, a questão do ñ nem é mencionada por reivindicadores galeguistas de todo tipo, como se tudo se reduzisse à imposição dum articulado topónimo espanhol sobre o direito essencial a existir dum articulado topónimo Agalego@, isto é, espanholizado.

A táctica é sem dúvida efectiva: A fórmula duplamente espanholizada A Coruña galvaniza a pretensa resistência dos agravados, todos (quer dizer: todos os Agalegos que se prezem@). Ninguém ousa abrir a boca para dizer que tanto monta monta tanto, porque o que subjaz ao império toponímico da Xunta é a concepção espanhola e espanholizada da língua portuguesa. Pretender dizer publicamente, então, que a questão não é A Coruña frente a La Coruña, mas Corunha frente a Crunha, significa situar-se fora do âmbito legítimo onde se coze a aparente Acontradição fundamental@: vazquismo versus galeguismo genuíno. Desde o galeguismo oficial e para-oficial, falar no assunto Corunha vs. Crunha pode interpretar-se como fazer filibusteirismo sociolinguístico, isto é: preterir a solução final que consagra o ñ galego frente a… frente ao ñ espanhol, claro, porque é sabido que se o ñ aparece numa palavra galega é um ñ galego, não espanhol.

Portanto, no debate entre La e A, o que está em jogo é o ñ. É precisamente para quebrar este jogo, para a necessária ruptura do quadro dominante, que devemos situar no debate social a questão crucial: Como vamos chamar definitivamente a segunda cidade da Galiza, Corunha ou Crunha? As condições para este são filibusteirismo estão dadas: A caixa de Pandora está (na verdade, leva anos) muito aberta. E os razoamentos para defender uma ou outra opção (que são, verdadeiramente, inconsequentes: outro tanto monta monta tanto) são tão transparentes que só um nacionalista espanhol poderia negá-los: que nos mapas internacionais da nossa língua o artigo não se emprega; e que os mapas internacionais da toponímia da nossa língua o ñ não existe.

Claro que então defender discursivamente Aa nossa língua@ é a questão central. Aos espanholistas manifestos, pode-se-lhes dizer: AOlha, na vossa língua, escrevei La Coruña se queredes. Mas Corunha é uma cidade da nossa língua@. E aos galeguistas manifestos (isto é, espanholistas implícitos), pode-se-lhes dizer: AOlha, que A Coruña está escrito com letras da sua língua. Não quererás que seja a tua língua também! Ao que íamos: Tu pensas que esse o de Corunha deve estar aí, ou é um invento?@.

Não confio em que estas verdades e perguntas de manual entrem lóstregamente nos miolos dos cépticos galeguistas, que são os que nos interessam. Mas descolocar o debate para colocá-lo bem tem o seu atractivo.

E a táctica específica para fazer isto pode vir da mão do linguista cognitivista estado-unidense George Lakoff. Num livro recente por outra parte esquecível, Don=t think of an elephant!, Lakoff aponta atinadamente que a simples menção de um conceito, inclusive para negá-lo, evoca o quadro de referência associado: Não penses num elefante! E automaticamente imaginamos a sua trompa, a cola delgada, as orelhas a abanar o ar, a estepe ou o circo… Por isso, diz Lakoff, tanto defender algo como atacá-lo com as palavras dos que o defendem acarreta evocá-lo e, portanto, reforçar o seu quadro associado na mente.

Mas quando um conceito não é socialmente dominante (aventuro eu, não Lakoff), defendê-lo talvez não adiante nada. É melhor, simplesmente, lembrar que existe: activar a pressuposição de que existe, evocando-o. O elefante, no nosso caso, é o dígrafo próprio, NH, que é um conceito, um forte conceito que evoca o quadro de uma (de outra) Língua Nacional. É isso o que devemos mencionar… sem defendê-lo. Como? Por exemplo, dizendo aos amigos e amigas galeguistas que assinam Recursos contra as leis ilegais do Reino: Não, não penses no NH do topónimo, não é essa a questão crucial. Não penses no reintegracionismo. A questão crucial é como deve ser o nome escrito: Corunha ou Crunha?

Unidade, unidade, unidade

Publicado em Vieiros

“Por qué construir e defender desde o poder autonómico e desde a Real Academia Galega un galego diverxente das variantes faladas por 200 millóns de persoas en catro continentes entanto que se celebra en Rosario a universalidade e a unidade dun castelán calificado como infinitamente diverso?. Que razóns linguísticas poden xustificar este diferente critério político?. Por qué no castelán sí e no galego non?”

Camilo Nogueira, “Infinita variedade”, em Vieiros, 29-11-2004

Precisamente: Por que no castelhano/espanhol sim, e no galego/português não? Por que não praticam todos os defensores e defensoras da unidade linguística galego-portuguesa o que defendem? Por que é tão distinto o galego do argentino, ou do neo-zelandês, ou do quebequense, ou do valenciano, ou de tantas outras variedades que compartilham uma norma culta com outras variedades da língua comum? Que tem de especial o galego? Que têm de especial os galegos para não poderem aprender e praticar a sua língua, a segunda língua da România?

“Por qué o castelán pode ser nacional e internacional e o galego non?” (Camilo Nogueira, “Infinita variedade”).

Precisamente: Que se interpõe, na Galiza, entre o desejo e a realidade da língua comum, entre a ideologia e a prática da língua comum, na sua ampla variedade? E por que isto se interpõe só para algumas pessoas? Por que um galego não pode ser simultaneamente nacional e internacional na sua língua galega, portuguesa, como um castelhano é simultaneamente nacional e internacional na sua língua castelhana, espanhola?

Por que o galego-português não pode desfrutar da “diversidade como virtude, sen necesidade de gramáticas diverxentes, nen siquer de ortografías diferenciadas”? (Camilo Nogueira, “Infinita variedade”).

Precisamente: Por que centenas de pessoas que defendemos a unidade da segunda língua da România já escrevemos como escrevemos, enquanto outras pessoas que dizem cousas muito semelhantes não?

Até quando, até onde, deveremos ocupar-nos em decifrar a contradição? Até quando, até onde, deveremos continuar sem o valioso apoio e exemplo de algumas pessoas para o projecto da língua comum para a Galiza? Até quando vamos manter sequestrado o projecto da unidade, enquanto a língua de España cresce casa adentro?

Língua: Em favor do suicídio

Todo o pragmatismo, toda a lenteza, todo o possibilismo, todos os atrancos, todos os pactos, todas as liortas, todas as medalhas, todas as demonizações, todos os roubos, todos os insultos, todas as prebendas, todos os populismos, todas as marginações, toda a mediocridade, todas as repressões, todas as exclusões, todas as louvanças, todas as hagiografias, todos os rituais, todas as mentiras, todos os protestos, todos os segredos, todas as pintadas, todos os congressos, todas as discussões, todas as olhadas, todos os esquecimentos, todos os prémios, todas as campanhas, todos os manifestos durante décadas de concorrência entre iluminados pola administração dos resíduos da língua portuguesa na Galiza são profundíssimamente cansativos. Profundíssimamente reiterativos, circulares, endogâmicos, inférteis, aborrecidos, virais, masculinos, diletantes. Já avonda. Já basta. Já está. Morre o mundo e aqui a semearmos letras em campos reduzidos para que paçam vacas de pasta de papel. Deliberadamente lentos perante o abismo. Lentos e deliberadamente anacionais para que nos deglutam as letras doutra monstruosa Patria, sem acento. Pactando a morte em lugar de abraçá-la, obedecê-la. Fingindo resistirmos, uns e outros, que somos os mesmos. Fingindo as palavras, os argumentos, os escritos, os achados, os manuscritos, os provérbios, as partes do carro, os neologismos que ninguém nunca utilizará. Pactando os acentos, os morfemas, as proibições, as contra-senhas. Adorando os adjectivos, os versos, a tinta, os abraços. Contemplando o abismo, a queda iminente, o equilíbrio.      Pois: Nada há mais real do que o abismo antes do suicídio. E nada mais doloroso do que a morte lenta. Se afinal vai desaparecer todo germolo de uma monstruosa Pátria, não nos neguemos a um final glorioso, como nos filmes de suicídio. Só há dous caminhos para a Unidade. Um mantém-nos, como hoje, como até agora, no purgatório de uma semi-língua. O outro é acatarmos a Língua plenamente, como esta, adoptá-la, e saltarmos de pés juntos polo abismo. E, enquanto caímos, ao melhor formamos essa monstruosa Pátria que tanta náusea dá e que tanto nos faz combater contra nós mesmos. E ao melhor a queda polo abismo dura mais do que pensávamos e até, enquanto morremos, desfrutamos.

O Meu Teclado Português

Sinto-me como meninho com sapatos novos. Ou polo menos assim se dizia antes, quando éramos espanhóis, não apátridas. Este é o primeiro texto que escrevo com o meu novo teclado português. Sim, um teclado de computador desenhado para escrever a minha língua. Não tem Ñ. ESTE TECLADO NÃO TEM Ñ. Não vejo um Ñ diante dos meus olhos. No lugar onde estava o Ñ, agora está o Ç. Neste teclado, o Ñ escreve-se como deve escrever-se: como um til nasal ~ seguido dum N. É assim como surgiu historicamente, e é assim como o meu teclado português o representa. A tecnologia informática sabe filologia. O Ñ espanhol procede em geral do NN latino (ANNU => año). Os listos medievais, que queriam poupar papel como eu largo de banda, punham um <n> pequeno acima de outro <n> (ou de outra letra), e isso deu em ñ. Mas no português não. No português não há Ñ, e, quando há, é português escrito à espanhola, como na Galiza espanhola, que é espaÑola. Porque o nosso som Ñ não procede dum NN latino. E a tecnologia informática sabe isto, como muitos escritores souberam e sabem isto. Sabem que Ñ é simplesmente um til nasal ~ acima dum N normal e corrente, vulgar, ordinário, que existe em muitíssimos idiomas. E a tecnologia informática, na minha língua, elimina-me portanto o supérfluo Ñ, substitui-o polo fantástico Ç que é como produto da aberrante engenharia genética do C, e faz-me trabalhar mais para escrever um Ñ: sempre deve haver esforço para escrever as letras estrangeiras. Eis a diferença: o Ç é uma letra nossa, enquanto o Ñ é um N com uma cousa rara acima.

O meu teclado português foi-me trazido de Portugal por um amigo. Eu pouco vou a Portugal, e quando vou, não vou lembrar comprar um teclado português numa tarde de sol e cafezinho junto ao Douro. Mas este amigo ia de viagem vários dias, e lembrou que uma vez eu comentara que vender teclados portugueses na Galiza deveria ser um NEGÓCIO. E ele pensou em mim (não no negócio) e ofereceu trazer-me um teclado português. O meu amigo trouxo um par de teclados portugueses para outros amigos, como antes entravam na Galiza as cousas proibidas, e como continuam a entrar agora. O meu teclado português entrou cruzando o Minho, pola mesma via do contrabando de tetraciclina nos anos 1950 que salvou a minha mãe de morrer de tifo, do contrabando de livros proibidos que tinha meu pai na sua livraria de velho em Vigo. É a mesma via dos filmes em DVD que aqui não podemos ver em português, nem legendados em português, a via das cousas próprias que o Ñ de EspaÑa nos impide ter e que entram por Internet cruzando o Minho. O meu teclado português é um produto de contrabando: sem alfândegas, com um euro comum, sem guardinhas nem guardiaciviles às portas dos dous quartos desta casa, mas contrabando ideológico igualmente. Mas não é o objecto de plástico o que entra de contrabando: é a língua. As teclas dos meus teclados serão feitas em Taiwan, mas a língua ainda não. O meu teclado português é o veículo da língua que reside nos meus dedos. E por primeira vez na minha vida não tenho que enviar esta língua aos meus poucos leitores a meio dum teclado espanhol ou inglês. Quem na Galiza acredite que pode escrever a língua da Galiza com o Ñ dos teclados espanhóis, continuará a estar errado: um teclado contém toda a Língua, toda la Lengua ou the entire Language, e não existe qualquer língua nem teclado intermédios.

Já sei que alguns me chamarão lusista. Mas a ver se se inteiram de vez que eu não sou lusista não: é a língua da Galiza que é lusista. E eu, simplesmente, obedeço-a. Tento obedecê-la como durante anos obedecim o espanhol e continuo a obedecê-lo quando o falo e o escrevo. Eu obedeço a língua galego-portuguesa que saíu e entra na Galiza quase tanto como obedeço o inglês quando o falo e o escrevo. Porque é a língua da Galiza que é lusista, como a da EspaÑa é espaÑolista, e a inglesa é lógica e legitimamente anglófila. Não se pode fazer cultura própria com os instrumentos dos outros. E o Ñ galego, o dos manuscritos, que existiam, morreu há muitos séculos, exatamente quando coincidiu por dominação com o único Ñ espaÑol, e só houvo no país um enorme Ñ espaÑol que representava outra língua. E quando a nossa fala foi língua sul do Minho, o antigo Ñ galego cindiu-se em NH, meioticamente, como uma célula, quando a nossa fala foi língua. E aí continuou durante séculos. Há um formoso jogo de caracteres para computador, chamado Tipo Castelao, feito por J. H. Peres Rodrigues, onde se pulsares o Ñ sai automaticamente o dígrafo NH. Com estes caracteres não se pode escrever Ñ, e isso é uma sã proibição mental. É são que para escrever o Ñ se precise mentalmente dum esforço, o de escrever um idioma estrangeiro.

Ter um teclado português é um exercício de higiene, recomendo-o. Até o teclado é mais limpo, cândido, fulgente. De pouco a pouco, nas práticas diárias, o nosso corpo, que é simultaneamente biológico, histórico e social, deve habituar-se a esta limpeza de pessoa conversa, recém comungada perante um deus escrito, que dá outro sentido à resistência da língua. O outro dia, num telefonema por uma consulta informática, um trabalhador de Madrid do meu programa de anti-virus, que só tem versões em espanhol e inglês, não compreendia que a que eu instalara fosse a versão inglesa. Por que vou ver as letras de EspaÑa no meu constante ecrã se não posso ver as letras da Língua que obedeço? Prefiro obedecer a língua inglesa que a espanhola. Mas, de pouco a pouco, o que prefiro é obedecer à língua-que-carece-de-Ñ, felizmente eunuca, desprovida, onde um livre til nasal pode sobrevoar qualquer letra: Ã, Õ…. E procuro, então, que as minhas práticas diárias sejam naturais: que os meus dedos, que amiúde transportam até o mundo exterior a consciência da língua que escrevo, pulsem os signos da língua que obedeço. A vida diária é uma arquitetura de peças miúdas e simbólicas, e por isso o meu teclado português dá a ilusão, infantil, lusista como a própria língua, de estar no meu país, de não estar ligado por um cabo elétrico ao unitário coração da Besta. Não obedeço ao Povo não, porque não é esse Povo cheio de EÑES quem mais ordena: é a Língua da Galiza quem mais ordena. E, que se lhe vai fazer, é reintegracionista: é lusista.

Masculino genérico: O homem

.

     O homem é um animal racional.

     O homem é um mamífero.

     O homem é um mamífero bípede que menstrua, fica grávido, pare e amamenta os filhos.

     Mas o homem é um animal que submete a metade de si próprio. O homem que não amamenta os filhos submete o homem que amamenta. O homem que não fica grávido impede que o homem grávido deixe livremente de estar grávido. O homem sem hímen valora muito o hímen do homem com hímen.

     Em muitas sociedades o homem só deixa que casem dous homens quando um dos homens é homem e o outro não é homem. Mas o homem não deixa dous homens que são homens casarem, nem dous homens que não são homens.

Continue reading “Masculino genérico: O homem”

Língua e Estatuto: Uma proposta audaciosa

Enviado a A Nosa Terra; não publicado • No Portal Galego da Língua • Em CMI Brasil

Nunca gostei da expressão, mas começa um novo “curso político” e social paralelo ao académico. Com ele, voltarão debates à minguante esfera pública que nos resta. A língua não é nem de longe o principal problema de qualquer sociedade. Mas o problema da língua é amiúde sintoma e, pior ainda, causa de outros. Neste sentido, é evidente que a situação sociolinguística na Galiza continua a ser grave: a Galiza como sociedade ainda foi incapaz de se articular nacionalmente, e a sua língua continua sem ser o que se entende por Língua Nacional, quer dizer, entre outras cousas, um símbolo de Estado e um instrumento que veicule e expresse conteúdos culturais distribuídos “democraticamente”, que sirva como recurso dentro da infelizmente inescapável lógica do Capital, e que seja um referente e uma conduta natural, diária e habitual de que por fim podamos deixar de falar com obsessão. E a sociedade galega foi incapaz de alcançar ainda esta situação porque carece dos recursos políticos soberanos, aqueles que poderiam levar a um estado nacional independente tão nocivo (mas, contra os medos dos liberais defensores do “mercado”, não mais nem menos) como o Reino de Espanha ou a República de Portugal, ou como qualquer outro Estado do capital.

Diz tudo isto quem nem é programaticamente nacionalista, nem independentista, nem estatalista. Manter contra toda laminação do pensamento uma ucronia ideológica informalmente libertária não pode significar cegar-se às evidências. E uma das infelizes evidências é essa carência de Língua Nacional na Galiza paralela à falta de autodeterminação real, como lhe corresponde em direito (humano, já não político) a qualquer colectivo em processo de construção intersubjectiva, que é como se dão os processos sociais.

Seria longo (e precisaria de outro autor) detalhar as responsabilidades históricas das proto-elites nacionais na falta de país e de língua actuais. Culpar sempre o Outro, como se o Outro fosse uma invisível entidade estrangeira em “Madrid”, não soluciona o problema. O facto é que em dous séculos as proto-elites nacionais galegas políticas e intelectuais foram incapazes de gerar pouco mais do que ideologia da Identidade e discursos culturais. Mas muito pouco Capital. E sem Capital não há Língua, porque é esta que se constitui em moeda de troca simbólica paralela às moedas únicas que nos subjugam. Evidentemente, a versão actual do galego culto, proposta pola Real Academia Galega e acolhida como útil miragem polas classes dominantes, não é tal veículo de capital que poda concorrer contra o espanhol como lengua nacional. De facto, está a acontecer todo o contrário: de cada vez mais, o espanhol é também lengua nacional da Galiza, porque todos os processos fundamentais de identificação social, (escassa) mobilidade de classe, comunicação social, etc., passam por ele.

Na minha opinião, no plano sociolinguístico só há uma maneira de procurar reverter esta tendência: abraçarmos com todas as consequências e acatarmos como súbditos obedientes a natureza cruel das Línguas Nacionais de estado, e construirmos a língua da Galiza como tal. Este é, nem mais nem menos, um velho projecto que o insidioso “senso comum” se encarregou de adjectivar como “lusista” ou, em linguagem politicamente correcta, “reintegracionista”, mas que subjaze a notáveis ideólogos da nacionalidade galega, desde Biqueira até Castelao ou Lôpez-Suevos ou (com uma importante concessão ao benefício da dúvida) Nogueira. E a história e o presente dizem-nos que o modelo mais próximo que temos para construir uma Língua Nacional que reproduza e à vez invisibilize a cruel distinção social e de classe é também o mais próximo cultural e geograficamente: Portugal.

Sei que se argumentará que o “Povo” não concebe o galego como língua portuguesa. Talvez este argumento fosse válido se os especialistas soubéssemos ver a ideologia “real” que têm as pessoas sobre a língua nos enunciados delas. E talvez não fosse válido, se soubéssemos resgatar as variadas concepções informes da língua e da fala em qualquer sociedade. Mas, contudo, queiramo-lo ou não, a concepção do “povo” sobre a língua não é a questão. Durante o Franquismo o “povo” galego (a gente) sabia que o galego era um dialecto do espanhol. Não o “pensava”: sabia-o. Agora a maioria da gente sabe que o galego é independente do espanhol. Muitos sabem que é independente também do português; mas muitos também sabemos que o galego é língua portuguesa. Como o sabemos, alguns chamamos o galego “português galego”, paralelo ao “francês quebequense”, e sabemos que não estamos a violentar a natureza da língua. Contudo, nada adianta discutirmos a firmeza destes saberes (o episteme é a cousa mais misteriosa que existe) nem os números das maiorias ou das minorias: as analogias mais transparentes (estruturalmente, o galego é à língua portuguesa o que o quebequense é à língua francesa) são facilmente ignoradas quando contradizem fortes ideologemas. Por isso, trata-se de tomarmos um caminho diferente do debate circular. Passo a explicá-lo.

O “curso político” talvez ofereça a possibilidade de as elites partidárias levarem adiante uma revisão do quadro jurídico do Reino: o quadro dos Estatutos de Autonomia, incluído o galego. Devo suprimir por praticidade a discussão da conveniência destas reformas. Teoricamente (ucronicamente), não podo defendê-las, porque não podo aceitar a existência do Reino sem grande ranger mental. Mas os factos sociais são mais poderosos do que a vontade do cérebro. E existe a possibilidade de o estatuto para “Galicia” ser revisado. No que atinge à língua (a minha deformação profissional) e aos direitos linguísticos, não se deveria deixar escapar a oportunidade de tocar o estatuto.

E é aqui onde se apresenta socialmente o que considero uma proposta audaciosa. Em 29 de Junho de 2004, as associações linguístico-culturais de âmbito galego AAG-P (Associação de Amizade Galiza-Portugal), AGAL (Associaçom Galega da Língua) e MDL (Movimento Defesa da Língua) aprovaram após discussões a três bandas uma proposta conjunta de revisão de alguns pontos do Estatuto, apresentada publicamente em 25 de Julho, que, na minha opinião, contribui para facilitar juridicamente a construção de Língua Nacional. A Proposta 2004, como é chamada (http://www.proposta2004.tk/) redefine o estatuto legal da língua da Galiza deixando aberta, de maneira muito elegante, a sua consideração, classificação tipológica e portanto denominação. A sugestão de reformulação do Artigo 5 do Estatuto galego, na qual me focarei, é a seguinte: O galego ou português é a língua oficial da Galiza.

Esta formulação é extremamente inteligente. A identificação entre “galego” e “português” é paralela à tão efectiva equiparação entre “castelhano” e “espanhol”, por exemplo, sinónimos que operam tanto no âmbito oficial e institucional quanto no quotidiano. No nível jurídico, a fórmula O galego ou português é a língua oficial da Galiza (esteja escrita como estiver) não impede nem promove qualquer modelo de formalização (padronização) autónoma do galego, enquanto levanta qualquer atranco jurídico para a discriminação em razão de língua (outro ponto também reformulado na Proposta 2004). Não se posiciona (como não se pode posicionar um Estatuto) sobre o debate técnico a respeito da delimitação do galego como língua (língua galega, língua galego-portuguesa, língua portuguesa na Galiza, português galego, etc.), nem muito menos sobre a questão normativa. Não impõe usos (como não poderia), e não os impede. Em definitivo, é inclusiva, não excludente.

Na minha opinião (e de muita outra gente), a construção efectiva de Língua Nacional na Galiza passa inelutavelmente polo amplo reconhecimento social e pola plasmação jurídica desta inteligente equação. Evidentemente, esta é uma condição necessária mas não suficiente para o alvo dos três enes: nacionalização, normalização e naturalização da língua. Para isto, a Proposta 2004 (que diz mais cousas, por exemplo sobre direitos linguísticos e meios de comunicação públicos) visa o apoio maciço de pessoas e organizações. Não é uma iniciativa desenhada para ficar no fácil recanto da heterodoxia que se autolegitima: é para ser contemplada com seriedade. Não me engano: a Proposta 2004 representa um desafio para partidos, intelectuais, e outras inevitáveis minorias que querem (em toda lógica) que sejam reconhecidas socialmente as parcelas de legitimidade alcançadas numa recente história de trinta anos. Mas eu vejo que a Proposta 2004 não está desenhada contra: está desenhada para. Cada um(a), cada pessoa, cada organização ou entidade, saberá como fazer encaixar a sua ideologia e projecto político com uma oportunidade histórica.

Confesso que eu já dei o meu apoio a esta iniciativa: o meu apoio, sim, à revisão dum Estatuto inconcebível. Diz tudo isto, e convida a visitar a Proposta 2004 e a considerá-la, uma pessoa que, repito, não é nem autonomista, nem quisera acreditar nas leis, nos estados e no poder das línguas. Mas assim é a natureza da Besta, que impõe tantas aberrações diárias, enquanto morre o mundo a mãos da única Língua, uma espessa língua de ouro preto que se chama Language.

Proposta 2004: http://www.proposta2004.tk/
Associaçom Galega da Língua: http://www.agal-gz.org
Associação de Amizade Galiza-Portugal: http://www.lusografia.org/amizadegp/default.htm
Movimento Defesa da Língua: http://mdl-galiza.org/

Sobre a Escrita, Contra o Populismo Normativo: Catorze Verdades de Fé dum Pseudo-Sociolinguista

Publicado no Portal Galego da Língua

Na lista Assembleia da Língua, Gerardo Uz pergunta sobre o papel dos sistemas escritos na marginação dos grupos sociais. Concretamente, a questão é se a forma específica duma norma escrita afecta o seu possível conhecimento ou desconhecimento e, portanto, ulterior selecção social. Opino longamente:

1) Nas sociedades de classes a forma específica da norma escrita não tem qualquer incidência sobre o mecanismo geral de class-ificação, selecção e marginação social baseadas no conhecimento diferencial da Língua.

2) As diferenças graduais (o contínuo) de saberes sobre a língua transformam-se em categorias discretas de classificação social. Por exemplo, tanto uma pessoa que comete muitas faltas de ortografia como uma pessoa que comete muito poucas “têm faltas de ortografia”, e portanto ambas são susceptíveis de serem classificadas como “não conhecedoras da Língua escrita”.

3) O estabelecimento da fronteira entre “os que sabem” e “os que não sabem” é contingente e depende da forma particular de distribuição desigual do conhecimento. Por exemplo, entre “sábios” absolutos alguém que ignore um só facto pode ser um “burro” total.

4) Os pontos 2 e 3 acima têm um paralelo nos contínuos da fala. O que se chamam “marcadores sociais” são elementos linguísticos isolados que adquirem o valor simbólico de toda a variedade dialectal ou sociolectal a que pertencem, co-ocorram ou não com outros elementos dessa variedade. As variedades são construções mentais dos falantes: representações globais que, embora compostas de signos (sociais) individuais, operam como signos complexos elas próprias. Por exemplo, alguém que diga “dizer” e “canção” é um “lusista” (até que essas formas deixem de ser socialmente “lusistas”). Por exemplo, um “andaluz” é alguém que aspira os “s” embora não faça o resto de cousas que fazem os andaluzes na fala. Na Galiza, alguém que “fala galego” é alguém que diz uma frase com “eu”, não “yo”.

5) Portanto, qualquer elemento linguístico (oral ou escrito, “correto” ou “incorreto”) é susceptível de cobrar o valor simbólico de distinção grupal, e de se constituir num “erro” ou um indicador de subalternidade, ignorância, etc., ou de valores positivos como inteligência, cultura, etc.

6) Portanto, não há sistemas escritos mais “fáceis” ou “mais difíceis” de aprender para o seu uso se constituir em SIGNO de competência linguística e  social. Na sociedade de classes, uma escrita “tecnicamente fácil” de aprender é ainda um procedimento de exclusão, porque não está garantida (é impossível) a destreza completa de todos os utentes nessa escrita.

7) O mecanismo geral de exclusão e dominação a meio da língua na sociedade de classes é paralelo aos outros mecanismos de distribuição inerentemente desigual dos recursos (materiais ou simbólicos). Na sociedade liberal-capitalista, por exemplo, o sistema educativo está desenhado para reproduzir a desigualdade sob a miragem da igualdade de oportunidades. Quando um recurso (a escrita, a língua) é oferecido para o seu aprendizado a todos “por igual”, mas afinal do ciclo educativo obrigatório básico não todos o dominam “por igual”, a explicação da diferença (já tornada em distinção hierárquica) cai sobre um leque de factores, todos relacionados com as características dos indivíduos distinguidos polo saber (os “listos” e os “burros”). Excluídas as explicações politicamente incorrectas sobre as diferenças entre listos e burros (por exemplo, que pertençam a “raças” ou grupos étnicos distintos), as obviamente erradas (as diferenças de género) e as invisibilizadas (as diferenças de classe), só resta uma pretensa explicação psicologista: o Indivíduo. Os listos (os que escrevem bem) são listos porque a sua mente é lista e trabalhadora. Os burros (os que escrevem mal) são burros porque a sua mente é burra e preguiceira. Melhor: cada pessoa é lista ou burra, trabalhadora ou preguiceira. O sistema educativo, portanto, fornece simultaneamente os recursos democráticos, as explicações do seu fracasso, e as culpabilizações inevitáveis polas hierarquias que reproduz.

8) As diferenças na aquisição da língua escrita têm muito a ver com o valor atribuído à língua escrita e de cultura polos grupos, e com a exposição dos meninhos a essa língua de cultura no âmbito familiar. Como a própria cultura está previamente distribuída de maneira diferencial entre as classes, nas classes mais cultas haverá mais meninhos mais cultos e “listos”.

9) A língua escrita de cultura distribuída na escola sempre está baseada na fala das classes burguesas meias mais cultas. A escola introduz o conflito social no seio das famílias onde a cultura escrita tem menor presença, ao oferecer ao meninho modelos de língua, de fala, de escrita e de saber que contrastam com os dos pais não educados. Sistematicamente, os meninhos de classes trabalhadoras menos cultas passam por um período de des-identificação com a língua da família.

10) A compensação por este escoramento de classe da língua escrita não pode consistir em tomar a fala das “classes populares” como modelo. Quando isto se faz, dá-se simplesmente uma ré-colocação de classe, pois, de novo, a fronteira simbólica e social entre formas da língua é absoluta: a nova norma  culta supostamente baseada na fala popular torna-se em língua culta de classe. Veja-se o caso galego actual.

11) O caso anterior pode acarretar o acesso ao poder simbólico da língua para novos grupos sociais a expensas de outros, mas não representa uma alteração da lógica da exclusão de classe pola língua.

12) Em definitivo: enquanto existam as classes sociais existirão as “faltas de ortografia” e as escritas boas e más, “fáceis” e “difíceis”, os “listos” e os “burros”.

13) A solução radical é mudar o modelo social e económico e portanto o sentido social da diferença linguística oral ou escrita. A solução reformista é acatar o valor classificador da Língua, não pré-julgar e pré-classificar os grupos pola sua “capacidade” ou “incapacidade” cognitiva de ganharem acesso a essa Língua, e remover qualquer obstáculo legal e social que obstaculizar efectivamente a expressão linguística e qualquer medida que representar um agravo comparativo na distribuição de recursos comuns (o dinheiro, que vem dos impostos e o mais-valor propriedade do Estado) para qualquer forma de se expressar na língua.

14) Em conclusão, a escrita mais “fácil”, “popular”, “democrática” e universal é fazer um “o” com um canuto.

Referências básicas:

  • Bernstein, Basil (1972). A sociolinguistic approach to socialization; with some reference to educability. Em J. J. Gumperz & D. H. Hymes (eds.), Directions in Sociolinguistics. New York: Holt, Rinehart and Winston, 465-497. (= Bernstein, Brasil (1996). A Estruturação do Discurso Pedagógico: classes, códigos e controle. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Luís Fernando Gonçalves Pereira. Vol. IV da edição inglesa. Petrópolis: Vozes).
  • Bourdieu, Pierre (1977). The economics of linguistic exchanges. Social Science Information 16(6): 645-668.
  • Bourdieu, Pierre (1982). Ce que parler veut dire. Paris: Fayard. (= Bourdieu, Pierre. Data? A economia das trocas lingüísticas: O Que Falar Quer Dizer. Trad. Sergio Miceli, Mary A. L. de Barros, Afrânio Catani, Denice Catani, Paula Montero e José Carlos Durand. São Paulo: Edusp).
  • Bourdieu, Pierre (2000). Poder, derecho y clases sociales. Bilbo: Desclée de Brouwer.
  • Joseph, John E. (1987). Eloquence and power: The rise of language standards and standard languages. London: Frances Pinter.
  • Scherer, Klaus R. e Giles, Howard G. (1979). Social markers in speech. Cambridge: Cambridge University Press.

A estrela das cinco pontas cardeais

Publicado no Público, suplemento Fugas, 5 Junho 2004, p. 8.

Dizem que de Compostela parte um caminho que são muitos. Que tudo começou há séculos de pedra; e que quem voltar a essa cidade submergida em mineral pela mesma via, como numa Ítaca pessoal, muito mais ancião com as cousas e os pensares, achará no meio de uma pequena praça que não posso nomear o desenho inusual de uma estrela de cinco pontas cardeais. Esta pessoa só poderá vê-la se trazer consigo um fardel de serenidade, uma autêntica compreensão do lento transcorrer do tempo humano. Sentando-se no centro da estrela à meia-noite do solstício de Verão, se olhar justo para o zénite da cúpula, esta pessoa verá passar a rota da sua própria vida e o princípio do universo. Assim singelo é o reencontro: faz o périplo dos mares, procura-te nas línguas e vegetações diversas, volta para sentar-te placidamente no astro inscrito na pedra, olha para cima.

Compostela é aqui metáfora da mente. Qualquer lugar deveria conter a estrela das cinco rotas ou outro signo onde sentar-se na noite de solstício após uma vida de procura ética. E então dizer: Vi a morte passar em carros de combate; vi homens matarem mulheres, homens matarem outros homens; vi ladrões em fatos luminosos entrarem com sigilo na casa comunal e roubarem o azeite, o arroz, roubarem a força de trabalho; vi a miséria que não deveria persistir; mas algumas vezes vi o prazer de corpos nus à lua, o assombro dos meninhos, o enlevo de amor adolescente. Vi palavras falsas, palavras assassinas; vi povos fragmentados por um rio inexistente, estados construídos com os blocos de casas derrubadas por um tanque, vi reis coroados com o ouro das moedas; mas algumas vezes vi um júbilo de centenas de pessoas sem armas a lutarem. Vi cifras inumanas nos jornais, vi as linhas horizontais do sangue no ecrã que não cessava, vi raças de seres magros a arrastar-se e raças de seres poderosos a arrastá-los; mas às vezes vi nuns olhos uma incombustível resistência, vi a mente central da humanidade. E compreendi.

Ninguém deveria deixar de visitar a sua própria casa, que está dentro. Dentro levamos o desenho da razão humana, que é por exemplo um ícone na pedra, o labirinto de Mogor nos glifos da Galiza, que baixa até ao Sul como uma língua. Não existe um ano especial para visitar a própria casa. Não existem as celebrações dos opulentos. Não existem os nomes empolados: não existem as maiúsculas. Não é preciso sangrar pelo caminho. Não é preciso adorar um homem morto. Não é preciso adorar qualquer fronteira. O caminho tem a forma da estrela marinha que sabe a sal, não a forma dos fogos de artifício. Compostela, onde eu também vivi enquanto morria a anterior face do terror da Ibéria e nasciam vermelhos estes murchos cravos, está dentro. Para encontrar a casa e encontrar-se não é preciso o ano falacioso: apenas basta a noite do solstício, o símbolo, o limpo céu obscuro justo acima, talvez a cadência de uma música contida, uns passos a ecoarem, um animal que ama. Crede-me. Vinde. Trazei terra vossa e todas as palavras, a nossa língua inteira: faz-nos falta. Vinde sempre, que nós também iremos às vossas Compostelas.

A transmissão da língua na família e nas classes

Publicado no Portal Galego da Língua

Se, como se descreveu num texto anterior ( “‘Osmose’ e redes sociais na transmissão da língua’: O papel dos locais sociais” ) a língua é um recurso (cultural, simbólico, material) que se transmite e circula por redes sociais, a pergunta básica é como abordarmos a sua transmissão nas redes centrais na organização do corpo social: a família. A família é a estrutura que reproduz (em vários sentidos da palavra) a hierarquia. As sequelas da família como experiência duram toda a vida, até gerações: arrastamos os cadáveres familiares como os povos arrastam a sua história. Nações inteiras arrastam o seu cadáver, até que o fedor pesa de mais e uns iluminados cortam o saco vitelino dos mortos e nasce algo novo. Quisera poder dizer que a transmissão da língua galega portuguesa que no nosso país está a perder o apelido é algo crucial para a emancipação social. Mas provavelmente não o seja. A transmissão intergeracional da língua, e a sua necessária revolução formal, são simplesmente sintomas de resistência. Quando um colectivo é incapaz de levar adiante o seu ideal, algo substancial fracassa. Não é obrigatório que essa utopia seja assumida por todos ao começo: pode-se construir nação dentro da nación, língua dentro da lengua e da lingua, e resistir confiando que os cépticos que ficaram fora escolham esta opção como a menos má para a sua pervivência. Mas, como fazer isto, desde que âmbitos, com que tácticas sociais, com que discursos? Eis a múltipla pergunta que nenhum activismo linguístico da Galiza aborda na altura, provavelmente porque não sabe como.

Ignoro muito sobre a estrutura social da Galiza e sobre a própria estrutura da família como para oferecer, até para mim próprio, qualquer dica plausível sobre essas perguntas. Mas alguns fáceis razoamentos sobre as relações entre língua e sociedade, e algumas fáceis metáforas, podem ajudar a compreender a situação.

Nas sociedades de classes, a língua é sempre um instrumento para o que se deu em chamar “avanço social”. O “avanço social” consiste simplesmente na mobilidade social ascendente, que se dá quando, na hierárquica geometria da sociedade, um próprio ou, sobretudo, os seus filhos, chegam a alcançar uma situação “mais alta” em termos de recursos económicos, capacidade aquisitiva, reconhecimento social e símbolos de status. Estes recursos (dinheiro e símbolos) são de distinta natureza e circulam de maneiras distintas, mas no circuito de mercado -explica Pierre Bourdieu- são até certo ponto formas intercambiáveis de capital: eu exibo língua (uma língua dada), e obtenho posição social. Como, exactamente? Uma via é através do valor de troco específico da Língua (reflectido, por exemplo, em títulos académicos de valor estandardizado) em certos âmbitos ocupacionais (ensino, burocracia, serviços de tradução, “indústrias da língua”, etc.). Outra via muito importante é através do reconhecimento dos outros, em redes específicas, da minha exibição de Língua como símbolo legítimo, e, portanto, através da abertura de possibilidades de trabalho, casamentos “ascendentes”, etc.

É lugar comum dizer que, na Galiza, a aculturação e assimilação à língua espanhola (que chamarei La Lengua para não confundir-nos) têm funcionado segundo esta lógica desde, polo menos, começos do século XIX: a perda de falantes de galego explica-se comumente como um processo polo qual La Lengua foi “descendo” desde as capas altas (burguesia – classes meias – classes trabalhadoras), que tentavam emular e aproximar-se das superiores. Mas esta explicação não pode dar conta de tudo do que está a acontecer. Como pode “baixar” socialmente uma língua desenhada para subir? Acho que algo falha ou algo falhou ao longo do processo, e tentarei expor por quê.

Distingamos, em primeiro lugar, os âmbitos rural e urbano. No âmbito rural, relativamente imóvel e estável durante séculos em termos de sistemas ocupacionais e de relações entre as estruturas sociais básicas (família e paróquia), o uso do galego era exclusivo ou muito dominante nas redes sociais densas (muitas pessoas interligadas por contactos frequentes), fechadas (sem novas incorporações habituais à rede) e multiplex (ligações estabelecidas em função de múltiplos tipos de relação social). Assim, o indivíduo A relacionava-se com B em galego porque eram simultaneamente membros da mesma família, do mesmo grupo de trabalho na exploração rural, da mesma paróquia. As fortes funções relacionais da língua no seio da família transferiam-se assim às redes do trabalho ou da paróquia. O objectivo do ascenso social limitava-se a melhorar as condições económicas de geração em geração, a enviar algum filho ao exército ou ao sacerdócio, ou a emigrar. Mas não havia verdadeiramente muitas expectativas de “avanço social” a meio de uma Lengua espanhola que era materialmente estrangeira e, além de uns poucos usos rituais, materialmente desconhecida.

Com a urbanização (desruralização), porém, vão-se modificar substancialmente as funções relacionais do galego e da Lengua espanhola. Na cidade interage-se sobretudo em redes abertas pouco densas (contactos mais ocasionais) e simplex (relacionamo-nos com alguém em função de apenas um tipo de papel social: amigo/a-amigo/a, empregado/a-chefe/a, etc.). E a língua neutra por excelência para estas redes urbanas é o espanhol. A emigração à cidade significa a possibilidade de “avanço social”. E para avançar não só há que falar espanhol, mas, sobretudo, há que falar espanhol aos filhos, na esperança, tipicamente, de que os varões consigam um trabalho melhor e de que as mulheres “casem bem” (em inglês diz-se “casar para acima”, to marry up), quer dizer, casem com um membro dum estrato superior que já fala espanhol (é reconhecido o papel mais avançado das mulheres na mudança sociolinguística, até para -evidentemente- a assimilação à língua dominante). Portanto, para estes propósitos, no novo âmbito urbano pode-se manter em galego a comunicação “horizontal” entre pai e mãe, mas a comunicação “vertical” entre pais e filhos deve ser em espanhol para estes adquirirem os recursos dos quais os primeiros carecem.

Ora bem, se este mecanismo de ascenso e selecção social funcionasse na Galiza (se La Lengua tivesse sido e fosse um instrumento para o “avanço social” ascendente), realmente não se estaria a dar a situação actual, com tal penetração maciça do espanhol nos estratos baixos. É paradoxal que uma língua dominante “baixe” quando a sua função social é facilitar que a gente “suba”. Tentarei de expor uma explicação possível a este aparente paradoxo.

Numa sociedade galega com mobilidade social real, idealmente, se a maior parte dum estrato ou classe galego-falante inicial educasse os seus filhos em espanhol para emular as classes urbanas superiores e para permitir os seus filhos se relacionarem em (fictícia) igualdade com elas, é de imaginar que muitos destes filhos ascenderiam socialmente: obteriam trabalhos melhores, ou “casariam bem”. Agora as classes meias, já espanhol-falantes, seriam algo mais largas. Mas como a mobilidade social continua “para acima”, os estratos superiores das classes meias espanhol-falantes também ascenderiam. Quanto mais arriba, mais acumulação de capital (de vários tipos) se dá, mas não mais Lengua. Assim, o resultado da função mobilizadora ascendente do espanhol poderia ser uma ligeira ampliação das capas meias espanhol-falantes, mas não uma acentuada penetração da Lengua para “abaixo”, pois o grosso dos falantes desta língua (La Lengua) estariam de cada vez mais “arriba”.

Continuando com a idealização, uma minoria das classes trabalhadoras assimiladas ao espanhol não ascenderiam, claro, e manteriam o status dos seus pais, mas falariam já espanhol. Mas o influxo galego-falante do campo à cidade deveria manter em proporções mais ou menos constantes a distribuição das línguas no seio destas classes trabalhadores: maioritariamente galego-falantes. (Além, não todo mundo se assimila: continuaria e continua a haver galego-falantes que transmitem o galego na família). Porém, evidentemente a distribuição estável por classes não é o caso actual: não há nem manutenção da língua nas classes trabalhadoras, mas perda gradual. No âmbito urbano, o uso do galego com os filhos é terrivelmente minoritário em todas as classes sociais. Mesmo entre os pais, as cifras de galego-falantes são muito baixas.

Portanto, por que não se dá a situação típica de função da Lengua para o ascenso social? Será porque as classes meias assimiladas e já espanhol-falantes “descem” de status de geração em geração? Ou será, antes, porque, apesar da tentativa de ascenso através do idioma, as classes originariamente galego-falantes que se assimilam simplesmente não ascendem? Os pais educam os seus filhos em espanhol para lhes fazer a vida social mais fácil. Mesmo quando a língua da casa é o galego-português, a vida na escola, claro, faz com que os meninhos adquiram o espanhol como língua de relação com seu grupo geracional. Mas os filhos, relativamente falando, afinal não ascendem socialmente. Alguns poderão ter, em termos absolutos, mais recursos e uma vida mais cómoda do que os pais. Mas, como grupo, vão ocupar o mesmo lugar social subalterno relativo e ocupações comparáveis às das gerações passadas. Não “baixa” o espanhol não: deixam de “subir” os novos espanhol-falantes! La Lengua prometida oferece-nos um famoso provérbio que resume cruamente esta situação: Aunque la mona se vista de seda, mona se queda. Esta miragem de falso ascenso social através do idioma reproduz-se em todos os níveis. E os poucos galego-falantes que ainda mantendo o idioma ascendem, não fazem massa suficiente como para se constituir em pontos de referência social para a emulação de condutas por parte dos que permanecem em estratos inferiores: a experiência dos galegófonos “com sucesso” também é excepcional, não paradigmática dum processo social.

Portanto, a causa primeira da perda acelerada do idioma na Galiza não é o próprio mecanismo nocivo e universal de selecção social a meio do idioma: é a falta de mobilidade social real, de dinamismo económico (e disto há dados macro-económicos evidentes), até dentro da lógica capitalista. A lógica capitalista na Galiza leva décadas, se não um par de séculos, a jogar com o famoso fraude comercial da “pirâmide” a grande escala: oferece socialmente investir em Lengua prometendo o ascenso, mas os que ascendem já tinham Lengua e posição alta de antemão.

Em contraste, em qualquer sociedade verdadeiramente “de mercado” onde existe dinamismo, grupos sociais definidos e coeridos por cultura, origem e/ou língua podem chegar a construir o que se chamam sistemas ocupacionais próprios: redes económicas, comerciais, empresariais levadas por membros do grupo, com reprodução da divisão vertical do trabalho, com elites ou proto-elites, com hierarquias sociais internas (como de facto ainda se dá no âmbito rural), com alianças comprometidas entre elas, e portanto com potenciais económicos que se estendem além das fronteiras da “minoria”. São estes grupos que podem ameaçar as “essências nacionais” dominantes, porque os estratos inferiores não precisam emular as condutas das elites da cultura hegemónica: já têm as próprias. Em certas zonas dos Estados Unidos, por exemplo, a língua espanhola chegou nos últimos anos a constituir-se em “ameaça” para a anglofonia dominante (até o ponto de se promulgarem leis restritivas tipo English Only) só quando os hispanos imigrantes e filhos de imigrantes (e descendentes de populações hispano-mexicanas originarias antes da anexação polos EUA) chegaram a constituir, com os instrumentos da sociedade de mercado, sistemas ocupacionais próprios coeridos pola origem, cultura e língua comuns. Não me refiro ao caso (também excepcional) do Miami dos cubanos exilados ou auto-exilados, mas ao de cidades como San Antonio, em Texas. Por contra, mencione-se na Galiza algum sector económico (além da indústria editorial e editorial) onde a língua de relação seja o galego-português, onde trabalhem maioritariamente galego-falantes, onde se dê “lealdade” em termos de alianças económicas endógenas , e onde tanto a força de trabalho como a do capital falem em galego e falem aos seus filhos em galego. Mencione-se algum fragmento de cidade galega onde se poda dizer que, económica e socialmente, isso é a Galiza, não España. Compostela, tal vez? E essa é Galiza, ou “Galicia”?

Em resumo, sem sistemas ocupacionais próprios galegófonos, lusófonos, onde as gentes trabalhem, sejam contratadas e se relacionem em função de relações próximas, familiares, de vizinhança, etc., e que funcionem com capital “galego” e identificação “galega”, as poucas experiências das empresas “galeguistas” (as que se apresentam “graficamente” como tais) ficarão em ilhas folclóricas que emitem as facturas em dialecto, sim, mas nas quais a língua que continuará a ser um vínculo e um recurso é La Lengua. E essa é na prática a língua nacional (la lengua nacional, evidentemente), não o totem idealizado e ideologizado do Galego.

Qual a tarefa, então? A tarefa é expandir essas redes urbanas de classes meias (comerciais, pequeno-burguesas) lusófonas, quer dizer, abrir uma cunha social ascendente que, como a famosa faixa central da “língua sande” que é o catalão (comprimido tradicionalmente entre duas talhadas de pão espanhol: uma, a alta burguesia e aristocracia urbanas hispanófilas, e outra as classes trabalhadoras imigrantes), sirva de ponto de referência para o avanço social. Não são as Zaras as que fazem país, mesmo se fossem galego-falantes: é o famoso tecido social e económico urbano. Estamos (se estamos!) polo menos vinte anos por detrás de países como Catalunha nesta tarefa. E é duvidoso que a Galiza poda fazê-lo com a força económica própria, sem relacionamento efectivo transfronteiriço com as redes económicas lusófonas onde a língua (quer dizer, agora sim A Língua) sim que funciona -dentro da aborrecível lógica que faz as nações- como instrumento para o “avanço social”: Portugal.

Em definitivo, é o âmbito da família, como principal canal de transmissão intergeracional da língua, que o activismo linguístico lusófono deve abordar com uma seriedade que até agora está ausente. Mas tentei dizer que a “família” é sobretudo um agregado primitivo de corpos cinzelados para o trabalho assalariado: uma fábrica que fabrica operários a base de Cola-Cao. E a “família” falará a Língua que lhe prometa, eleitoralmente (nacionalmente), o pão para os filhos.

“Osmose” e redes sociais na transmissão da língua: O papel dos locais sociais

Publicado no Portal Galego da Língua

Assistim ontem a parte do interessante I Fórum da Língua organizado polo Movimento Defesa da Língua, com a presença de numerosos colectivos luso-reintegracionistas do país. Estivem como público nas sessões sobre ensino obrigatório da língua, e sobre locais sociais. Uma das preocupações condutoras do que ali se falou referia-se, naturalmente, à questão central do luso-reintegracionismo: como espalhar o uso da língua! Isto foi explícito na intervenção de Ignácio Orero, o representante da Fundaçom Artábria na mesa sobre locais sociais: ele perguntou retoricamente pola (inexistente) “fórmula mágica” para promover a ré-galeguização. A experiência comum relatada por várias associações é que a tímida transmissão do idioma entre os jovens espanhol-falantes ou neo-falantes que acodem aos locais se dá por “osmose”, e que uma “osmose” semelhante se dá também entre os próprios activistas da língua nos locais, que vão incorporando-se ao luso-reintegracionismo gradualmente, por pura “naturalidade”.

Com efeito, esta “osmose” é parte consubstancial no processo de naturalização social do idioma. Mas, em que consiste exactamente este processo, do ponto de vista sociolinguístico? Como se pode incidir nele? Como se pode acelerar a transmissão no trabalho de base?

Para abordar este processo, é fundamental compreendermos, focarmos e privilegiarmos a noção de rede social ou retícula social, e compreendermos também o valor da língua como recurso transmitido socialmente. Uma rede social é um conjunto de pessoas ligadas por relações sociais mais ou menos habituais, e conectada com outras redes por linhas mais ou menos fortes ou débeis de relação também social. Cada pessoa faz parte de múltiplas redes sociais interligadas. Teoricamente, cada um(a) de nós pode ser concebido/a como o centro de uma rede, que conecta com outras. Frente à noção de grupo, que destaca o indeterminado (um “grupo” é como um conjunto de pontinhos movendo-se soltos dentro dum círculo, dum “conjunto boleano”), a noção de rede destaca a relação e a troca e circulação de recursos: materiais (como objectos, bens) e simbólicos (valores culturais, ideologia, língua). Uma rede pode ser vista, assim, como um conjunto de pontinhos (pessoas) ligados por linhas que simbolizam a sua interacção mais ou menos habitual ou mais ou menos frequente. A maior interacção entre as pessoas, maior reforçamento das linhas de relação. E, enquanto o solapamento de “grupos” consiste na sobreposição desses círculos, desses “conjuntos boleanos” a que algumas pessoas “pertenceriam” e outras não (como se “pertencer” a um “grupo” consistisse em levar um boletim de identidade no cérebro), a ligação (mais ou menos débil ou forte) entre redes descansa no agir dos indivíduos em mais de um esquema de relações bi-direccionais. Contrastem-se estas duas representações dos “grupos” e das redes:

Representação de dous "grupos" sociais
Representação de duas redes sociais

A transmissão da língua e da cultura ao longo destas redes só ocorre e só pode ocorrer a meio das práticas sociais, que são sempre, práticas de intercâmbio de algo: actividades conjuntas, conversas, o empréstimo dum objecto cultural (livro, revista, música, software), que adquire assim um valor simbólico: não é só o livro físico o que se troca, mas o que contém, e até parte da história do seu itinerário de circulação. Por exemplo, amiúde estamos tentados a aceitarmos mais facilmente um objecto cultural que chega de uma pessoa “de confiança” do que o mesmo objecto se chegasse dum desconhecido ou dum “adversário”, porque o objecto transporta com ele o simbolismo duma cadeia de relações. Certas seitas religiosas sabem isto muito bem!: deixam-che na casa um livrinho, que nem lês, mas que é pretexto simbólico para a breve conversa que tivestes na porta e para futuras conversas esperáveis sobre o mesmo pretexto. A Opus Dei totemiza o seu Camino como objecto de troca, e nos grupos dos partidos marxistas circulava e/ou circula o Livro Vermelho de Mao, o Que Fazer, o Marta Harnecker…

A “osmose” na naturalização social da língua é fruto, portanto, da circulação de recursos (incluída a língua) entre participantes duma rede social, e da sua eventual passagem para outras redes. Por isso, a presença de materiais lusófonos e lusógrafos nos locais sociais (já não materiais “galegos”, mas galego-portugueses) é, como veremos, crucial para a transmissão do reintegracionismo.

Acho que é fácil, portanto, compreender a função da circulação de recursos quando estes são materiais. Ora bem, como entra especificamente o recurso e prática da fala neste processo? Visto que a fala não é “material” (as palavras têm uma base física acústica, claro, mas não são permanentes), como se “distribui” então a fala ao longo das redes? E para que serve?

Com efeito, quando eu falo em galego-português (“galego reintegrado”) não transmito materialmente nada: depois de escutar-me, o meu ouvinte não “possui” materialmente nada novo. Se era dominantemente espanhol-falante, não deixa de ter esta competência em espanhol. E, sim, se era também galego-falante, aspectos da minha competência –um uso linguístico, uma construção, um pedaço de calão– podem ser assimilados por ele/a, e repetidos posteriormente. Mas nada disto é material. Em função de que processo social, então, podem estes actos de fala contribuir para espalhar o idioma entre falantes não habituais, se, afinal, a escolha de um ou outro idioma vai continuar a ser um acto individual? Um livro em português que nos emprestaram há que devolvê-lo, e contribuir assim para o reforçamento das relações de rede. Mas, uma conversa escutada em português há que devolvê-la também?

É aqui onde entra a noção de prática social, e da fala como prática. Frente a um acto individual (como escovar-se os dentes, por exemplo), uma prática social é um acto que manifesta valores colectivos, sempre interpretáveis no contexto (modernidade ou “tradição”, utilidade ou inutilidade, camaradagem ou hostilidade, normalidade ou anormalidade, urbanidade ou ruralidade, resistência ou acomodação, poder ou subalternidade), manifesta também ideologias e fragmentos de identidade(s), relaciona indivíduos e portanto cria e reforça redes, e (de maneira fundamental) cria expectativas sobre as próprias formas das relações futuras, incluída a língua utilizada. Por exemplo, se certa conversa de grupo se desenvolveu maioritariamente em galego, a língua associa-se de maneiras subconscientes a outros componentes da situação: as pessoas, o lugar, o momento, o tema, o tom ou “humor” geral, os objectos manipulados como recursos (bebida ou comida, revistas), etc.

Neste sentido, é frequente –e por isso é fundamental para a naturalização do idioma– o facto de a língua utilizada numa primeira interacção com uma pessoa ser com frequência a língua dominante dessa relação, quer dizer, desse fragmento de rede. O interlocutor associa aspectos da prática do falante com o contexto, e também com aspectos da “identidade” do outro falante e da sua “ideologia” (dos valores que dão certo tipo de coerência aos seus actos). Certo, a “identidade” não pré-existe: não somos o que “somos”, mas o que fazemos que somos (“somos” muitas cousas à vez, mas fazemos-ser algumas destas cousas selectivamente). E, certo, a “ideologia” não se vê: faz-se também, através das práticas. Mas, precisamente por isso, na mente do nosso interlocutor (que é onde se constrói o social), geram-se expectativas não só sobre como nos vamos comportar no próximo encontro (que práticas vamos levar a cabo), mas também sobre quais serão as próprias práticas sociais mais adequadas dele ou ela. E assim, em encontros posteriores, o que se vai “trocar” entre as pessoas vão ser também as palavras que se ajeitem a essas expectativas de conduta. Inclusive nos casos em que ambas pessoas sejam no fundo (por extracção linguística) espanhol-dominantes, se a sua primeira conversa foi em galego, é muito possível que esta prática do galego se mantenha entre eles… se o contexto continua a ser favorável.

Mas, o que fazer precisamente para que esse contexto continue a ser favorável? Porque, o que acontece numa situação bastante gueotizada do galego, é que as ligações entre o conjunto de redes jovens galegófonas e o conjunto de redes sobretudo hispanófonas são muito débeis. Quer dizer: Existe uma “fronteira” na ordem sociolinguística que consiste em que amiúde as práticas galegófonas dos locais sociais e outros âmbitos restritos não transcende para outros âmbitos porque não há suficiente fluidez e sobreposição de redes: numa cidade, os poucos jovens galegófonos reintegracionistas são simultaneamente membros da mesma associação cultural, do mesmo grupo de amigos, do mesmo grupo político. Fazem-se, portanto, redes densas (e intensas), mas pouco ligadas com outras. Os contactos com outros tipos de pessoas são mais débeis e ocasionais. E, embora a prática monolingue continue fora da rede “guetoizada” por parte dos indivíduos, não existe Aí Fora (fora das paredes do local social) suficiente densidade de práticas galego-falantes como para produzir a “osmose”. Por contra, os outros “guetos” dos jovens espanhol-falantes que se reúnem noutros lugares não são tão guetos: as suas práticas (a língua) encontram-se e contribuem para consolidar outras redes sociais: familiares, profissionais, do mundo público, e, sobretudo, da grande rede social que é o imaginário colectivo de “España”.

A questão fulcral, portanto, é como ampliarmos gradualmente as mais escassas redes jovens onde domina o galego, e conseguirmos que a fala e os recursos de língua associados (escrita, música, cinema, software) ultrapassem essa fronteira invisível. A questão não é só que os locais sociais cresçam por dentro, mas que as suas práticas e significados saiam fora. Estas duas gráficas poderiam representar idealmente o começo do processo:

Uso das línguas em duas redes
Transmissão da língua ao longo de redes

Em circunstâncias favoráveis, com o estabelecimento de novos contactos pola rede lusófona, a prática da fala deveria estender-se. Nas circunstâncias mais desfavoráveis, não aconteceria nada novo. Mas uma cousa é evidente: a fluidez entre redes não pode ser negativa para a lusofonia, pois em geral a prática monolingue entre essas redes está tão assente que, a partir desses centros de irradiação da língua, não haveria risco de experimentar o processo contrário (assimilação ao espanhol).

Para favorecer este processo ideal, a circulação de recursos que acompanha a fala lusófona deve ser suficientemente cativante para os membros das outras redes como para que, de pouco a pouco, poda ser alternativa efectiva às culturas anglófona e hispanófona dominante. Deve produzir-se uma identificação crescente entre estes recursos lusófonos e o imaginário da “Galiza”, e, mais ainda, da “Galiza jovem” (e mais ainda, duma Galiza internacional!), sem por isto exigir uma total viragem na adscrição social (identificação) dos neo-falantes. O negativo “efeito gueto” reforça-se quando determinada prática (a fala lusófona) vai indefectivelmente unida a uma dada “ideologia” e a uma dada “identidade” que se tornam em contra-senhas de adscrição. Por exemplo, quando um neo-falante potencial não compartilha aspectos importantes das “ideologias” e “identidades” dos seus interlocutores numa rede galegófona fechada, e quando estes valores estão ferreamente unidos à prática da língua, pode ser mais fácil para o neo-falante potencial assinalar e destacar o seu posicionamento não mudando de língua: mantendo-se no espanhol. E, de maneira complementar (ainda que poda soar paradoxal), em circunstâncias específicas a prática monolingue em galego sem fissuras perante um neo-falante potencial pode não ser a melhor táctica para um necessário reconhecimento mútuo e posterior convergência na lusofonia: falar a linguagem da outra pessoa às vezes transcende falar numa língua dada, e certos usos muito pontuais e simbólicos do espanhol podem favorecer uma inicial linguagem comum.

Em conclusão, é tarefa das associações de base e locais sociais desenharem as tácticas concretas para a consolidação, alargamento e ligação das redes lusófonas habituais, também fora dos locais. Para começar, precisa-se, acho eu, duma quantidade maciça de materiais lusófonos e lusógrafos atraentes que veiculem as relações sociais, face a obter-se uma maior visibilidade da língua como referente natural das culturas urbanas. É importante, por exemplo, que destes materiais se vá destilando e utilizando a necessária linguagem específica (o calão jovem) que veicule novas relações de rede. Estas utilizações simbólicas das gírias luso-brasileiras, inseridas na fala galega e até no espanhol, invocam inconscientemente um distinto imaginário.

E para isto também se precisa, sem dúvida, da articulação efectiva com outras redes lusófonas sólidas ali onde se dão com toda naturalidade: em Portugal (por pura proximidade geográfica e social). O intercâmbio de actividades e visitas de pessoas com outros locais sociais e associações de base de Portugal, por exemplo, seria um bom instrumento para as associações contribuírem para a construção dum novo imaginário com base real (não apenas mítica), talvez mais efectivo do que qualquer umbiguista acto minoritário no que estão ou estamos os de sempre.

Apesar de que dalgumas perspectivas se queira negar, do que estamos a falar é em definitivo do contributo “de abaixo” para a construção duma língua nacional, até quando por ideologia se recuse chamá-la assim. Porque uma língua nacional não é a língua duma “nação”: é uma língua internacional. Evidentemente, sem trabalho de elite “de acima” por parte das instituições, partidos e “grupos” (quer dizer: redes!) dirigentes, nunca haverá língua nacional neste país. Mas, se por acaso se está a caminhar nessa direcção, quando a situação madurar (digamos, daqui em vinte anos), se não houvo antes caldo de cultivo “de abaixo”, poderá existir tal vazio de língua portuguesa nos grupos mais jovens que se encontrará maioritariamente ainda mais resistência a ela do que agora.

Mas esse é um segundo capítulo por escrever. Se há interesse, também o podemos debater.