O “reintegracionismo” como Pátria

Publicado no Portal Galego da Língua

Quando não se tem nação, porque o que ela poderia ser foi apropriado por outra invenção nacional ou nunca existiu, os homens tristes do mundo (e alguma mulher) constroem as suas Pátrias pequenas onde aprendem os protocolos da honra, do poder, da antiguidade. São estruturas onde se reproduzem os princípios hierárquicos, petruciais, onde os mais novos se socializam na lealdade (de pouco a pouco, ou se não poderia resultar uma Revolução), onde se vai escrevendo nos textos e nos actos uma emotiva mitologia interna, onde se aprendem os mecanismos hagiográficos e os dispositivos da estigmatização. Nos interstícios do mundo real, primeiro na vigorante clandestinidade e depois na auto-assumida heterodoxia, década após década, as estruturas que são Pátrias crescem e decrescem intermitentemente como uma ténia que perde elos por um lado e ganha-os por outro, constantemente mantendo só a massa crítica necessária para a subsistência robinsoniana, como um escolhido mangado de incompreendidos heróis na ilha social, arrodeados de tubarões (alguns reais, outros imaginários), a improvisarem um refúgio comum sem sentido, pois quando o telhado já está montado e as pessoas mais jovens e fortes poderiam subir para iniciar o segundo andar, os mais velhos, herdeiros e custódios dos molhados Planos Originais, desmontam o telhado e voltam a começar. Para que no fundo o refúgio nunca mude e seja sempre mimese de si próprio. Durante décadas. Indefinidamente.

Quando na vida real não se desfruta desse abcesso mental que é a nação, os homens e as mulheres tristes constroem maquetas de Pátrias onde por qualquer motivo se expulsam os amigos, se denegam outras possíveis amizades, se retira o saúdo. Nestas Pátrias qualquer crítica converte-se num ataque aos princípios fundadores, qualquer parabém é imediatamente sequestrado como compromisso de incombustível lealdade, e surgem como hordas os vocabulários da Traição, da Destruição, dos Inimigos, os apelos à Unidade, o terrível, o inexprimível medo à diversidade, ao confronto, a ter que sentar-se frente a frente, no mesmo concílio, com quem sabes que aborrecerias pensar de igual modo, mas que tens que escutá-lo se queres que te escutem. Então surgem as nítidas Facções, os Partidos, as fechadas partidas de caça: surge a conspiração como princípio organizativo e portanto a psicose como método, a percepção de que todo mundo conspira sempre contra tudo e contra todo mundo, mesmo quando não conspira. Nas Pátrias, a rareza de não conspirar considera-se uma conspiração. E surgem as metáforas dos barcos que afundem sem remador, ou, polo contrário, das fálicas naves armadas que por fim apontam para um horizonte de vários oceanos, uma enorme Língua de mar ou de pequena terrinha que condensa o sentido dessa Pátria e onde na realidade se afogam todas as misérias. Quando há uma Pátria que os petrúcios ou os seus aprendizes proclamam que afunde, surgem sempre os desejos de que nasça um salvapátrias.

Nestas Pátrias, como nas verdadeiras, nunca há lugar para agir depois da sua fundação. Porque a Pátria já tem uma longa idade, uma mitologia de volumosas biografias, que é basicamente o que a constitui. Mais nada a constitui. A Pátria pode ter um tema fundador, mas este é apenas uma escusa. Os mais novos patriotas nunca poderão fazer parte da aborrecível cúpula. Porque a verdadeira razão de ser da Pátria não é a Pátria, mas a cúpula, e esta já está sempre ocupada por si própria. Os mais velhos patriotas que chegaram tarde, tampouco terão nunca biografia. Uns e outros serão sempre construídos como estrangeiros. Como inimigos. São patriotas inimigos. Dentro de cada Pátria sempre há patriotas inimigos, poucos mas necessários estrangeiros inimigos, pois sem eles não haveria Identidade Própria da Pátria, não haveria mitologia, heróis nem vilãos.

E assim, quando numa triste Pátria há lutas intestinas, igualmente cegos afinal todos os patriotas (uns, polo esmagador sol da vitória; outros, polas profundas trevas da derrota), todos eles só podem agir fragmentariamente guiados polas suas próprias, antigas, monótonas vozes: as únicas que reconhecem após décadas de recíprocos parabéns e de batalhas reais ou inventadas cujo duvidoso registo se acumula oculto nos sagrados arquivos custodiados, sacerdotais, impenetráveis, nas poeirentas gavetas de uma casa ou na paternal memória oral o acesso à qual é um privilégio. As Pátrias são por definição obscuras, isolacionistas, as suas mitologias são confusas, a sua essência é a exégese, não a explicação aberta, e quando algum raro súbdito abre a voz para que se falem os detalhes e a história desse monstro, para que saiam os papéis e se descubram as trapaças e os enigmas, as infantis acusações são que essa procura de clareza é ora querer destruir a Pátria, ora praticar a fútil loucura do discurso.

E levam razão. Ambas infantis acusações levam razão.

A retórica da Propaganda

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1.

Escreve nalgures a linguista Ruth Wodak que a Propaganda é “discurso desenhado para impedir pensar”. A Propaganda é omnipresente na vida diária. Mas, como se constrói linguisticamente, discursivamente, a Propaganda? Que recursos fornecem as línguas para a Propaganda?

Quisera focar-me num fenómeno pragmático (comunicativo) muito frequente na vida diária e susceptível de uso propagandístico com muita produtividade: a pressuposição. A pressuposição consiste em dar por entendido algum significado, mas “escamoteado” dentro de um enunciado mais amplo. Por exemplo, se eu afirmo “O filme A é mais interessante do que o B”, estou a pressupor que o filme A é, polo menos, algo interessante, que tem a qualidade de ‘interessante’ nalguma medida. Por isso os vendedores nos dizem sempre que um produto caro é “menos económico do que o outro” (tem o atributo de ‘económico’, quer dizer, ‘barato’, nalguma medida), nunca “mais caro do que o outro”.

Um tipo de pressuposição muito frequente é a chamada pressuposição existencial. Com uma pressuposição existencial, dá-se a entender (dá-se por inquestionável) a existência de algo, de uma dada entidade, seja isto assim no mundo real ou não. Por exemplo, se eu afirmo “O meu cão chama-se Trósqui” pressuponho que existe um cão específico e que é da minha propriedade. Reparemos que se nego o dito (“O meu cão não se chama Trósqui”) continuo a pressupor o mesmo: a existência de um cão que é meu. De facto, “O meu cão chama-se Trósqui, mas não tenho cão” é uma contradição, porque eu dei a entender, com outras palavras, que o tinha.

As pressuposições existenciais são activadas polo que se chama uma expressão definida. Uma expressão definida é, por exemplo, a que começa com o artigo “o/a/os/as” (“O meu cão está doente”), ou a que consiste num nome próprio (“Trósqui está doente”).

Portanto, as pressuposições existenciais contribuem para a representação de um mundo… ou para a sua construção. A questão crucial para o receptor de uma pressuposição existencial (o ouvinte) é o que se chama a determinação do referente, quer dizer, o problema da identificação de uma dada entidade do mundo real que se possa corresponder com a entidade pressuposta. A questão é se no mundo real a pressuposição se satisfaz ou não, quer dizer, se na realidade existe ou não essa entidade pressuposta. Eis o que discutirei a seguir.

2.

A propaganda política faz uso do recurso da pressuposição existencial de maneira profusa. De facto, grande parte da construção de uma ideologia consiste na construção de um “mundo” de objectos e realidades pressupostas. Por exemplo, “A política económica do governo” pressupõe que o governo tem política económica (e não um conjunto de actos improvisados). “Os direitos dos trabalhadores” pressupõe que existem tais ‘direitos’, e assim por diante.

De maneira que as pressuposições existenciais contribuem para construir um mundo, polo menos das ideias. Alguns ultraliberais, por exemplo, fazem existir o nazismo na Galiza a referir-se em certos textos jornalísticos ao actual governo bipartido da Galiza BNG-PSOE como “el poder nacional-socialista gallego” como se o governo fosse um todo unitário comparável ao partido alemão NSDAP e como se tivesse a mesma ideologia. A manipulação baseia-se no seguinte: O receptor sabe que existe a Xunta; sabe que está composta por um partido “nacionalista” e por um partido “socialista”; portanto, só pode fazer corresponder a expressão “el poder nacional-socialista gallego” com esta aliança de partidos do mundo real. O poder galego actual não é nazi; mas a Propaganda quer fazê-lo existir, nomeando-o e, assim, condicionar a visão do mundo dos receptores.

Dissemos que um outro tipo de expressão definida que acarreta uma pressuposição existencial é o nome próprio. O jornalista Adam Curtis revela no seu excelente documentário The Power of Nightmares (O Poder dos Pesadelos, BBC, 2004) como “Al-Qaeda” começou a existir em Janeiro de 2001, durante o juízo em EUA contra quatro homens polos bombas colocadas em duas embaixadas EUA em África do Leste em 1998. O governo EUA queria estender também a acusação a Ben Laden, como pretenso líder de um (inexistente) movimento armado internacional. Na realidade, Ben Laden era apenas seguido por um pequeno grupo de fanáticos dentre os milhares de grupúsculos armados que pululavam por Afeganistão. Mas, sob a legislação estadounidense, a acusação a Ben Laden só podia ter lugar se existisse prova de uma vinculação orgânica, quer dizer, de uma organização, como a máfia. Então, uma testemunha protegida do processo, um muçulmano, declarou que ele próprio conhecera Ben Laden e que “Al-Qaeda” era o nome que ele dera à sua organização. Polo poder pressuposicional de nomear, “Al-Qaeda” começou a existir na mente do público. Foi só mais tarde desse mesmo ano, após o massacre do 11 de Setembro, que Ben Laden soube que no nome “Al-Qaeda” representava para os neo-conservadores estadounidenses uma suposta organização da qual ele seria o líder. Na realidade, os ataques do 11-S foram obra de um pequeno grupo, desmantelado e desaparecido, que acudira ao adinheirado Ben Laden para financiamento. Em resumo, precisamente por o nome “Al-Qaeda” ser cunhado, o mundo real passou a se ajustar às palavras, com a criação de um poderoso inimigo, algo que politicamente era necessário para o neo-conservadurismo ocidental após a queda do “império do Mal” soviético. Assim, a palavra dos representantes do povo elegido (EUA) criou, pressuposicionalmente, “Al-Qaeda”. Na verdade, não longe disto está o poder performativo (criativo) da palavra de Deus na cosmogonia cristã: “E Deus disse: Faça-se a Luz; e a Luz fez-se”.

3.

É polo mesmo procedimento que se fazem existir também realidades como “O terrorismo islamista”. Com efeito, um tipo muito frequente de expressão que contém uma pressuposição existencial propagandística é ARTIGO + NOME + ADJECTIVO, do tipo “O terror-ismo islam-ista”, “O separat-ismo comun-ista”, etc., onde duas práticas ou ideologias políticas convergem numa. Reparemos, por exemplo, em

“O terrorismo islamista”.

A expressão, à margem do enunciado onde estiver contida (p. ex. “O ataque foi obra do terrorismo islamista”, ou “O ataque não foi obra do terrorismo islamista”) dá a entender a existência de uma prática política de terror que, além, é ‘islamista’, seja isto o que for. De facto, aqui há duas informações contidas numa: ‘(1) Existe o terrorismo; e (2) um atributo deste terrorismo que existe é ser islamista’.

Este procedimento retórico liga fortemente o islamismo em geral ao terrorismo. Como é assim? Porque, por uma parte, sabemos que no mundo existe também o não-terrorismo; mas a expressão não deixa a porta aberta a que existam islamistas que não sejam terroristas. O terrorismo é o conjunto maior.

Por contraste, a expressão alternativa

“O islamismo terrorista”

pressupõe algo notavelmente distinto: por uma parte, pressupõe que existe um tipo de islamismo que é terrorista; mas, a utilizar um adjectivo restritivo, deixa margem para pensar que não todo o islamismo é terrorista.

Destas duas expressões, a que melhor se ajusta ao estado do mundo actual é, obviamente, a segunda, pois não todas as pessoas “islamistas” são “terroristas”. Porém, parece claro que a propaganda política utiliza quase exclusivamente a primeira: ela faz existir antes o terrorismo do que o islamismo. Da mesma maneira, fala-se de “O terrorismo independentista” (‘um tipo de terrorismo que é independentista’), não tanto de “O independentismo terrorista” (‘um tipo de independentismo que é terrorista’, frente a outro que não é).

Ora bem, à hora de interpretar a expressão “O terrorismo islamista” e de lhe destinar um referente, a questão que o público receptor deve resolver é: Quem compõe esse grupo de terroristas que são islamistas? A evidência da experiência é que existe ‘o terror’. Outra evidência é que os islamistas são conhecidos no mundo cristão apenas quando existe o terror que alguns deles levam a cabo, e sempre em referência a ele. Portanto, a inferência a que convida esta manipulação de sentidos e de referentes é que ‘Todos os islamistas (que são os indivíduos que conhecemos quando há terror) são terroristas’, de maneira que “islamista” (como “independentista”) é um subconjunto do superconjunto que define tudo: “O Terrorismo”. Em resumo, emitir “O terrorismo islamista” implicita que ser islamista é apenas uma das possíveis manifestações de praticar o Terrorismo.

4.

Imaginemos, para continuar com a explicação do funcionamento da Propaganda, que na Galiza alguém utilizasse por escrito a expressão

“O fundamentalismo lusista”

A pressuposição aí contida dá por feita a existência de alguma (pretensa) realidade nossa. De novo, não nos interessa a oração completa em que se emitisse: tanto “O fundamentalismo lusista está a crescer” quanto “O fundamentalismo lusista não está a crescer” dariam por suposta a existência, no mundo real, (1) de uma posição ou prática social etiquetada como ‘o fundamentalismo’, e (2) de que uma manifestação desta posição social tem o atributo de ‘lusista’. (Evidentemente, ainda não sabemos o que significa “fundamentalismo” e, menos ainda, “lusista”; mas disso ocuparemo-nos depois).

Como no exemplo anterior, o subconjunto “lusista” fica portanto ligado a outros tipos dentro do superconjunto “Fundamentalismo”, tais como “O fundamentalismo islamista”, “O fundamentalismo nacionalista” ou o “O fundamentalismo independentista”. De novo, também, o elemento definidor é o substantivo: a expressão pressuposicional faz existir primeiramente o fundamentalismo, que apenas se manifesta em variantes ideológicas como ‘islamista, nacionalista, independentista, lusista’, etc. Como no caso de “O terrorismo islamista/independentista”, etc., a ideologia específica (política ou linguística) fica subordinada à construção abstracta de uma prática social, que organizaria a realidade.

De novo, como na discussão anterior, contrastemos o exemplo com a hipotética expressão também pressuposicional

“O lusismo fundamentalista”

Esta expressão pressupõe algo sem dúvida diferente: que, dentro do lusismo, existe uma tendência ou prática fundamentalista. Dá-se por suposta a existência de polo menos alguma manifestação “fundamentalista” dentro do lusismo; mas sugere-se, por contraste, a existência de um lusismo “não fundamentalista” (se eu afirmo A, estou a implicitar que existe um não-A, que posso chamar B; só um Pan-Deus escaparia a esta hidráulica).

Mas ocupemo-nos só do efeito propagandístico da expressão primeira, “O fundamentalismo lusista”. A questão, mais uma vez, é, como se adeqúa esta representação ao mundo real? Que faz o leitor da Galiza perante uma pressuposição assim?

Deixo de parte, evidentemente, o que possa significar “fundamentalismo” para alguém que utilizasse tais palavras. Nem sei, nem saberia, se esse significado não se fizesse explícito. Mas sim que sei que, na fala comum, o fundamentalismo ou integrismo está sem dúvida associado a valores negativos como fanatismo, intransigência, dogmatismo, e, por extensão, agressividade verbal e física. De facto, na discurso político propagandístico contemporâneo a ligação entre “fundamentalismo” e “terrorismo” é muito forte. Um fundamentalista é aquela pessoa que não vê sentido em discutir o significado imanente de um texto de autoridade (um código religioso, um ideário político, uma proposta normativa), pois a Palavra está por cima de qualquer debate. Um fundamentalista islamista nunca debateria, por exemplo, o próprio alvo do Islã ou o sentido do Corão. Portanto, para a consecução da sua causa, dada a inutilidade do debate, a violência pode chegar a ser um meio legítimo e até necessário. (O documentário O Poder dos Pesadelos relata como na década de 1900 o fundamentalismo fanático de alguns grupos armados islamistas foi tal que começaram a matar-se entre eles por ‘infiéis’ e traidores ao Corão: assim, o objectivo deixou de ser a salvação do mundo islâmico da corrupção ocidental, e o próprio movimento debilitou-se. Curiosamente, é precisamente aí quando uma outra Palavra, a dos ideólogos neoconservadores estadounidenses, fez nascer “Al-Qaeda”).

Em resumo: a expressão “O fundamentalismo lusista” nega a existência do lusismo fora da prática fanática fundamentalista. Por essência, o lusismo é representado apenas como um tipo de fanatismo agressivo. Como no caso anterior, diz-se sem dizer que ser lusista é apenas das manifestações de praticar o Fundamentalismo.

5.

Mas, o que acontece com a determinação do referente? Que universo de sujeitos pode constituir, no mundo real, aquele pressuposto em “O fundamentalismo lusista”? Quer dizer: que facção possível dentro do Fundamentalismo, como categoria superior, é do tipo ‘lusista’?

Consideremos, primeiro, a evidência de que existem na Galiza numerosas pessoas que, de alguma maneira ou outra, se identificam, ou identificam outras, com o ‘lusismo’ ou como ‘lusistas’. Não é a minha intenção caracterizar aqui o lusismo: a identificação ou auto-identificação pode ter a base da prática linguística (padrão escrito e/ou oral português), da aproximação cultural e linguística a Portugal ou ao resto do mundo lusófono em geral, das duas cousas, ou de outros elementos. O facto é que esta identificação de pessoas com o ‘lusismo’ existe, em clara oposição ao ‘isolacionismo’, e, às vezes, ao ‘reintegracionismo’.

A experiência é um poderoso recurso que qualquer humano tem para entender os signos. Portanto, se uma pessoa se auto-identifica como lusista, ou identifica outras como lusistas, ou entende que ela própria ou outras possam ser identificadas desde fora como “lusistas” (embora ela mesma se defina, por exemplo, como “reintegracionista”), e se ao mesmo tempo não acha por qualquer parte essas práticas próprias ou alheias “fundamentalistas” dentro do lusismo, ou mesmo se, na sua própria percepção, considera que a etiqueta “fundamentalista” só poderia ser aplicada, por metaforização, a certas palavras ou textos de toda uma história de lusismo neste país, então talvez esta pessoa só possa interpretar a expressão “O fundamentalismo lusista” como uma tentativa de Propaganda manipuladora (discurso desenhado para impedir pensar), e até como uma tentativa de insulto a todo um colectivo.

Além, igual que com “O terrorismo islamista”, esta propaganda tem a intenção de polarizar (“nós” frente a “eles”), numa visão dicotómica do mundo que só contribui para a manutenção da tensão. Por definição, a propaganda simplifica e generaliza as identidades “própria” e “alheia” para causar polarização e conflito. E amiúde, os sujeitos-alvo da propaganda política (os muçulmanos, por exemplo) sentem-se insultados não porque acreditem que os propagandistas cristãos tenham poder real para insultá-los, mas porque os cristãos, a procurarem inocular uma representação errada do mundo, estão a manifestar uma flagrante arrogância. Da mesma maneira, classificar todo o colectivo do “lusismo” como “fundamentalista” é sintoma de arrogância polo que tem de tentativa de imposição de uma dada representação do mundo.

Com efeito, para aqueles galegos que carecem de experiência mais directa com pessoas lusógrafas ou que defendem a unidade linguística, a manipuladora expressão convida a conceber toda a prática lusógrafa (‘escrever em português na Galiza’) como “fundamentalista”. A manipulação retórica consiste na construção de uma pretensa realidade, cuja existência é, precisamente, a que está em questão, mas que não se explica nem explicita a meio do debate. (Como também acontece com o ubíquo lema, sempre inexplicado, do que constitui “O terrorismo islamista”, de quem são esses terroristas, onde estão, e como agem: na campanha contra o financiamento ilegal do “terrorismo islamista” em Espanha depois da tragédia de 11 de Março de 2004, os serviços policiais espanhóis só foram capazes de intervir uns 80 euros destinados a este financiamento).

Mas a manipulação propagandística de “O fundamentalismo lusista” não fica aí. Para muitos galegos, “lusista” é termo geral para o que outros chamam “reintegracionista”, quer dizer: ‘Tudo quanto não seja a visão da RAG do galego; os da AGAL; umas pessoas que escrevem raro e dizem -çom’. Para estes galegos, toda a prática da AGAL, do MDL, da AAG-P e de outras associações, colectivos e pessoas é o mesmo: é não-galego. Na Galiza, só existiria o “galego oficial” e o “lusismo”. Portanto, para estas pessoas é possível que o lema “O fundamentalismo lusista” signifique simplesmente ‘Todos quantos não concordarem com a norma actual para o galego, isto é, desde os que escrevem cousas raras como -çom até os que escrevem em português padrão, são uma minoria fundamentalista, fanática e agressiva’.

Por isso, não andarei descaminhado se digo que o lema “O fundamentalismo lusista” encaixa perfeitamente, por exemplo, com a associação que a propaganda mediática e política faz entre o reintegracionismo e a violência (pseudo)-política que esporadicamente experimenta este país (a não policial, refiro-me). Porque todos sabemos que os que cometem esses actos violentos são “lusistas”. Nesse sentido, o lema “O fundamentalismo lusista”, por associação de significados, inclusive reforça o papel da propaganda de Estado sobre as íntimas ligações entre reintegracionismo (=”lusismo”) e “terrorismo separatista” na Galiza: é fundamentalista, fanático, dogmático, e esconde-se nas covas de Tora Bora dos locais sociais, das organizações minúsculas e sectárias, das publicações minoritárias, dos actos culturais desérticos, da palavra arcana. O “fundamentalismo lusista” tem os seus líderes clandestinos, organizados numa detalhada hierarquia militar, e cada vez mais massas ignorantes são educadas nesse fanatismo nos campos de treinamento consentidos dos foros do PGL ou de Vieiros, o novo Afeganistão.

6.

Em conclusão, estes são só alguns dos significados ideológicos da expressão “O fundamentalismo lusista”. No fundo e na forma, a expressão, se utilizada num texto público, é um ataque directo ao projecto reintegracionista de unidade da língua da Galiza, Portugal, o Brasil e outros países. A expressão é um ataque não só aos “lusistas” (sejam estes quem forem), mas ao pensamento e ao debate sério sobre a unidade linguística. É um ataque ao que representa ou deveria representar, por exemplo, este Portal Galego da Língua. Dificilmente uma expressão tal poderá ser nunca interpretada como um fragmento de diálogo sobre a questão da língua na Galiza.

Por fim, se se me permite uma metáfora inevitavelmente derivada do próprio contexto discursivo donde surge o ideologema que discuto, escrever “O fundamentalismo lusista” num contexto público formal é apenas uma explosiva manobra discursiva de fragmentação. É uma tentativa de fragmentação de um campo que, sem dúvida, manifesta dissensões internas, mas que também está unido socialmente por práticas e experiências comuns frente a outro campo social. Dizer “O fundamentalismo lusista” é uma tentativa de fragmentação de um campo social onde a gente se define de maneiras diversas, até variáveis, raramente imanentes, e onde os significados das etiquetas fundantes “lusista” e “reintegracionista”, ou de “luso-reintegracionista” ou “lusógrafo”, continuam sujeitos a negociação após muitos anos. O uso da expressão, a tentativa de fazer existir uma indefinida realidade tal na sociedade galega, é também uma tentativa de forçar o auto-posicionamento dentro do campo pretensamente representado (de “interpelação”, que diria Althusser), de divisão, de construção de minorias e facções dentro das minorias e facções: é uma tentativa de forçar a internalização de dicotomias classificatórias (“fundamentalista/não fundamentalista”, “lusista/não lusista”), num processo ad infinitum comparável em procedimento à exaustiva classificação que os discursos totalitários impõem sobre os sujeitos inferiores (a detalhada racialização da população no nazismo, por exemplo).

Evidentemente, não é desejo meu que tudo isto seja assim: nenhuma pessoa interessada em compreender a situação da língua na Galiza deveria utilizar nunca uma expressão como “O fundamentalismo lusista” para argumentar qualquer cousa séria sobre o “lusismo” ou contra ele. Mas tudo o exposto é o que o meu (limitado) conhecimento dos recursos pragmáticos da língua me diz sobre como se constrói retoricamente a Propaganda e até o insulto.

Guerra Civil, Franquismo e língua

Publicado em Pensa Galiza • O texto faz parte dum comentário longo no Foro aberto do Portal Galego da Língua

Penso que há dous argumentos comummente aceites sobre as razões para a Galiza carecer na altura de elites galegófonas poderosas comparáveis às de outros países do Estado Espanhol: 1) A penetração “de acima para abaixo” do espanhol nas classes sociais galegas desde (agharra-te!) a Idade Média: aristocracia, burguesia, classes trabalhadoras (o processo é conhecido). E 2) os efeitos mais recentes da “repressão Franquista” sobre os usos públicos das línguas-não-Espanhol do estado.

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Da Nación à nació, e tiro porque me toca

Publicado em Vieiros

O discurso referido consiste em reproduzir literal ou indirectamente palavras emitidas ou escritas por outra pessoa ou pessoas. Nalguns dos seus tipos, a citação é introduzida com um dos verbos de dição, ou verba dicendi, do tipo dizer, comentar, perguntar, etc. A fórmula pactada entre o PSOE e CiU para o preâmbulo do novo estatuto catalão é um destes casos de discurso referido:

“El Parlamento de Cataluña, recogiendo el sentimiento y la voluntad de los ciudadanos, ha definido de manera ampliamente mayoritaria a Cataluña como nación. Esta realidad nacional tiene su traducción en el artículo 2 de la Constitución Española, que define a Cataluña como nacionalidad”.

A formulação contrasta com a aprovada polo parlamento catalão na proposta de Estatut, que incluía as expressões “La nació catalana…” e “Catalunya es una nació”. Vale a pena comentar brevemente as implicações e significados da nova fórmula pactada. Por que esta citação dos actos linguísticos do parlamento catalão?

O novo estatuto catalão deve ser aprovado agora polas Cortes espanholas, quer dizer, por “España”, não polo próprio sujeito catalão que redigira a primeira proposta. O acordo PSOE-CiU significa que “España”, como conjunto da cidadania do Estado, não se compromete com a auto-definição de Catalunha (conjunto da cidadania catalã) como nação. “España” só pode definir-se a si própria, como “Nación”, com maiúsculas (preâmbulo e artigo 2 da Constitución), e, como entidade indivisível, pode também definir os territórios que a compõem, como “nacionalidades y regiones” (dum ponto de vista social e histórico) ou “comunidades autónomas” (dum ponto de vista administrativo e jurídico). “España” sim que pode, porém, fazer constar (declarar) como se define uma parte da sua cidadania. Eis o sentido discursivo do acordo entre as partes.

Com efeito, a atribuição da definição de Catalunha como nação ao seu parlamento, não às cortes do reino, situa-se no polo “descrição” da dicotomia “descrição / definição”, como argumentou o governo espanhol. Por outras palavras: o preâmbulo descreve uma definição nacional. Reparemos que descreve também esta auto-definição de Catalunha como “real”, na expressão “Esta realidad nacional”.

Mas, o que acontece, por sua parte, com a caracterização nacional de “España” na Constitución Española? Talvez surpreenda saber que o vocábulo “Nación” só aparece duas vezes, e que o adjectivo “nacional” aparece apenas 5 vezes em 169 artigos: nas expressões “soberanía nacional” (art. 1.2, soberania que recai no “Pueblo Español”), “territorio nacional” (art. 19), “Patrimonio Nacional” (art. 132.3), “interés nacional” (art. 144) e “política económica nacional” (art. 148.13). Por sua parte, o adjectivo “estatal” aparece 13 vezes. Evidentemente, todos os usos de “nacionalidad” se referem ao estatuto jurídico dos cidadãos espanhóis, e “internacional” às relações entre o Estado Espanhol e outros estados. Por outras palavras: na Constitución Española, “nacional” parece ser sinónimo de “estatal”. A força jurídica de ser “Nación” deriva das competências auto-atribuídas ao Estado, não da palavra em si, nem na auto-definição.

Quanto ao jogo discursivo “descrição / definição” da “Nación Española”, também o preâmbulo da Constitución é descritivo, e também é um exemplo de discurso referido. O Título Preliminar começa, imediatamente antes do preâmbulo:

“DON JUAN CARLOS I, REY DE ESPAÑA,
A todos los que la presente vieren y entendieren, sabed:
Que las Cortes han aprobado y el Pueblo Español ratificado la siguiente Constitución.”

Quer dizer, o chefe do estado constata e faz saber que o parlamento e senado espanhóis aprovaram que “La Nación Española, deseando establecer la justicia, la libertad y la seguridad…”. Como no caso do Estatut, é o parlamento correspondente que define o país como uma nação, e o “povo” que o ratifica. A Constitución descreve estes factos.

Pragmaticamente (e argumentativamente) o procedimento para definir “España” como uma nação na Constitución é o que se chama uma pressuposição existencial: não se afirma que “España es una nación”, mas pressupõe-se (dá-se por certo) este facto “real” a meio do artigo definido “La”, que abre o que se chama uma expressão referencial definida. Quer dizer, “La Nación Española” faz-se existir no mundo real polo simples facto de mencioná-la como uma entidade singular identificável e distinta de outras. Da mesma maneira, na proposta inicial de Estatut, “Catalunya” faz-se existir como nação polo sua menção na expressão “La nació catalana…”. Este procedimento eliminado, de facto, era mais forte argumentativamente do que a definição ‘X é Z’ (‘Catalunya es una nació’), pois uma aseveração pode ser questionada explicitamente como verdadeira ou falsa. Finalmente, uma diferença entre Constitución e Estatut é que, no acordo PSOE-CiU, há uma exenção de responsabilidade, por parte de “España”, da definição da “realidad nacional” de Catalunha, tenha esta auto-definição a força veritativa que tiver (seja “verdadeira” ou “falsa”) e a força jurídica que eventualmente poderá ter.

Em conclusão, se o acordo PSOE-CiU prosperar, a diferença entre Estatut e Constitución não residirá na questão da descrição/definição nos respectivos preâmbulos, como às vezes se argumenta. Sim que o vocábulo “nació” desaparece do articulado, o qual parece coerente com a identificação “nación=estado” que se dá na Constitución, visto que, segundo a fórmula pactada, a única identificação possível do vocábulo catalão “nació” é o vocábulo espanhol “nacionalidad”. Contra o que declarou Zapatero, não parece, portanto, que esta “España” possa chegar a ser juridicamente uma “nación de naciones”, em espanhol, mas só uma “Nación de nacions/nacións/nazioak/etc.”, em todas as “lenguas españolas”: um Estado Nacional composto de “nacionalidades”. Cada cidadão poderá dizê-lo livremente na sua língua, mas a semântica política dominante é a da língua espanhola.

Em termos discursivos, o acordo PSOE-CiU sobre esta questão é uma solução inteligente. E em termos políticos, parlamentares e de propaganda pública (permito-me opinar), ainda mais: representa uma derrota do nominalismo efectista (aquele que só aspira a um “reconhecimento” abstracto da “realidade nacional” na língua doutrem), um reforçamento da forma unitária do estado monárquico (que impede a autodeterminação), e uma tentativa de caneio total a ERC. Nunca se deve infraestimar a inteligência de parte do nacionalismo espanhol. Talvez no novo Estatuto galego se pudesse obter a mesma fórmula fantasmal (e os três partidos parlamentares tão contentes, que o jogo continua), se não for porque não está comprovado que o PP seja inteligente. Como outras vezes, talvez a compensação da previsível derrota do PP no parlamento de “España” seja a sua vitória na Galiza, impedindo o acordo. Se for assim, neste jogo da oca, “Galicia” não chegará a ser ambiguamente “nación” (que, além, não se sabe se está em galego ou em espanhol), embora todos saibamos que em Panlíngua Trescientos Millones “a nación galega” só deveria ser sinónimo de “una nacionalidad administrativa de la España indivisible”. Mas é que, por não acatar, o PP nem acata a peculiar língua espanhola.

Bilinguismo Matrix

Em Matrix (a original, a boa) nunca se sabia o que era verdadeira ficção ou falsa realidade. Agora a Xunta e a MNL, a replicarem uma lúdica campanha dos reintegratas picheleiros NEO-falantes, convidam a galeguizar a vida: “Atrévete a / descubrir / a túa / verdadeira / identidade”.

O problema do lema, com tipografia de Matrix, é que é Matrix:

ATRÉVETE A
DESCUBRIR
a TUa

VERDADEiRA
IDENTIDAD
e

Misteriosa aparição de letras, propaganda subliminal, rostos de Bélmez. Psicofonia Matrix. Na Galiza galeguizar-se na escrita (o mundo real) reside em quatro letras e um acento. E portuguesizar-se, esse excesso, consistiria em cinco letras, um hífen e dous acentos. Nunca tão poucos traços significaram tanto e tão pouco. Significam a verdadeira identidade falsa de Galicia, não a falsa identidade verdadeira da Galiza, essa forma exacta de dizer Galicia mas escrever Galiza. A MESA POrLA NORMALIZACIÓN LINGÜÍSTICA sabe que dentro de uma pessoa espanhol-falante habita uma pessoa galega onde habita uma espanhola onde habita uma galega que é uma infinita boneca russa, de letras de quita y pon. Tal é o portento do Bilinguismo Matrix, fruto não de nós, os corpos conectados à mákina, mas da História, que somos nós, a mákina.

Não culpo a MNL. A última hora, a sua é só uma pequena campanha propagandística dentro da outra. Galicia leva dentro Matrix como uma España. Mental, quer dizer, real, como a inexistência. Como La Muerte Misma.

Quem isto escreve está a ser escrito polas letras. Não me atrevo a descobrir a minha falsa identidade. Acredito ser um à e ao pior sou um Ñ. Ou ñao- digooo não, que desliz de til.

Último texto sobre a Língua

Publicado no Portal Galego da Língua • Em Vieiros

Levo algum tempo procurando imaginar o meu último texto sobre a língua (não jogarei com o sentido do título: simplesmente, “derradeiro” não é eufónico). Espero que esta seja a oportunidade. Peço desculpas por referir-me a mim próprio, mas é do que ignoro menos.

Durante anos, escrevi muitas palavras sobre a língua, às vezes sem saber exactamente porquê. Suponho que era arrogância, e uma ânsia infantil. Estou ciente de que nem todas as palavras eram minhas: tudo está já dito, em diferentes ordens e com diversas ênfases. Agora é imperativo resumi-lo, e, para as pessoas que quiserem, agir em consequência. Não citarei nenhum autor ou autora, em parte por preguiça, em parte por não deixar de citar outras pessoas. Que cada um(a) se reconheça no que digo, ou não.

A ideia elementar é que a Língua é sempre uma questão de classe, e que, enquanto houver classes, haverá sempre alguma questione della lingua. Que não se saiba isto é terrível sintoma da descerebralização maciça. E que outras intelectualidades noutros países não abordem a questão é responsabilidade delas. Mas, na Galiza, país existente e para muitas pessoas nação desejada, a responsabilidade das elites chegou longe demais. Penso que repeti muitas vezes que não há tempo. Não resta tempo histórico, sobretudo quando as elites distorcem as prioridades, demitindo até do seu trabalho pago. Por isso só resta a maior coerência possível. Lembremos, então, o Processo e os resultados actuais.

Durante trinta anos, o chamado isolacionismo demonstrou o seu fracasso até para construir a sua miragem de língua independente na Galiza. Atribuir vontade deliberada a todo o sector seria excessivo. Mas o resultado é que a sua glorificação das falas e do (inexistente) poder linguístico do “Pobo” deu como produto um fantasma, e muito, muito discurso auto-alimentado.Para alguns dentro do sector, este era precisamente o objectivo: espanholizar definitivamente a Galiza. Quanto aos outros, ou “picaram” na trapaça ou preferiram não querer saber o que se avizinhava, porque os corpos vão envelhecendo, envelhecendo, e, nalguma altura do trajecto, um descobre que não deve desaparecer da cena sem fazer ou dizer algo pola Pátria. Aqui e alhures, o sacerdócio sempre uniu mais do que a religião.

Por sua parte, um sector do único movimento linguístico-cultural galego actual, o chamado reintegracionismo (o isolacionismo já não é movimento), continua a arvorar também a diferença linguística como salvação. É um grave erro, porque acredita que a consciência comum sobre cada Língua se forma sobre a base de um par de formas ou sons particulares. Esta posição ignora que a Língua, no capitalismo, é um instrumento necessariamente totalizador. Ou há Língua, ou não há. E na Galiza não resta tempo para que continue sem havê-la. Alguns reintegracionistas continuam a querer fazer língua, mas frequentemente a fazê-la mal. A diferença entre esta posição e a “normalidade” linguística é que na “normalidade” é a Língua que faz e constitui os falantes, e sobretudo os escreventes. Poderemos rebelar-nos e demonstrar com as nossas práticas cada idiossincrasia falante ou escrevente, sim, mas isto pouco adianta: a Língua, como Solução Final, é um dispositivo de categoria social, não individual.

Até aqui, a superfície da diagnose. Serão argumentos brutais, mas não são novos. A questão, a verdadeira questione della lingua, é o que terá a ver tudo isto com a emancipação da gente. Porque só se se reconhecer um inegável esforço de muitas pessoas durante tantos anos por pretender fazer Língua e Cultura, haverá que lhe procurar a este esforço um sentido, enquadrável dentro de um projecto soberanista mais amplo. E o sentido de muitas acções para (pretensamente) construir Língua simplesmente não existe. Muitas são iniciativas esporádicas, recorrentes, e desligadas de qualquer concepção emancipatória. São miragens de auto-satisfação: sacerdócio série B. A imposição (imposição, sim: a Língua é sempre uma imposição) da Língua portuguesa na Galiza só tem sentido se se conceber como sintoma de uma poderosa resistência. Por exemplo: é incompatível proclamar defender a língua submetida (na versão que for) de um país submetido e, simultaneamente, ser monárquico. Ou “democrata”. Ou liberal. Isto é tão incompatível como combater o desflorestamento mas não o genocídio. Porque, em ambos casos, há uma distorção das noções de emancipação e soberania. Mas já vemos que o Discurso hegemónico sabe tornar essa incompatibilidade em necessidade, tornar os assuntos culturais em prioritários e os materiais em acessórios.

Durante séculos, a Galiza foi, tem sido, e é uma formação social mantida na maior das pobrezas, ignorâncias e decrepitudes. Como consequência (ou como causa), esse “Povo” que tantos glorificam manifestou e manifesta alguns dos valores mais retrógrados imagináveis. Calculo que outros “Povos” também são assim, mas não faço parte deles, e não é o meu papel assassiná-los: tenho direito é primeiramente de assassinar o “meu” próprio “Povo”, como ele, por definição, me assassina a mim.

A Galiza é uma formação social real composta por redes de relação, leis e trocas materiais. E, na sua maioria, aceitou passivamente por ignorância o ditame da Ciência Filológica Galega sobre a existência da “lingua galega”, como os ignorantes fundamentalistas aceitam, por exemplo, a mentira deliberada do criacionismo divino. (Outros ignorantes aceitamos outros dogmas, sim). O “Povo” aceitou isto, talvez, não só por inseminação ideológica, mas por inferioridade social e cultural, e por infantilismo. Depois de séculos de verdadeira castração mental (não é metáfora), uma grande parte da “Galiza” chegou a acreditar que os povos realmente machos devem ter Língua Própria, e que qualquer cousa distinta seria derrota.

A única alternativa soberanista racional é dar volta a tudo isto. Se queremos “normalidade”, não se pode deixar a língua nas mãos do “Povo”, e muito menos nas mãos e computadores das “suas” elites (incluo-me, como parte do privilégio). Para elites, já temos os exércitos. Foi Pessoa que sentenciou essa aberração de “A minha pátria é a língua portuguesa”, não é? Substituamos “portuguesa” por “galega”, ou “galego-portuguesa”, e a aberração é comparável. O Povo e as elites são as duas faces da Pátria, e esse é o problema. Cada Pátria imposta preexiste e é eterna: uma inescapável mácula mental. Mas a Língua é um instrumento material totalitário e contingente: a sua forma não conta, o que conta é o seu poder. Então, para que inventar uma forma nova da Língua? Por isso, e por muito mais, o Povo galego, e igualmente as suas elites, estão deslegitimados pola história para fazerem nada deliberadamente com a língua: que a falem, que a escrevam e que a leiam em todo momento, que a naturalizem para sempre expulsando de vez o verme mental de España, sim. Mas que não a altarizem como essência da Pátria, ou continuaremos perdidos.

A alternativa à Pátria é a soberania da gente e da mente. E isso acarreta deixar a língua em paz, e submeter-se a ela para esvaziá-la de sentido. O racional é submeter-se à língua que tocar, seja esta a que for. Má sorte (ou boa, ou indiferente) que a língua que tocou na Galiza tem sons e letras absurdos e se chama portuguesa! Podemos trocar-lhe o nome e fazer o exercício de submissão mais deglutível ou risível (as empresas conhecem bem o efeito placebo de trocar-lhe o nome a um mesmo produto para vender mais). Mas isso pouco adianta se esquecermos o objectivo da soberania da mente. Libertar-nos do estigma da língua para começarmos a pensar é prioritário. Só assim poderemos compreender intimamente que qualquer forma de miséria humana, por exemplo, é muito mais importante do que a manobra infantil de querermos impor um acento ou uma terminação sobre um conjunto de símbolos.

Para mim, já tudo está dito. Ocasionalmente, poderei ainda sentir ânsia de querer escrever sobre os últimos acontecimentos patéticos relativos à língua do país. Nos próximos meses, e até anos, haverá actos, e declarações, e políticas encaminhadas a alimentar a cortina de fumo da língua: Afinal, os profissionais da propaganda têm o seu trabalho que cumprir. Haverá pseudo-polémicas sobre um incontinente e falacioso “Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega”. Haverá liortas, e exclusões, e vitimizações, e vitimismos, e cleptocratismo, e miragens, e declarações altissonantes, e louvanças, panegíricos, martirologias, grosserias, e até alguns argumentos racionais. Haverá flagrantes ataques de España contra a língua portuguesa da Galiza. Por haver, até continuará a haver duros ataques tácticos de galegos espanhóis contra a “lingua galega” que eles próprios inventaram: dirão, de novo, que se está a asfixiar a liberdade de usar o espanhol. E então todos os sacerdotes de todas as cores sairão às palestras jungidos em defesa da única língua para eles possível, da “Lingua Galega”, sem pisar-se mutuamente as túnicas. E será o fim da “polémica”. Periodicamente, haverá também conversões linguísticas: haverá quem vê por fim a outra Luz normativa, a outra forma da Força (sobretudo a luz ciciante da Força Verdadeira, que é a vermelha), e brandi-la-á por primeira vez com esperança nas suas mãos, na sua fala, nas suas terminações, nos seus escritos. Em resumo, continuará a haver mares de palavras sobre a língua na Galiza. No entanto, o “Povo” sem inteirar-se. E os visitantes extraterrestres (“estrangeiros”) continuarão a admirar-se ou a rir de tanta energia para nada.

Para nada? Bom, eu não sei (como poderia saber?) se de tudo isto algum dia sairá por fim o catalizador social que acabe de vez com a besta e nos permita pensar. Suponho que sem a soberania mental e real da gente, sem a independência, será impossível. Independência quer dizer que cada pessoa e a gente vai fazer o que queira, e se associar livremente com quem queira, e tentar manipular a única Língua como queira. Independência significa que, no momento que houver qualquer forma de exploração, submissão, opressão, dominação, de qualquer pessoa ou grupo sobre outros, não haverá independência. Só na independência e na soberania da mente poderíamos combater a Língua noutros termos, desde outras atalaias de razão e de acção. No entanto, o racional e modesto é reconhecermos todas as formas que está a tomar a derrota, abraçarmos definitivamente a esmagadora realidade da língua talvez mal chamada portuguesa com todas as suas letras, e das falas nossas com todos os seus sentidos, e por fim (quem quiser) dedicar-se a tentar compreender em verdade a existência da miséria, da guerra, da doença e do assassínio: a existência do Capital.

Talvez este texto tenha comentários e críticas. Se houver, agradeço-os de antemão. Mas, contra o meu costume habitual, e lamentando-o, desculpem-me se eu não responder: não há tempo.

Encruzilhada da língua

Publicado em Vieiros

O movimento linguístico-cultural galego está na altura numa encruzilhada mais evidente do que jamais antes na nossa história sociolinguística. O movimento linguístico-cultural, que leva anos ultrapassando na prática (polas suas iniciativas, o seu dinamismo e o seu compromisso activo) a actividade institucional e pára-institucional que promove a fragmentação cultural da Galiza, debate-se entre uma lealdade a certa tradição essencialista e diferencialista, e a absoluta e inevitável submissão à lógica das Línguas Nacionais na sociedade ocidental, burocratizada, capitalista, de classes. Não há vias intermédias na recuperação da língua como veículo de coesão social, de reconhecimento identitário, e de chamado “avanço” material dentro da lógica do mercado de símbolos. Estejamos ou não estejamos na Europa, o português é que está na Europa, minoritário dentro do Estado Espanhol, mas dominante quantitativamente na Galiza. Sobejam mais argumentos, mais definições, mais filologizações do conflito sociolinguístico, mais apelações às essências. A nação constrói-se, as classes constroem-se, as percepções sobre a língua constroem-se, as práticas linguísticas, culturais e literárias constroem-se. As redes de elites constroem-se, e, sobretudo, ré-constroem-se. Estamos a entrar, definitivamente, numa nova geração da língua, onde é fundamental a renúncia aos mitos e às letras, porque o tempo joga dia a dia contra nós, contra todos e todas os que, por origem, adscrição, vontade ou trâmite profissional fazem e fazemos da língua objecto, via, motivo, instrumento de trabalho e de acção.

A encruzilhada em que se debate o movimento linguístico-cultural galego é singela de descrever: Ou é promovida, regularizada, oficializada e naturalizada uma visão e versão do português galego que recolha elementos de uma recente tradição que teve e ainda tem o seu lugar na nossa resistência (basicamente, a proposta actual representada pola Associaçom Galega da Língua), ou abraça-se com o inevitável temor do novo a unidade linguística internacional como a única maneira de construirmos Língua Nacional. E há fortes valores ligados com cada uma destas opções, valores em oposição que sempre jogaram um papel fundamental nos movimentos sociais galegos. A nação não é uma declaração de intenções, mas uma prática teimosa e insidiosa de classificar-nos. A nação é o conjunto de práticas onde se reproduzem as formas do domínio. E seria absolutamente ingénuo procurarmos construir Língua Nacional sem construirmos os protocolos da classificação que a Língua implica. Devemos estar, em todos os níveis, em igualdade de condições contra a Lengua Española e o que simboliza, e junto a outros países, nomeadamente o mais próximo a nós, Portugal. Devemos construir e manifestar a nossa identidade cultural a respeito de Portugal e do Brasil, não da Espanha. Porque na história das nações o “nós próprios” nunca existe: só existe a diferença. Mas só se pode fazer isto se é com as mesmas regras e instrumentos simbólicos de jogo que o nosso país paralelo, os mesmos procedimentos de inclusão e exclusão, de intelectualização (a tradição é a invenção dela mesma polas letras), de lenta cocção da cultura. O mesmo tipo de símbolos, de máquinas produtoras de metáforas, o mesmo tipo de rigor arcano da linguagem. Devemos renunciar ao populismo como método.

É evidente qual postura defendo eu: a renúncia decidida a construirmos uma língua “distinta” na Galiza só porque e para que seja “distinta”. É inútil e nocivo lutar contra a língua. Mas reconheço, sem dúvida, a legitimidade do diferencialismo representado hoje pola posição actual da AGAL e algumas associações de base. Eu sou sócio da AGAL, a única associação profissional da língua existente na Galiza, com mais de vinte anos de vicissitudes, como tudo quanto se move. Precisamente polo seu carácter, é a AGAL que representa a tábua de salvação para muitos dos que ainda praticam a norma linguística institucional na Galiza. E é dentro da AGAL que se deve fazer a reunião de sectores. Eu sou contra a proposta actual da AGAL a respeito da língua, mas é essa e não qualquer outra proposta a que quero contestar. Porque é essa a encruzilhada real do projecto emancipador do movimento linguístico-cultural galego: ou língua portuguesa, ou língua portuguesa com algumas diferenças. O resto das práticas linguísticas e culturais disgregadoras que se dão na altura já são posições. E, como posições (institucionais ou pára-institucionais), o seu papel dinamizador e mobilizador cultural está a extinguir-se.

Mas o regresso de sectores na altura institucionalistas é possível. Intuo que grande parte do movimento linguístico-cultural estaria disposta a renunciar à defesa retórica da noção de “lusofonia”, se isto fosse necessário para o regresso da lucidez política a uma parte considerável da intelectualidade agora institucionalista, prisioneira de um discurso que não pode controlar. Este é, portanto, um convite ao raciocínio: Quando estão em jogo a necessária lucidez política para a unidade, e a cultura do país polo que se diz trabalhar, nunca é tarde para abandonar voluntariamente uma íntima e inconfessada sensação de derrota.

Todas as opções: Qual é o problema?

Publicado em Vieiros

Qual é o problema com escrever o galego oral em português, como lhe corresponde? Por circunstâncias históricas, tocou-nos um pedaço grande de língua galego-portuguesa distinto em alguns aspectos da tendência comum, e algumas pessoas (sempre muito poucas) na Galiza levam dous séculos a tentarem conciliar esta aparente aberração, a discutirem teimosamente sobre uma letra, uma terminação ou um acento. Il será pola profundidade do problema? Ou será pola sua incapacidade ou negativa histórica a compreenderem a situação e a agirem como verdadeiras elites nacionais (António Gil e Ângelo Cristóvão dixerunt em repetidas ocasiões)? Sobre-estimam-se as atitudes e a identidade essencial do “Pobo”, ou infra-estimam-se as suas capacidades cognitivas? É mais elitismo escrever uma variante linguística (o galego) na forma comum (em português), ou construir essa variante escrita ex novo, como se fosse A Lingua, mas sabendo que não é? É mais elitismo aceitar as letras próprias da língua em todo o mundo, ou aceitar as letras da língua forânea (o espanhol) que é causante da rareza linguística galega? É mais elitismo situar-se e situar a Galiza com humilde realismo no mundo lusófono, ou situar-se reciprocamente uns galegos a outros e outros galegos a uns como únicos auto-referentes culturais? É mais elitismo aceitar a lógica transfronteiriça das línguas e portanto da língua portuguesa, ou reproduzir essa lógica a pequena escala com mecanismos de poder interno desenhando uma (outra) miragem de língua e cultura democráticas?

Perante a tentação de responder estas perguntas num ou outro sentido, é mais realista e mais sensato (sobretudo agora que resta pouco tempo de oralidade portuguesa na Galiza) reconhecer que a língua não é um problema social prioritário. E, como não é, torna-se ainda mais desnecessário continuar a repartir a fome como se fosse fartura. Só as elites se podem permitir o luxo de impugnarem um sector delas próprias como se este estivesse errado. Os movimentos obreiros que marginaram parte dos seus próprios membros nos combates importantes pagaram cara a purga nessa consciência ética que pervive na história por cima e por baixo do sucesso aparente. A longo prazo, a purga por sistema fez perder a todo o mundo, embora pareça que assim se ganharam “conquistas sociais” que seriam impossíveis desde o “maximalismo”. Mas, como a língua não dá de comer a todo o mundo (só a uns poucos), temo que o exercício irracional da impugnação das candidaturas ortográficas poderá continuar por décadas por vir, enquanto mande quem manda e os que vão mandar no futuro se disponham a mandar exactamente como os que mandam agora.

Porque, quando um “Pobo” ainda não decidiu nem se auto-determinou linguisticamente (e já sabemos que o “Pobo” é quem mais ordena), como se lhe vai negar que escreva a sua tão essencial língua de uma dada maneira?

Em resumo, agora e sempre, e em todos os âmbitos, Aukera Guztiak! Que, como sabemos, significa “Todas as Opções”.

Línguas de mar adentro: Universalidade e hierarquias lingüísticas

Publicado no Portal Galego da Língua

“… certa polémica que anda a rebulir no país, tan querido e ás veces tan pataqueiro, de se Mar adentro é cine galego ou non, se debemos aplaudir ou non estas iniciativas como nosas, se o filme de Amenábar nos representa ou non nos representa…… A rexouba non tería máis trascendencia, nin merecería liña ningunha, se non estivese bastante extendida. Miren vostedes: aquí representámonos todos segundo e cómo.”

Víctor F. Freixanes, “Mar adentro en Manhattan”, La Voz de Galicia, 5 Março 2005

Toda a obra ficcional onde intervém a palavra é um universo de discurso, um mundo possível de maior ou menor coerência que contém uma ordem sociolinguística ficcional. Esta ordem ficcional pode estar orientada a representar em maior ou menor medida a ordem sociolinguística real, ou, polo contrário, a construir ou sustentar uma ordem dada no mundo real. Quando as pessoas e a sociedade representadas e ficcionalizadas utilizam mais duma língua, a escolha da ordem sociolinguística ficcional tem implicações para uma interpretação da orientação ideológica (e portanto ideológico-nacional) do filme, à margem de uma nunca recuperável intenção deliberada do autor. Porei só dous exemplos contrários de obras audiovisuais monolingues. Em Los lunes al sol a escolha como personagens principais de um grupo de operários e desempregados galegos que falam espanhol, coloca o filme no nível de simbolização de identidades doutros excelentes filmes sociais espanhóis como Te doy mis ojos, Solas, Barrio ou El Bola. A série de televisão Mareas Vivas, por contra, constrói um mundo possível exclusivamente lusófono num sentido amplo, articulado em torno da distinção sociolinguística de classe de dous grupos de personagens: “galego de gheada e sesseio” para as classes trabalhadoras frente a “galego comum” para as que detentam capital cultural. Esta distinção está mascarada sob a aparência de um jogo de âmbitos de identidades: “os de dentro” (Portozás) frente a “os que vêm de fora”, que resultam ser… o juiz, a doutora, e o mestre.

Numa orientação distinta, uma obra pode querer representar mais ou menos fielmente a ordem sociolinguística “real”, ou polo menos deixar constância da sua existência. Num exemplo extremo, no cinema estadunidense, esporádicas aparições dos “estrangeiros” falando no seu idioma (legendado ou não em inglês) são suficientes para as suas identidades ou origens nacionais serem simbolizadas, embora eles continuem depois a falar só inglês com sotaque estrangeiro. O procedimento estilístico é comum, válido e efectivo, mas os seus efeitos devem ser estimados em relação à ordem sociolinguística real da sociedade a que a obra está orientada. E aqui não estamos nos EUA, mas na Galiza.

Algo desta vontade de fidelidade há no elegante mas convencional filme Mar adentro (2004) de Alejandro Amenábar. A impressão inicial depois de ver o filme uma vez é que este representa de alguma maneira a diversidade linguística das sociedades do estado espanhol, com o uso alterno das três línguas de mais extensão peninsular: português (galego, com variantes), catalão (de Catalunha e unitário), e espanhol (com variantes comum e dialectal galega). Diversas personagens utilizam algumas das três línguas alternada ou concorrentemente em diversas circunstâncias comunicativas e configurações de participantes. Certamente, o filme não está desenhado para fazer da língua a questão central. A sua temática é o direito ao suicídio assistido, não a língua. Mas é precisamente a sua vocação universalista que nos pode levar a perguntar-nos em que medida, e especificamente como, a ordem sociolinguística interna se corresponde com a real da Galiza ou de Catalunha, e como e em que medida as três línguas articulam os valores de universalidade do filme. Com outras palavras, no que a nós concerne, não se trata só de se, na representação da diversidade linguística, Mar adentro faz um uso do galego que é possível no mundo real, mas de como se articula o jogo simbólico a três bandas (não duas) da “galeguidade”, “catalanidade” e “espanholidade” em função da intenção universal do filme. A escolha duma dada ordem sociolinguística ficcional por parte dum autor tem indubitáveis implicações estéticas, e neste comentário não se trata de abordá-la. Mas, num elementar procedimento de comutação, é evidente que um hipotético Mar adentro só em espanhol (com ou sem sotaques diversos) produziria um outro sentido da sua projecção de “universalidade”: a temática não é tudo numa obra artística. Portanto, e em resumo, como participa o jogo de línguas em Mar adentro na sua vocação universal?

As personagens

De novo, Mar adentro parece representar certos aspectos da diversidade sociolinguística na Galiza (e em Catalunha). Mas um visionado mais atento da gravação (em DVD), concretamente dos usos específicos das três línguas polas diversas personagens, revela certos contrastes de sentidos que arrojam uma hierarquia de línguas no universo da obra. Enumeremos em primeiro lugar as personagens para seguirmos o fio deste comentário. É desnecessário esclarecer que toda reflexão se refere à obra Mar adentro e às personagens de ficção, não aos factos nem pessoas reais nas que está baseada, aos quais não temos acesso directo. Para destacar isto, utilizarei aspas descontextualizadoras:

  • “Ramón Sampedro”, a quem chamaremos (Ra)
  • Pai de “Ramón” (Pai)
  • “José”, irmão de “Ramón” (Jo)
  • “Manuela”, esposa de “José” e cunhada de “Ramón” (Ma)
  • “Javi”, filho adolescente de ambos e sobrinho de “Ramón” (Ja)
  • “Rosa”, amiga (Ro)
  • “Gené”, trabalhadora catalã da associação Derecho a Morir Dignamente (Ge)
  • “Julia”, advogada sediada na Catalunha (Ju)
  • Esposo de “Julia” (Es)
  • “Marc”, advogado e companheiro de Gené (Ma)
  • Sacerdote (Sa)
  • Condutor de veículo que leva “Ramón” à Corunha (Co)
  • Enfermeiro de Barcelona que ingressa “Gené” para o parto (In)

As personagens agrupam-se em dous núcleos fundamentais: um na Galiza, em torno de Ramón, com a sua amiga Rosa, e outro o núcleo catalão (Gené, Julia, Marc, esposo de Julia), em torno de Gené. Ramón, como personagem principal, tem relação e interacção com todos eles excepto com o Esposo de Julia.

Mas, como se dão os usos linguísticos específicos polas distintas personagens? Os seguintes gráficos resumem a rede de relacionamentos a meio da língua no núcleo galego. As frechas e a sua direcção indicam a língua utilizada por uma personagem com outra. Por exemplo, A <—–> deve ler-se ‘A utiliza espanhol ao se dirigir a B, e viceversa’:

Condutas linguísticas no núcleo galego

Passemos a explicar estas condutas em detalhe.

Em primeiro lugar, o filme reflecte de alguma maneira a mudança sociolinguística da Galiza consistente na perda intergeracional do idioma. Por uma parte, dentro do núcleo familiar, numa primeira impressão a língua originária parece ser o galego-português: na forte discussão familiar no quarto de Ramón após a notícia (na televisão espanhola) do rechaço da sua demanda legal, quatro participantes utilizam o galego: José, Ramón, o Pai, e Javi, que comenta algo para si. Manuela cala. Numa discussão posterior entre José e o seu filho Javi, este responde em galego, mas antes de ir embora finaliza com um simbólico “Déjame!” em espanhol. Se está amplamente documentado na pesquisa que nas situações comunicativas tensas e emotivas (discussões, queixas, conflitos, etc.) entre os bilingues surge a língua dominante, é evidente que, enquanto a língua dominante de José é o galego-português, a do filho Javi já é o espanhol. De facto, Javi dirige-se sistematicamente em espanhol à sua mãe, ao seu tio Ramón, e ao avô. O próprio Ramón alterna entre galego e espanhol com o seu irmão numa conversa. O exame desta conversa revelaria valores de subjectividade e emoção ligados ao uso do galego por Ramón, e de espanhol para os enunciados que tematizam a racionalidade e a objectividade.

Quanto à relação entre José e Manuela, aquele dirige-se a ela em espanhol numa ocasião, diante do sacerdote que veio visitar Ramón: “Déjalo”, diz José a Manuela quando observa que esta vai começar a recriminar ao sacerdote certos comentários. E é também numa única ocasião que Manuela se dirige a José, e igualmente em espanhol. Portanto, a impressão inicial de que o galego é o idioma habitual no grupo familiar é uma ilusão.Significativamente, Manuela não utiliza galego em nenhuma ocasião na história. De facto, nenhuma das mulheres da obra utilizam outra língua distinta do espanhol entre elas: tampouco Manuela com Rosa. Em Mar adentro, o galego é sobretudo um veículo masculino mantido (e só parcialmente) no triângulo familiar Pai – Ramón – José. Mas os únicos que mantêm o galego consistentemente na família são José e o Pai.

Contudo, também no seio da própria língua se estabelecem contrastes simbólicos. O galego do Pai e de José tem “gheada” e conserva a sibilante portuguesa [s] (“Hai que pensar com a cabeça!” [ka’ßesa], diz-lhe José ao filho). Por contra, a fala de Ramón e de Javi está “regularizada”: ausência de gheada, e thetacismo (pronúncia interdental de “ç”) como em espanhol. O paralelo entre as variantes linguísticas e identidades socioculturais é transparente: o Pai e José são trabalhadores do mar e da terra; Javi é estudante, tem computador; e Ramón viu mundo (estivo embarcado vários anos), e agora relaciona-se com o mundo exterior (Gené, Julia), escuta Wagner, gosta dos debates na rádio, lê, e escreve pensamento e poesia. Como em Mareas Vivas, em Mar adentro o “galego comum” simboliza e é veículo da cultura, desprovido já dos marcadores sociolinguísticos de classe e de nível cultural baixo da “gheada” e do mal chamado “sesseio”.

Em resumo, no núcleo galego as seis personagens principais organizam-se numa escala simbólica hierárquica de três pares quanto ao uso das línguas e variantes na sua projecção respectiva de universalidade:

  1. Pai e José: trabalhadores manuais; galego com “gheada” e [s].
  2. Manuela e Rosa: trabalhadoras manuais; espanhol galeguizado, sem “gheada” e com [theta] [θ].
  3. Ramón e Javi: acesso à cultura; galego regularizado sem “gheada” e com [theta] [θ]; espanhol não galeguizado.

Condutas linguísticas no núcleo catalão

Em contraste, no núcleo de personagens catalãs (ou da Catalunha), a articulação entre línguas e identidades sociais é muito distinta. Tal escala interna de contrastes não se dá no seio do catalão (só utilizado por três personagens no filme). Na Catalunha, a ordem sociolinguística não se baseia na classe nem na cultura, ao serem situar ambas línguas, catalão e espanhol, em plano de igualdade potencial. Na história há duas parelhas internamente monolingues, ambas de classe social meia-alta e com capital cultural: uma delas fala espanhol (a advogada Julia e o seu esposo), e a outra catalão (Gené e Marc, advogado).

Em todo o caso, o espanhol mantém, porém, a exclusiva da universalidade na relação entre ambas parelhas: até na Catalunha, a interacção entre um espanhol-falante e um catalão-falante dá-se em espanhol:

Poderia parecer, portanto, que em Mar adentro se trata por igual o papel da língua espanhola como veículo de relacionamento pretensamente “neutral” por excelência sobre as outras duas línguas romances, tanto na Galiza como na Catalunha. A norma do filme parece ser: na presença de algum espanhol-falante, fale-se espanhol. O recurso talvez tenha sido produtivo para podar a representação mais fiel duma diversidade de usos das outras duas línguas. Mas há dous últimos contrastes significativos que apontam, porém, para uma hierarquia adicional na construção dos usos ou valores das três línguas para o relacionamento social fora do núcleo próprio: concretamente uma hierarquia espanhol – catalão – português. Vejamo-lo em detalhe.

Hierarquia espanhol – catalão – português

Em primeiro lugar, na cuidada arquitectura do filme, contrastam as escolhas linguísticas das duas parelhas que se formam desde o início da história e que produzem, afinal, resultados tão diversos: a parelha Ramón-Rosa, e a parelha Gené-Marc. Ao começo do filme, quando Gené e Marc se conhecem em pessoa na própria costa galega, já se dirigem entre eles em catalão:

Marc: Ets la Gené, eh? Jo soc en Marc. Salut.
(Dão-se a mão)
Gené: I la Julia?

Por contra, observemos o primeiro diálogo entre Ramón e Rosa, no quarto daquele, também ao começo do filme:

Rosa: Me llamo Rosa.
Ramón: ¿De dónde eres?
Rosa: De Boiro. Vine en la bici, dando un paseo.

É conhecido na pesquisa sociolinguística que a língua utilizada num primeiro encontro entre desconhecidos bilingues pode determinar que esta, e não outra, será o seu veículo de comunicação habitual posterior. O fenómeno responde a que cada uma das pessoas desenvolve expectativas comunicativas sobre qual será potencialmente a conduta linguística do outro. A imagem do outro formada inicialmente reforça-se com interacções posteriores, e assim se mantêm as condutas linguísticas entre eles. Em Mar adentro, o facto é que o contraste na inamovível conduta linguística de cada parelha que se desenvolve durante a história tem um significativo correlato no final. A parelha Gené-Marc (catalã, catalão-falante, de classe meia, culta) produz não só língua, mas também vida: um filho. De todas as parelhas do filme, esta é a representada de maneira mais positiva. A de José e Manuela é uma família tradicional, do tipo chamado posicional (onde as relações interpessoais se estabelecem em função de claros papéis e responsabilidades), e onde o filho não mantém a língua; a parelha Julia-Esposa não tem filhos, e está condenada à morte em vida; e a parelha potencial Ramón-Rosa tampouco produz vida, mas morte. Morte desejada, mas morte.

Um segundo contraste significativo refere-se às línguas utilizadas no “mundo exterior” da sociedade no seu conjunto. Num outro estudado paralelo, tanto Ramón como Gené (ambos sentados em cadeiras de rodas, leit-motiv de todo o filme) se relacionam num dado momento com um trabalhador do âmbito da saúde. Ramón é levado à Corunha para assistir à vista oral sobre a sua demanda legal. Na porta da casa, na sua cadeira de rodas, fala com a sua cunhada Manuela em espanhol. O condutor do veículo da Asociación de Minusválidos do Barbanza e da Fundación ONCE dirige-se a Ramón quando este é subido à furgoneta:

Condutor: ¿Usted es Ramón Sampedro, verdad?
Ramón: (Assente com a cabeça)
Condutor: Ya tenía yo ganas de llevarlo, hombre.

Noutra cena, Gené chega ao hospital para dar a luz, em automóvel rapidamente guiado por Marc. Gené mantém todo o tempo uma longa conversa por telemóvel com Ramón em espanhol. Enquanto é sentada numa cadeira de rodas por um enfermeiro ou assistente sanitário, Gené continua a falar com Ramón. O enfermeiro colhe-lhe o telemóvel e passa-lho a Marc:

Enfermeiro: (A Gené) Ho sento. Tingui (dá-lhe a Marc o telemóvel).

(A Marc) El cotxe l’ha de (???) d’aqui, si us plau.

Com outras palavras, à margem da língua utilizada polo interlocutor cliente (Ramón ou Gené), em cada caso essa figura do trabalhador que representa uma ligação “externa” à fechada constelação de personagens do filme tem uma conduta linguística espontânea inicial muito distinta: no âmbito rural galego, um condutor dirige-se em espanhol a Ramón; no âmbito urbano catalão, um assistente sanitário dirige-se em catalão a Gené. Por se pudéssemos pensar que as escolhas dos trabalhadores estão condicionadas pola observação da conduta do cliente, lembremos que em ambos casos os trabalhadores escutam os seus clientes falarem espanhol. Seria possível imaginar uma fácil e ligeira alteração desta representação ficcional dos usos públicos das línguas na Galiza, sem qualquer custo artístico para a obra: se se me permite algo de retranca, eu tenho observado que inclusive na Galiza, algumas vezes até alguns condutores de veículos podem falar a língua do país (convenientemente legendada por mor da universalidade) com um cliente. Por contra, Amenábar optou por generalizar o uso do espanhol como língua de relação pública por excelência na Galiza até para este caso. A opção estilística tem claras implicações linguístico-ideológicas. Neste mesmo sentido, e por último, poderíamos perguntar-nos também pola opção do autor de incluir, na manifestação em favor da morte digna em frente do Palácio de Justiça da Corunha, apenas faixas escritas em espanhol. E legítimo perguntar-se se a presença de algum signo escrito em galego teria comprometido seriamente a ordem sociolinguística ficcional escolhida por Amenábar.

Resumo

A representação esquemática das condutas habituais em todo o filme é a seguinte:

O esquema deve ler-se assim: além das condutas já comentadas, as relações entre os dous grupos (o galego e o catalão) no seu conjunto são em espanhol. Duas personagens “externas”, o Condutor (Co) e o Enfermeiro (En) empregam, respectivamente, espanhol e catalão. Por simplificar, excluo a figura do Sacerdote, dos jornalistas que entrevistam Ramón, e dos juízes (todos eles espanhol-falantes).

Conclusão: Realidade e ilusão

Ramón Sampedro morre dizendo para si “Já vai. Já vai”. O português galego fica representado, sem dúvida, como a língua das suas emoções mais íntimas (na que fala, mas não na que escreve pensamento), e portanto (isso dizem) como a “sua” língua verdadeira. Mas o filme no seu conjunto destila outros subtis significados sobre as relações entre línguas, valores e identidades. E é esta agrupação de significados que matiza a sua vocação de universalidade. A temática é universal. O problema ético é universal. Os sentimentos e argumentos são universais. Mas o tratamento da temática, problema, sentimentos e argumentos é apenas um dos tratamentos universalizantes possíveis. Quando, além das questões éticas, numa obra entram em jogo (sempre) questões de classe e de outras identidades, as correlações finalmente estabelecidas entre identidades e condutas (linguísticas e de outro tipo) das personagens podem, também, saltar à palestra. E este é também o caso de Mar adentro, susceptível como toda obra dum comentário como o aqui apresentado.

A questão fundamental é que, quando uma obra ficcional contém uma ordem sociolinguística possível e verossímil, como Mar adentro, esta representação (esta tipificação) pode se impor, para a gente de fora da sociedade representada (ou para os de dentro!), como a verdadeira e existente. Quer dizer: precisamente porque os usos do galego são verossímeis (não é um filme monolingue), Mar adentro cria uma ilusão de lealdade à realidade sociolinguística galega. Por que ilusão? Mar adentro diz que na Galiza se fala também galego, que se fala no seio da família, que também os jovens (o adolescente) o fala. Mas Mar adentro também diz, se o observamos, que a universalidade do problema ético não se pode transmitir nessa língua. Que, para o problema ter um interlocutor mais universal, é necessário distorcer a ordem real e empregar (muito mais sabiamente, isso sim) o gambito dos usos simbólicos parciais de uma língua dentro do seu próprio país… só para o galego, não para o catalão. Mar adentro diz que qualquer das três línguas veicula os sentimentos. Mas também diz que a razão se exprime em espanhol ou catalão. Mar adentro diz que tanto na Galiza como na Catalunha há relações familiares espanhol-falantes. Que o espanhol é língua comum, sim. Mas que, se um quer (se uma parelha quer), pode manter uma vida e uma luta só em catalão. Se repassamos com cuidado a história do filme, nenhuma das personagens galegas fez nem fará já nunca algo comparável.

Tudo isto, sem dúvida, pode ter sido algo marginal na planificação (sempre ideológica) de Amenábar: um epifenómeno da sua concepção da universalidade. Não atribuo vontade deliberada nenhuma ao autor. Mas estes significados culturais não deixam de estar aí, sobrepostos e não necessariamente incompatíveis com os mais evidentes da obra, e é legítimo comentá-los. O direito ao suicídio e a morrer dignamente não afecta só às pessoas. Há maneiras de uma cultura imóvel morrer metaforicamente sem dignidade, e uma delas é ignorarmos nos foros públicos, por mor duma defesa da galeguidade parcial do filme, os significados sociais e linguísticos de uma obra artística notável que contém uma forma de Galiza.

Final de sequestro: Sobre o “Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega”

Publicado no volume O País na Janela. Três anos de independência informativa: Novas da Galiza 2002-2005. Lugo: A Fenda Editora (2005), pp. 23-25

Já há anos que o vocábulo “normalización” da língua foi sequestrado por sectores do poder político e intelectual galego, com bons benefícios. Mas parece que com o Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega (PXNLG) a nau sequestrada da língua entra no seu trajecto terminal, pilotada por planificadores temerários. Nesta crítica do PXNLG foco-me apenas em duas questõezinhas, como veremos totalmente marginais: (1) os próprios objectivos do Plano; e (2) o seu próprio desenho geral. Qualquer centena de medidas que saírem de objectivos e desenhos deficientes só poderá produzir resultados deficientes. Ou, antes, muito úteis para o alvo de enterrar com palavrório o assunto da língua por décadas por vir.

Entre os objectivos do PXNLG figuram garantir os direitos de “quem quiser” a desenvolver a sua vida em galego, e o de promover a expansão do idioma em âmbitos e funções sociais. Dificilmente estes objectivos podem ser considerados “normalizadores”: o direito individual a viver em galego já está reconhecido na legislação de há mais de 20 anos (o Estatuto e a Lei de Normalización). E a expansão de certos (certos) usos do idioma já está recolhida nessa mesma legislação e sustentada na própria dinâmica do país. Naturalizar um idioma não é isso, mas fazê-lo imprescindível e habitual para todos os âmbitos de uso de toda a gente, ou da imensa maioria (não só dos que “queiram”). Em todo o caso, um Plano verdadeiramente “normalizador” deveria estar desenhado para garantir o direito dos cidadãos “que quiserem” a utilizarem também o espanhol. Polo contrário, o PXNLG parte da minoração efectiva do português galego, violando assim o ditado do próprio Estatuto que o institui (descabeçado) como “lingua propia” da Galiza.

Em segundo lugar, o PXNLG ignora importantes bases sociolinguísticas que explicam o funcionamento das línguas em qualquer sociedade de classes burocratizada moderna. O Plano segmenta os usos linguísticos sociais praticamente em Sectores “verticais” por Conselharias, sobre os quais a Xunta vai intervir com inúmeras medidas. Mas a gente real não fala por sectores verticais: fala e escreve consoante o que se chamam domínios de uso com características comuns. E distinguem-se comumente dous tipos de domínios principais: o coloquial-informal, e o institucional-formal. Quer dizer: os indivíduos relacionam-se ou entre eles, ou com representantes das instâncias formais e institucionais (como clientes, administrados, pacientes ou discentes).

No seu anti-sociolinguístico zelo tecnocrático, o PXNLG reúne aberrantemente por exemplo os âmbitos institucional do ensino e informais da família e das redes de amizade entre jovens, no Sector Educación, Familia e Mocidade. Um calculado subproduto deste desenho é minimizar a questão central a qualquer plano de normalização: a transmissão intergeracional da língua na família, e a sua consequente manutenção nas redes de amigos. Um desenho realmente comprometido com o idioma teria priorizado este campo, em torno do qual se articulariam os demais. Porém, a área Família só contempla 9 medidas, das quais apenas 3 são específicas à intervenção no próprio grupo familiar. Não surpreende então que os “pontos fortes” e “pontos débeis” (“puntos débiles”) da situação actual do idioma no seio da família (pp. 70 e 71) sejam uma réstia de inconsistências. Entre os “pontos fortes” conta-se, por exemplo, que “O galego aumentou considerablemente o seu prestixio social nos últimos 25 anos” (?), enquanto um dos “pontos débeis” é a “Escasa valoración da lingua galega no seo familiar en termos de identidade, de utilidade e de prestixio social”! Quer dizer: o galego tem mais prestígio social, mas as famílias (a gente) pensam que não. Uma lógica conclusão possível é que o galego tem grande prestígio social entre as pessoas solteiras e os eremitas. Além, a concepção da utilidade da transmissão da língua na família é puramente instrumental, como veículo vagamente identitário e/ou cultural, não como recurso económico para o avanço social. Assim, um dos objectivos é “sensibilizar” as famílias para os filhos se instalarem no galego e que assim “poidan acceder despois a outros idiomas”. De forma semelhante, o Sector “Sociedade” reúne também âmbitos de uso pertencentes ao domínio informal, e outros ao domínio formal.

Um comentário do rosário de medidas propostas levar-nos-ia muito longe. Algumas são tão peculiares que dariam para uma dessas mensagens de humor que circulam pola Internet. Tomemos como amostra esta, dirigida aos turistas: “Editar uns folletos cuns mínimos rudimentos da lingua galega (conversación) e da súa historia. E incorporalos á cadea de promoción turística”. Minha cunhada trouxe-me um dia da ilha de Curação uma camisola azul barata com frases em papiamentu, como Bon tardi, Bon bini ‘bem-vindo’, ou Mi ta stimabo ‘eu te amo’. Por isso o papiamentu é língua nacional.

Em resumo: a atomização “vertical” na concepção dos usos linguísticos, e a falta de priorização de Sectores e medidas pretensamente apropriadas fazem do PXNLG um produto confuso e irrealizável. Como em todos os projectos incontinentes, algumas medidas se cumprirão, outras não. Por exemplo, pode-se dar o caso de que se cumpra a medida final para a Proxección Exterior da Lingua, “Facer do ballet galego Rey de Viana un embaixador da lingua galega en todos os seus espectáculos” (sic), enquanto fiquem sem ser cumpridas as orientadas a impedir a perda intergeracional do idioma. A concepção directora do Plano é que o português galego não é nem pode ser língua nacional, mas um direito voluntário. De facto, em muitos aspectos o PXNLG é o mais antitético imaginável a um projecto de “normalização”.

Polo contrário, haveria que olhar para aquelas sociedades onde a língua cumpre com efeito as três funções básicas: recurso económico para o avanço social nas sociedades de classes, recurso comunicativo para a coesão social, e recurso simbólico para a identificação colectiva. Neste sentido, o modelo mais próximo para a Galiza é sem dúvida aquele onde a língua é normal, natural e nacional: Portugal. Não pareceria tão difícil mudar o chip, se não fosse porque o chip espanhol da elite galega é muito forte. Quando se sequestra uma nau durante muito tempo, depois todo mundo esquece aonde se dirigia inicialmente. Às vezes os aviões sequestrados sobrevoam países até que se lhes acaba o combustível e aterram em qualquer lugar remoto. Este Plano está desenhado para aterrar em qualquer lugar, esfarelado, e ficar nos hangares para sempre.