Publicado em A Nosa Terra 712, 8 Fevereiro 1996, p. 26
O meu colega Xosé Ramón Freixeiro convida de novo a reflexionarmos sobre as relações entre fala e escrita no nosso país, isto é, sobre as opções gráficas para o idioma (“A voltas coa norma lingüística na procura dun necesario pulo normalizador”, A NOSA TERRA 706, pp. 26-27). Basicamente, Freixeiro propõe um acordo que elimine as pequenas diferenças entre as normas majoritárias nas instituições (as do Instituto da Lingua Galega-Real Academia Galega, ILG-RAG) e as chamadas “de mínimos”. Tomo-me a liberdade de recolher a oferta de Freixeiro para sugerir, de primeiras, que a sua proposta (que está já na mente de bastantes utentes da escrita do galego) não resolve os vários problemas de fundo. Quero explicar em que me baseio para pensar assim. Começo cada apartado com umas afirmações gerais sobre as relações entre fala e escrita nas sociedades alfabetizadas.
(1) A relação entre fala e forma escrita é, sempre, arbitrária. Não existe nenhum sistema alfabético que reproduza com exactidão as pronúncias reais. O mais aproximado poderia ser o Alfabeto Fonético Internacional, um alfabeto técnico para linguistas que, para além de não ser de uso universal, também não está totalmente unificado. Portanto, nenhum sistema se aproxima “mais” da fala do que outro. Há sistemas chamados fonémicos onde as letras representam mais ou menos adequadamente os fonemas da língua (o do espanhol ou o do grego); mas, logicamente, estas grafias não podem ser trasladadas mimeticamente a outras línguas com sistemas fonológicos diferentes.
(2) Para além disto, não existem instrumentos linguísticos para medirmos o suposto “grau de arbitrariedade” dum sistema gráfico. Por outras palavras, não podemos dizer que a escrita padrão portuguesa se adeque “menos” ou “mais” à pronúncia galega porque não há maneira de estabelecer os critérios desta suposta adequação. Que é, logo, “mais arbitrário”, coração ou corazón para algo que, traduzido a símbolos fonéticos (e, ainda mais longe, aos valores numéricos dos parâmetros físicos das ondas sonoras!), não se corresponde com nenhuma destas formas? Dado que nenhuma escrita pode representar as pronúncias como feitos acústicos, a pergunta é vazia.
(3) Não existe uma correspondência biunívoca entre a concepção dum sistema linguístico como “língua” e a norma escrita que se deve tomar para representá-lo. Por exemplo, no nosso caso podem-se dar (e, de feito, dão-se) várias opções entre linguistas ou especialistas: (a) considerar o galego como variedade do sistema português (ou galego-português) e, portanto, escrevê-lo como tal (a minha opção); (b) considerar o galego como parte do sistema português mas escrevê-lo com uma grafia autónoma (a norma de AGAL, acaso); (c) considerar o galego como língua independente mas escrevê-lo com a grafia portuguesa; ou (d) considerar o galego como língua distinta do português e, portanto, escrevê-lo com uma grafia independente. Em nenhum lugar está dito que uma concepção dada da língua como estrutura deva ir acompanhada duma postura dada sobre a sua forma escrita. A “coerência” entre ambas dimensões (isto é, entre a concepção da língua e a prática escrita) é uma questão particular, não científica nem jurídica. Por exemplo, por um certo tipo de coerência, os reintegracionistas pensam que o português é a forma escrita do galego falado, exactamente no mesmo sentido em que o espanhol é a forma escrita do andaluz falado. Por outro tipo de coerência, alguns isolacionistas podem pensar que galego e português são estruturalmente a mesma língua mas devem escrever-se de formas diferentes. O dialectólogo isolacionista Francisco Fernández Rei tem afirmado que “duma perspectiva estritamente linguística, podemos admitir que o galego e o português falados hoje constituem praticamente só uma mesma língua abstand [isto é, ‘por distância’] . . . Porém, do ponto de vista sociolinguístico e estandardológico estamos, sem dúvida nenhuma, em presença de duas línguas ausbau [‘por elaboração’]” (“La place de la langue galicienne dans les classifications traditionnelles de la Romania . . .”, em Plurilinguismes 6, p. 111).
(4) Tanto na fala como na escrita, as variedades percebem-se e identificam-se comumente pela presença ou ausência duns poucos traços altamente simbólicos. Portanto, as pequenas diferenças entre a norma de ILG-RAG e a chamada de “mínimos” são provavelmente irrelevantes fora dos minoritários círculos intelectuais; ambas normas caracterizam-se, por exemplo, pela presença do ñ, a abundância do x e a ausência do ã, o ç e o ss. Significativamente, algumas destas características são as que distinguem espanhol e português a nível de percepção geral. Por isso duvido que uma norma comum ILG-mínimos chegasse a marcar uma “clara fronteira tamén gráfica” a respeito do espanhol, como afirma Freixeiro no seu artigo.
Contudo, as questões principais que nos afectam são de ordem sociológica:
(5) Em todas as sociedades alfabetizadas, o afastamento inevitável da fala (o “violentamento”) que a escrita representa é manipulado pelas elites intelectuais, técnicas e políticas para assinalarem e manterem as diferenças sociais. Assim, a escrita não é uma simples representação do idioma, mas um sistema simbólico de grande potencialidade para o manejo e apropriação dos recursos sociais: estatuto, prestígio, saber/poder, etc. Em breve, é precisamente o contraste entre a variabilidade da fala e a estabilidade da escrita o que se explora para exibir socialmente o privilégio da capacidade de manipulação dos recursos simbólicos. Por isso é falaz ou ingénuo pensar que uma escrita pode representar mais fielmente do que outra a “essência” do idioma. Como afirma a linguista Cheris Kramarae:
“Quando uma língua tem codificado [por escrito] a maioria do que se considera o cánon literário duma cultura, e quando as ideias exprimidas nesse cánon não se podem encontrar codificadas numa forma igual de elegante do que os modelos familiares, é fácil chegar a pensar que a própria língua é a fonte dessas ideias“.
Cumpre perguntar-se qual é, no nosso país, a verdadeira Língua que codifica esse cánon, e que, portanto, exprime a ideologia dominante: o galego?; o espanhol? Por isso, a “norma digna” que reclama Freixeiro para o idioma não seria necessariamente a que saísse dum hipotético acordo entre ILG-RAG e os “mínimos”. A “dignidade” da norma escrita é, mais bem, um conceito galvanizador das elites intelectuais na procura da sua própria identidade como construtores do cánon.
Para continuar nesta linha de argumentação, dado que a hierarquização social conectada com o manejo da escrita como sistema simbólico é consubstancial com as sociedades alfabetizadas, a questão é, portanto -dentro duma ordem educativa de suposta “igualdade de oportunidades” onde os cidadãos em formação experimentam por primeira vez os mecanismos do mercado linguístico- em que medida os recursos fornecidos aos aprendentes da escrita são distribuídos a maneira de facilitarem ou não uma competência / competição pelo menos não marcada pelo autoritarismo ou o totalitarismo. Neste sentido, na Galiza o facilitar nas escolas (e na vida pública) o manejo da escrita portuguesa ajudaria aos aprendentes ou utentes a estimarem por si próprios o valor dos sistemas escritos como canais duma cultura quase milenária, e a situarem a produção cultural própria em referência a espaços culturais diversos, simultâneos e não mutuamente excluintes. O grau efectivo de reconhecimento do próprio no supostamente alheio (a produção cultural escrita e oral portuguesa, brasileira, etc.) é, obviamente, uma questão flutuante e sujeita a princípios interpretativos de índole histórica e social. Como muitas outras percepções e actitudes, este reconhecimento é pelo menos função da exposição individual e colectiva ao material cultural a avaliar: é um processo de socialização, como a compreensão duma variedade oral dada. Eu penso que a exposição nas escolas à produção escrita portuguesa e o manejo da sua norma pelos rapazes contribuiriam positivamente para elevar o prestígio do galego, para promover o seu uso oral e escrito, e para inserir o galego e a sua literatura com justeza realista no âmbito cultural tradicional. Mas um requerimento imprescindível para que se estabeleça esse grau (variável) de reconhecimento no “alheio” é que desde os poderes públicos e desde os centros de poder cultural se fomente a exposição a materiais culturais diversos. É evidente que o programa cultural dos poderes galegos não vai nessa direcção, e cumpre perguntar-se em que medida convergem aqui os interesses do nacionalismo cultural galego com os do nacionalismo estatal espanhol, que tem no português esse “necessário adversário histórico” de todo nacionalismo que postula o sociólogo Ramón Maiz.
Qual é, portanto, o mercado linguístico que invoca e no que se inscreve inevitavelmente a escrita sem dúvida espanholizante de ILG-RAG e “de mínimos”? Claramente, é o mercado linguístico já hegemonizado pelo espanhol e pela ortografia espanhola, em referência aos quais se segue a medir a valia, peso público, importância e utilidade do galego escrito dominante, que cobra assim o valor duma uma sorte de variação sócio-estilística do espanhol. Por contra, o mercado linguístico ao que aspira e no que se inscreve o reintegracionismo é o do português escrito, dentro do qual se trata, entre outras cousas, de combater pelas multíplices identidades sociais, incluída a “galega”. Dada a actual correlação de forças (mutáveis, como a História), a proposta reintegracionista pode ser mais idealista a curto prazo; porém, é mais viável a meio prazo, e para mim mais interessante. Porque o reintegracionismo supõe um negamento simbólico do espanhol, não uma submissão à exploração das possibilidades que nos concede a escrita espanhola e o âmbito cultural do Estado. É evidente que a prática do reintegracionismo acarreta uma série de inconvenientes e renúncias (a renúncia a ser escutado amplamente, a aceder a essa tradução económica do simbólico que são os prémios, bolsas e reconhecimentos públicos; o inconveniente de ser etiquetado facilmente, às vezes insultado e mesmo represaliado). Mas há interessantes práticas reintegracionistas que representam uma fissura necessária no actual estado de cousas, e que mereceriam indubitavelmente uma análise sociolinguística séria: refiro-me às práticas dos chamados “grupos reintegracionistas de base”, que exploram de maneira quase autodidacta, irregular e “anormal” (como é a difícil instalação progressiva numa ortografia proscrita neste país) as possibilidades da ortografia portuguesa.
(6) Por último, é uma constante quase universal que a direcção dos processos de estandardização de idiomas submetidos à dominação linguística nos países bilíngues recaia em “elites bilingues” anteriormente alfabetizadas na língua dominante. Isto aconteceu ou está a acontecer assim pelo menos em Europa, na África ex-colonial e no Sudeste Asiático. Por outras palavras, jamais o equivalente dessa “velha iletrada duma aldeia do interior” do que falara Alonso Montero no seu Informe dramático como protótipo da pessoa monolíngue galega poderia chegar a ter peso nenhum na estandardização dum idioma. Por contra, as elites bilíngues dirigentes da estandardização assemelham-se muito mais a esse protótipo do monolíngue espanhol que era e é, também segundo Alonso Montero, o “jovem universitário da cidade da Corunha”. Isto não é paradoxal, mas inevitável, porque só aqueles que previamente têm perícia numa norma escrita e controlo sobre ela podem afrontar a tarefa de criar outra (ou adaptar a velha!). Logicamente, isto pode ter muito a ver com o feito de as elites bilíngues galegas encontrarem num sistema ortográfico basicamente espanhol a expressão mais adequada do idioma galego falado. Porque, na realidade, o projecto foi fazer compatível sem maior sofrimento a íntima associação entre fala espanhola e escrita espanhola (na que nos educámos os da minha geração e anteriores) com um novo problema: o da relação entre fala galega e escrita. De alguma maneira, ao lermos em espanhol já não “lemos” as diferenças entre escrita e fala, porque o verdadeiro Padrão está fortemente internalizado. Logo, o mais fácil e útil para as elites bilíngues preservarem o controlo do código foi o adaptarem este Padrão ao galego falado, escamoteando assim parte do compromisso que ainda segue pendente.
Há dous processos culturais relativamente recentes que podem ajudar a clarificar por que penso que a escrita galega dominante a fortiori se inscreve num mercado linguístico, o espanhol, no qual levará sempre as de perder. Primeiro: nos anos setenta começou, no campo da produção literária, um transvasamento de lealdades linguísticas desde o espanhol até às normas “de mínimos” e, logo, em muitos casos, até à norma de ILG-RAG. Este “passo para o galego” pôde estar motivado em parte por uma conscienciação político-cultural. Mas não se deve esquecer a dificuldade de estas pessoas para emergirem no panorama cultural espanhol desde a nossa periferia e continuarem, ao mesmo tempo, morando na Galiza. Isto é: em torno dum grupo de intelectuais que provinham (como provenho eu) da instalação diária no espanhol gerou-se um núcleo de poder e um ponto de referência cultural agora quase ineludível. Este grupo tem sido provavelmente mais influinte do que os mais velhos militantes linguísticos no espalhamento da escrita basicamente espanhola do galego e na sua constituição como padrão do mercado linguístico. Só uma minoria “saltou” directamente do espanhol para o português, ou evoluiu desde os “mínimos” até ao português padrão, onde agora exercem (exercemos) um tipo de identidade canalizada pela escrita dificilmente assimilável ao padrão linguístico-ideológico dominante.
O segundo processo a salientar é o da produção cultural mais recente, amplamente debatido nestas mesmas páginas. É significativa a falta de pudor de alguns para escreverem (e, sobretudo, das editoriais para publicarem) qualquer cousa com tal de que for “galego”. É significativa a falta de discriminação nos materiais educativos ou no agrupamento das obras nas colecções literárias. É significativa a existência (ainda!) de secções guetoizadas de “Galego” nas livrarias, ao par da “Literatura”, a “Botánica” ou a “Puericultura”. Mesmo as livrarias “de livro galego” reproduzem o esquema com as suas secções de “Portugués”. Por que tantas obras galegas (sobretudo de narrativa) abertas ao azar nas livrarias se nos caem das mãos? Quanto à poesia, dizem que o momento actual é melhor. Mas leve-se em conta que o florescimento da poesia pode indicar tanto a glória do idioma como o começo da sua desaparição oral.
Um acordo necessário? Definitivamente: o acordo do respeito e da amplitude de miras. Mas, enquanto os poderes linguísticos não assumam a sua responsabilidade histórica de convocarem também os reintegracionistas (professores, linguistas, escritores, activistas) para sentarem-se e falarem seriamente (embora daí não saia nada efectivo), muito seguirá a falhar na nossa política cultural, e seguirá a ser difícil distinguir qual é a nossa política cultural e qual a do Estado Espanhol. Aponta Xosé Ramón Freixeiro, no artigo que dá origem a este, que talvez dentro de trinta anos, se o idioma está assentado definitivamente, as gerações futuras poderão debater o adoptarem uma outra grafia (isto é, o português). Mas, que modelos terão estas gerações se durante esses trinta anos a grafia a adoptar não se praticou? E por que aguardar trinta anos?: alguns de nós fazemo-lo já. Podem acontecer muitas cousas daqui a trinta anos. No entanto, alguns reintegracionistas têm pelo menos a certeza praticamente total de escreverem galego numa grafia que não desaparecerá durante as suas vidas.
Em 1956 houve na China uma reforma esmagadora dos caracteres gráficos para simplificar o número de traços e a forma dos clássicos. A respeito desta reforma, o linguista William McNaughton apontou criticamente: “Os estudantes que apenas sabem ler as formas simplificadas poderão ler o que escreveu Mao-Tse-Tung, mas não poderão ler o que leu o próprio Mao”. Salvando as distâncias, e com perdão, os que só conheçam a norma de ILG-mínimos poderão ler, por exemplo, o que escreveram Otero Pedrayo ou Ferrín; mas não poderão ler ou nem sequer ter a possibilidade de identificar-se com uma parte importante do que os próprios Otero ou Ferrín leram: por exemplo os cancioneiros, Camões, Pessoa. E essa parte também é essencial (ou deveria sê-lo) para compreendermos a nossa cultura escrita actual.