História fóssil da língua

Publicado em A Nosa Terra 699, 9 Novembro 1995, p. 26

A paleontologia (o estudo dos restos fósseis e a sua reconstrução) topa-se às vezes com aparentes e formosos paradoxos. Por exemplo, numa ubiquação dada descobrem-se restos de uma espécie que existe durante um longo período de tempo, talvez milhares de anos. Logo, a espécie começa a esvaecer-se rapidamente, enquanto no mesmo lugar e no mesmo estrato geológico surgem fósseis de um animal muito semelhante ao anterior, com o que aquele coexiste. É a nova espécie herdeira da anterior? É diferente? Houve um elo perdido na evolução? Por que não se encontram, ao longo dos milénios, restos das duas espécies no mesmo lugar?

Com frequência, estes problemas têm uma singela solução: Havia uma raça de animais que ocupava com êxito o seu território. Por uma série de circunstâncias (mudanças climáticas, escasseza de recursos, superpopulação, invasões forasteiras) uns poucos exemplares migraram para outras zonas, digamos para além de um rio ou de uma cordilheira. Ali, adaptando-se ao novo habitat, desenvolveram traços particulares ou conservaram certos dos velhos de um modo muito homogêneo. Um dia, também por causas naturais ou fortuitas, os emigrantes encetam o regresso ao seu lugar de origem. Cruzam no sentido inverso a cordilheira, o rio, e ali encontram-se com uma raça de animais semelhantes: são eles mesmos, no passado! Presente e passado coexistem durante um tempo. Logo, talvez as características morfológicas dos dous grupos permitam a hibridação, o reencontro. Ou talvez os recém chegados, mais numerosos, se apoderem dos recursos dos outros e provoquem a sua extinção. Ou talvez aconteça o contrário.

Imaginemos que as línguas são animais antigos, e que os seus fósseis são os textos escritos. Os paleontólogos linguistas do ano três mil reconstruirão a história fóssil da nossa língua e encontrarão também um paradoxo. Durante vários séculos, no estrato geológico da chamada “Idade Média”, aparecem fósseis de um único animal linguístico a Norte e Sul de um rio. Logo, enquanto no Sul continua a haver achados do animal, no Norte subitamente a besta escrita extingue-se. No lugar que ocupava (os manuscritos, os códices e registos, as inscrições, os poemas, e logo os livros, as leis, os cadernos escolares) dominam agora os fósseis de outro animal chegado do Leste, de forma e hábitos semelhantes, mas sem dúvida pertencente a outra espécie: uma fera ávida, voraz, empreendedora, carnívora, que penetra século trás século nas letras e nos corpos, e mesmo salta os mares em manadas sangrentas para invadir outras terras e acabar com outras raças. Esta fera mesmo tenta cruzar o Rio da Infâmia para o Sul, e por vezes o logra. Mas afinal retrai-se para o amplo território que já domina, e ali permanece, bem alimentada.

Um bom dia, ao Norte do rio, e no estrato geológico nomeado “século dezenove”, saem à luz fósseis de uma cousa estranha. São tímidos intentos por existir no universo impresso, hibridações que mostram a instabilidade do que é novo. Os textos chamam-se a si próprios “galego”. Em que consiste este ser? A que raça pertence?, indagam os paleontólogos linguistas.

E, na sua pesquisa, os linguistas descem até ao “século vinte”. Trás árduas reconstruções de acentos e eñes, os linguistas concluem o assombroso. Reconhecem na nova raça aquela antiga, que dormira para fugir do extermínio. Mas agora, claramente mais débil, está tentando coexistir com os seus seculares opressores do Leste! Quer compartilhar com eles os mesmos alimentos escritos, morar no mesmo espaço, nos mesmos livros, confundir-se com eles nas mesmas páginas! E -o que é ainda mais notável- para isto imita exaustivamente os hábitos da espécie dominante, a sua conduta excluinte, auto-suficiente, até a sua aversão ou medo por bichos que habitam mais embaixo. “É um curioso caso de mimetismo suicida”, aventura algum linguista. “Quanto poderá durar?”.

E logo, por fim, surge o caos, o paradoxo, o começo do final. Nas capas geológicas da escrita, nos livros e registos, nesse território de saber que sempre perdurará nos tempos apesar dos Big Brother e dos Hitler, reaparece a espécie nativa que os linguistas criam extinta nessa parte do planeta. É o regresso dos dinossáurios, dos monstros! Claramente, o animal é o mesmo que se instalara hegemonicamente ao Sul do rio, e agora volta pesadamente ao território que é seu, que nunca deixou de ser também seu. Nas chairas e fragas das palavras reencontra-se consigo próprio, ou com algo muito semelhante a si próprio, embora enfeitado com signos e gestos do adversário. Ambos grupos de animais -nortenho e suleiro- mudaram, mas, com vontade, podem ser facilmente uma única espécie. Alguns exemplares de cada grupo emparelham-se, e deles nascem singulares misturas escritas minoritárias. Ao verem quem chegou, alguns nortenhos inusuais saem também das covas onde sofriam o desterro dos inúteis, a olfatarem essas letras diferentes com júbilo porque as reconhecem como próprias. Porém, a maioria dos animais do Norte gostam de emparelhar-se com os austeros grafemas dominantes (os seus verdadeiros competidores pelos recursos!), e surgem assim duvidosas gramáticas, tristes livros escolares, eslógans que cada vez se assemelham mais aos dos seculares adversários.

Daí em diante os paleolinguistas reconstroem lutas sangrentas no Norte entre as palavras dominantes e as proscritas e recém-chegadas: çês-cedilhados rotos, um til nasal obviamente destroçado em ataque grupal, enormes ossários de formosas terminações antiquíssimas. O espectáculo é cruel, devastador. “Olha cá”, observa um linguista do futuro, apontando para uma folhinha em ciclostilo desgarrada por dentadas, “a luta continua”…. E por alguma razão fica olhando para o infinito, como se tivera citado inadvertidamente uma das poucas frases do século vinte ainda com sentido.

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Às vezes, da união de duas espécies animais distintas nasce um bicho estéril. A questão é se o galego escrito dominante na actualidade é como um mulo: filho de cavalo e burra, ou de égua e asno, vive mentres vive e trabalha como o que mais. Mas, pode-se reproduzir? Na sua forma actual, poderá ocupar os mesmos territórios de saber que a espécie que o domina? Até onde chegará a hibridação com esta sem diluir-se nela? Que fósseis escritos encontrarão, neste breve estrato de umas décadas, os linguistas do futuro? Até quando poderão distingui-los dos restos espanhois?

A alguns linguistas do presente, de dentro e de fora, preocupam-lhes estas questões. Não são assassinos, nem suicidas, nem inimigos do próprio. Simplesmente, sabem que quando duas espécies escritas no mesmo território se parecem demasiado, uma delas extingue-se.