A única moral linguística

Enviado a La Voz de Galicia e não publicado • Publicado em «Galicia Literaria», Suplemento Cultural de Diario 16 de Galicia, nº 123, 23 Janeiro 1993, p. II

Duvidei se contribuir uma vez mais a este longo debate para ouvidos desatentos: o que gira ao redor da «normalização» do idioma galego, e que o jornalista Carlos Luis Rodríguez toca de novo na sua coluna «Coma en Irlanda, coma en Irlanda», (La Voz de Galicia, 6-1-93, p. 9). Talvez seria mais assisado calar, e poupar-lhe algo de lenha molhada ao lume jornalístico. Mas esta vez a imodéstia também me atacou a mim, como interessado e estudioso da construção do «galego» como língua.

O artigo do Sr. Rodríguez adoece, paradoxalmente, do mesmo escoramento ideologizado que contêm os textos dos activistas em prol do galego. Quando o autor qualifica de «batalla inútil» as propostas normalizadoras das organizações de activismo linguístico, concebe o problema da fala na Galiza como uma luta entre «línguas». Quando os activistas deploram a falha duma planificação linguística decidida, ignoram assim mesmo a grande conquista já realizada polos detentores do poder político e do saber técnico: a invenção do «galego» e o seu firme controlo simbólico. Que mais se poderia esperar das elites políticas, é algo que segue a se me escapar.

O conceito da «doble moral lingüística», aproveitado polo Sr. Rodríguez para criticar os intentos de institucionalização plena do galego, resume assim mesmo a ideologia linguística dominante no nosso país: existe uma cousa que se chama «galego», e existe outra cousa que se chama «espanhol». Para o Sr. Rodríguez, a «doble moral» radica na contradição existente entre os intentos normalizadores e o aparente crescimento quantitativo do uso do espanhol. Para os activistas, a «doble moral» reflecte-se nos «usos litúrgicos» do galego como idioma oficial frente ao uso dominante do espanhol entre os próprios administradores. Duas faces da mesma moeda: reduzir a variável realidade da fala a um dualismo «galego»/«espanhol» que pode nem ter relevância na vida diária não ideologizada.

Obviamente, existe uma grande diferença entre a formulação de Carlos Luis Rodríguez e o dos activistas linguísticos. Estes assumem, ainda que acriticamente, o seu papel histórico de vanguarda necessária, constantemente roçando as margens do território institucional e tentando de abrir fendas com propostas de defesa do galego que são sistematicamente rejeitadas. A maioria destas propostas são, em realidade, simples racionalizações dum que-deveria-ser sociolinguístico. Qualquer poder minimamente disposto a se aproveitar habilmente do capital simbólico potencial da «Língua» poderia assumi-las e executá-las sem risco nenhum. Fique aqui este convite à inteligência política.

O Sr. Rodríguez, muito polo contrário, não compreende a estratégica ubiquação das minorias activistas entre a sociedade civil e as elites de poder nas democracias formais ocidentais. Existe um medo a reconhecer que, anos atrás, eram sectores activistas como esses os que facilitaram que hoje podamos, de alguma maneira, falar em público. Plataformas de acção como a Mesa pola Normalización Lingüística ou os grupos reintegracionistas de base são necessárias enquanto o poder político não assumir as soluções práticas ao «problema da língua». E como o poder político nunca as assume de tudo, os activismos, por sua vez, continuam a ser necessários.

Entre tanto, cegos polo dualismo, todos os discursos (oficiais e alternativos, dominantes e subalternos) esquecem a verdadeira e única «moral linguística» (deveríamos dizer ideologia) que subjaz à Galiza de agora e à chamada Espanha de há vinte anos: a «língua» é uma realidade tão maleável que seria um erro histórico não capitalizá-la para construir identidade, esse requisito de pertença e sujeição do cidadão moderno ao aparelho de Estado. Através da «língua» (galego ou espanhol) somos, e entanto somos adquirimos os «deveres» e contentamos a nossa vapulada integridade com os «direitos» de falarmos e actuarmos duma maneira ou outra. A única moral linguística dos estados reflexa-se, assim, na transformação da fala como hábito em Língua estândar como emblema.

Por decência, contudo, devo confirmar que as línguas sim que existem: no laboratório do saber técnico, os linguistas descobrimos objectos distintos que chamamos «línguas», mas esses objectos nunca são exactamente o que se fala. Na Galiza, por exemplo, falam-se várias cousas que muitos linguistas adscrevemos só a duas categorias com o estatuto de «língua»: espanhol, e galego-português. Mas esse segue sem ser o problema. Também se poderia construir o espanhol falado na Galiza como «língua» independente, e esse seguiria sem ser o problema.

Qual é, então, o problema? Por que as elites políticas e culturais (e, com elas, as minorias ilustradas locais) não compartilham o exposto aqui e continuam a formular esta séria questão em termos dualistas e localistas?

Claramente, vê-se em primeiro lugar uma necessidade histórica de construir o galego como «língua» padrão, e para isto as elites políticas souberam peneirar o extenso e tradicional saber técnico sobre a não-independência linguística do galego, e souberam converter o saber restante em doxa dominante.

Claramente, além, as fronteiras entre as zonas de poder político e cultural e entre estas e a sociedade civil não estão ainda suficientemente afiançadas; há muito em jogo (não só economicamente, mas também territorialmente) no controlo do «galego» como instrumento de dominação simbólica.

E claramente, em terceiro lugar, existe uma intensa e desnecessária apreensão a conceber uma Identidade que não seja a «nossa» («galega» ou «espanhola»), e, correlativamente, a permitir que uma suposta Outridade (por exemplo, «portuguesa») poda se difundir polo nosso espaço ideológico e poda, com efeito, reconhecer-se como nossa.

Esta construção de identidade, por suposto, opera a níveis relativamente altos do piramidal espaço social, entre sectores reflexivos da elite intelectual, essa «fracção dominada da classe dominante», como a definira Bourdieu. Mas, na realidade, para muitos falantes não ideologizados da sociedade no seu conjunto, que empregam a fala diversamente para assim serem diversas identidades, a irlandesização do galego está tão longe como a madrilenização do espanhol. Se os poderes políticos compreendessem isto e assumissem as reivindicações linguísticas como histórica e eticamente lhes corresponde, asinha veriam como, de todas maneiras, muito poucas cousas se lhes escapariam das mãos.