Língua, Mercado e liberdade

Publicado no Portal Galego da Língua

1. A eliminação do coletivo

Num texto de 1998, Pierre Bourdieu (“L’essence du néolibéralisme”, Le Monde Diplomatique, Março 1998; acesso na Internet: http://www.monde-diplomatique.fr/1998/03/BOURDIEU/10167 ; existem traduções portuguesas como a de Informação Alternativa, http://www.infoalternativa.org/teoria/teo007.htm) lembra-nos o principal procedimento do liberalismo moderno (o duvidosamente chamado “neoliberalismo”, isto é, o ultraliberalismo que quer laminar as “conquistas” sociais e laborais) na sua procura da Utopia do Mercado: a extirpação gradual de todo o coletivo, amiúde com a rendida conivência das forças do progresso. A recente ofensiva discursiva de um setor do liberalismo programático español contra as políticas e legislações orientadas à manutenção (também programática) das línguas “españolas” não castelhanas do Reino pode ser examinada dentro deste contexto. Os discursos do fenómeno Galicia Bilingüe, o Manifiesto por la lengua común –com as aderências que obteve na Galiza– ou, sobretudo, o mais recente relatório do Club Financiero Vigo (CFV) exibem uma clara base argumental política compartilhada. Destes, o relatório do CFV, polo prestígio da sua fonte e polo debate que está a suscitar, merece ser comentado como paradigmático. O documento, com data 2 Setembro 2008, é editado em galego e em español, e intitula-se Política lingüística: Unha visión empresarial (Cadernos para o Debate 12) / Política lingüística: Una visión empresarial (Cuadernos para el Debate 12). Porém, na web do CFV na altura (9 Setembro) só está disponibilizada em PDF a versão em español, que é, consequentemente, a que utilizarei: http://www.clubfinancierovigo.com/archivos/archivo_333_2481.pdf. / http://www.clubfinancierovigo.com/cuaderno.asp?id=333&lang=es .

2. Uma contradição aparente

O relatório do CFV não é precisamente um rigoroso tratado de Sociolinguística, nem deveria necessariamente sê-lo: a conter variados elementos de discurso propagandístico, para a sua efetividade apenas seriam necessários certos argumentos bem sustentados para ele gerar alianças e para que, desde posições opostas, ele pudesse, polo menos, ser examinado com o necessário respeito burguês para a miragem do debate operar na nossa esquálida esfera pública. O problema geral é que, na sua glorificação da “libertad” individual de língua, tanto o relatório quanto outros textos dos mesmos setores –como se tem apontado noutras críticas– partem duma flagrante (mas só aparente) contradição. Detectá-la não deveria ser difícil, mas curiosamente para os españolistas parece sê-lo.

A contradição é a seguinte: Se, como diz o relatório, só os indivíduos têm línguas “propias”, e portanto direitos linguísticos (“partimos de la base de que no son los territorios los que tienen lengua, sino las personas”, p. 8; “No son los pueblos los que tienen lengua, sino las personas” p. 11), então não pode existir a “lengua común”, quer dizer, o español como tal “nexo de unión” “común” (p. 13) desta “casa común en la que vivimos muy a gusto” (p. 12) . A diferença do Estado Español como “casa” em que, com efeito, vivemos todos e todas, não todos e todas temos o español como língua.

Mais claramente, se os coletivos não têm língua, é igualmente contraditório afirmar que “la historia (…) demuestra que el progreso económico de las naciones ha ido al mismo ritmo que la expansión de su lengua” (p. 13; destaque no original), porque essa língua, ainda maioritária, não é propriedade da “nación”(não é “su lengua”), mas das “personas”. E, de maneira duplamente contraditória, também não se pode qualificar o español como “también lengua propia de Galicia” (p. 14).

Em resumo, por definição o español não pode ser a língua “común” daqueles españóis individuais que não a têm como “propia”, e também não pode ser a língua “propia” de España ou da Galiza. Não se pode construir o comum a partir da individualidade diversa. Pode-se construir o “mayoritario”, o “dominante” ou o “democrático” (que no discurso liberal é o mesmo; veja-se o Manifiesto por la lengua común), mas não o “común”, que é o compartilhado por todas as “personas”.

3. Lei e direitos no discurso liberal español

Mas na realidade não existe tal contradição no discurso programaticamente liberal español relativamente às línguas do Estado. A explicação é que, em afastamento do ideário liberal e de tudo o que proclamam sobre a liberdade individual, para eles a “nación” pré-existe essencialmente ao indivíduo e ao cidadão, e de fato só há uma “nación” possível: a España. Os liberais españóis, incluídos os ultraliberais atuais, sempre foram antes españóis do que liberais. Por isso, é da “nación” (não da “persona”) que emana, essencialmente, o escopo do “común” e do “particular”, e é em função da “nación” que a dimensão individual (também a liberdade) obtém o seu sentido. Assim, cada amostra de liberdade individual que harmoniza com a vontade da “nación” España (no linguístico ou no cultural) é para este discurso manifestação paradigmática e exemplar do “común”. E cada ato de liberdade linguística individual que não harmoniza é amostra irreduzivelmente variada do “particular”. O gambito para-lógico é velho e aplica-se a muitas outras condutas sociais na sociedade democrática moderna relativamente ao funcionamento das “minorias” e das “maiorias”, mas no nível da propaganda amiúde funciona, embora, se reparamos bem, esta lógica terrorize argumentalmente o próprio edifício liberal: se em nenhum caso o español pode ser “particular”, mas só “común”, ser español ou ter o español como língua não pode ser um exercício de liberdade (ser basco ou galego ou ter as línguas respetivas sim, e daí a luta dos liberais españóis contra a liberdade doutrem).

E é que a débil base desta distorção entre o “común” e o particular no relatório do CFV é a deliberada equiparação entre a Lei e as práticas linguísticas reais. A realidade social (não a Lei) mostra que a língua española não é conhecida por cada pessoa, ou que, ainda sendo conhecida, em muitos casos é rejeitada pola liberdade individual de não querer conhecê-la. Por isso, quando o relatório –como tantos outros textos– nos lembra que “la Constitución Española recoge en su artículo 3, que el castellano es la lengua española oficial del Estado y que todos los españoles tienen el deber de conocerla y el derecho a usarla” (seção “Marco jurídico”, p. 9; destaques no original), ele não está a construir essa glorificada “persona” como sujeito livre, mas como súbdito dum Estado que, além, impõe algo literalmente contrário à Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH):

DUDH, Art. 29.2: “No exercício destes direitos e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pola lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática”.

Isto significa que o inquestionável direito dos español-falantes a conhecerem e utilizarem o español em nenhum caso pode ser articulado polo Estado Español como a imposição de limitações aos não-falantes de español na sua liberdade e direito de não conhecê-lo nem utilizá-lo.

Mas os liberais españóis, em lugar de questionarem uma imposição legal que portanto não é reflexo das multíplices vontades (liberdades) individuais dos cidadãos e cidadãs (nem protege estas liberdades), assumem de novo que são os atos de liberdade individual que se devem adequar à voz constitucional de uma España imaginariamente monolingue, essa voz que cumpre agora 30 anos como tal, mas que foi enunciada diariamente durante longas décadas de Fascismo sem solução de continuidade neste aspeto.

4. O galeguismo linguístico, braço executor da Constitución

Em contraste com o discurso liberal español, o discurso galeguista da língua, também constitucionalista, é polo menos mais coerente na sua sublimação da “nación”. Para este discurso, existem os direitos e liberdades individuais, mas a “lingua galega” é também “propia” da Galiza (comumente “Galicia/Galiza”, sem artigo) como sublimação coletiva. E nestes tempos “Galicia/Galiza” ordena por lei que aos jovens, enquanto sejam utilizadores do sistema educativo nos seus níveis obrigatórios se lhes ensine (não que os jovens estejam obrigados a utilizar) o galego não apenas como gramática mas como instrumento simbólico de teórica capacitação para a cidadania (ver mais adiante o artigo 27.1 da DUDH). Claro que esta “imposición” gera reações contrárias naqueles que baralham com mais abundância o vocábulo “persona” do que o vocábulo “ciudadanía”. Mas, na melhor tradição democrática da tolerância, a Galiza galeguista constitucionalista deveria habituar-se com toda a normalidade à existência de cidadãos galegos dissidentes (como os do fenómeno Galicia Bilingüe), e tratá-los em consonância: escutá-los, dialogar sobre as suas preocupações, procurar compreender por que não querem saber galego, mas afinal explicar que a Língua, sim, como veículo da vontade coletiva, deve imperar sobre a liberdade de não querer estudá-la.

Singularmente, assim, é a Xunta qua Estado Español na Galiza que se torna, por deslocamento, no coerente braço executório do mandato constitucional de tentar fazer “conhecer” a Língua. Porque, se a Língua dum Estado reconhecido como diverso até na Constitución Española e veículo instrumental da cidadania livre é algo tão extremamente essencial e prioritário que deve ser conhecida por toda a cidadania, inclusive por cima da liberdade individual de não querer conhecê-la, não será pola trivialidade de que a Língua tome esta ou aquela forma, isto é, a gramaticalmente española ou a de uma outra das várias línguas igualmente “españolas”. A obrigatoriedade responderá, antes, a que a Língua assim entendida é um imperativo essencial e intemporal, é pura Linguagem ou antiga estrutura profunda, capacidade mental (e não prática) das “personas” dum Povo que precisa ser coerido. E resulta que nesta parte do Estado Español, nesta precisa nación também española que é “Galicia/Galiza”, a forma gramaticalmente “propia” que toma a Língua (isto é, a Linguagem constitucional) é o galego, não o español. Portanto, aprendendo galego talvez a cidadania não esteja a aprender a forma trivial da língua (com minúsculas) española, mas sem dúvida estará a aprender a Língua essencial da Nación essencial, que é o que no fundo pretende a Constitución Española.

O paralelo com o tratamento jurídico da cidadania é claro: Se a forma que a “persona” e o “ciudadano/a” (isto é, a/o “español(a)”) toma em “Galicia/Galiza” é a de ser galego ou galega (é cidadã galega e portanto española qualquer pessoa residente na Comunidade Autónoma de Galicia), então a forma da obrigatória Língua constitucional poderá perfeitamente ser a “lingua galega”. Não sei por que os liberais constitucionalistas de identificação española se opõem a que a sua própria Língua (a Linguagem da Constitución) seja aprendida (eles dizem “impuesta”) no sistema educativo galego, isto é, español. Em lugar desta reação, poderiam argumentar singela e explicitamente que, na sua leitura do mandato constitucional, a língua superficial a ensinar e “imponer” deveria ser o español. Mas, em qualquer caso, reclamar um 50/50 para cada uma das línguas na Galiza é ir contra o espírito da Nación, pois significa fragmentar a “sua” Língua (seja qual for a sua forma gramatical “española”).

Da mesma maneira, e sem dúvida mais claramente, para os liberais permitirem que na Galiza sejam os pais quem “decidan en cuál de las dos lenguas oficiales (español o gallego) deben ser educados sus hijos, impartiéndose la otra lengua como materia obligatoria” (“Nuestra Propuesta” no relatório do CFV, p. 18) implica também uma destas duas contradições: ora (a) reconhecerem que ainda com o galego como língua do sistema educativo obrigatório se respeita o mandato constitucional de “conocer” a Língua (e que, portanto, a “imposición” geral do galego também não afetaria direitos e deveres constitucionais fundamentais, polo que toda a referência à Constitución é supérflua); ora (b) aceitarem passivamente que aqueles setores da cidadania que optassem livremente polo ensino em galego para eles ou os seus filhos deixariam sem cumprir com impunidade o seu dever constitucional de “conocer” o español, que o ensino do galego não poderia garantir. De duas, uma. Ou as duas.

5. Imposições educativas e cidadania

O relatório do CFV, além, é signo evidente daquilo que também Bourdieu revelou claramente em numerosos textos (e também neste “A essência do neoliberalismo”, p. 1): que o sistema educativo democrático é o processo seletivo de preparação e de produção da força de trabalho. O discurso liberal español, nos Manifiestos e relatórios, quer intervir assim dentro da própria maquinaria do Estado que programaticamente declara como um simples gestor obsoleto e, quando lhe interessa (como em tantas outras ocasiões), rebela-se contra a própria cidadania que expressou a sua vontade alçando um partido ou uma coligação de partidos ao governo.

O feito é que na Galiza o Estado Español (o governo e o parlamento da Xunta), nas competências de que o dotou a própria cidadania, está a desenhar uma política linguística educativa de (pretensa) manutenção do galego a meio da sua futura dominância no ensino, enquanto, simultaneamente, se continua a ensinar o español. Os liberais chamam isto “imposiciones” (apoiando-se retoricamente em palavras de Touriño e de Quintana também contra as “imposicións” linguísticas, p. 19), querendo esquecer que não privilegiar o galego é outra “imposición” (a do español), e que o Estado Español (a Xunta) tem a obriga de oferecer (segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos) os mecanismos capacitadores para que os jovens sejam cidadãos, isto é, possam dominar os recursos que os levem a ser cidadãos livres, ainda contra a sua livre vontade jovem de não desejarem tal capacitação:

DUDH, Artigo 26.2: “A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos humanos e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz”.

DUDH, Artigo 27.1: “Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam”.

A diferença, porém, entre a “imposición” da Xunta e a imposição constitucional é clara: a Constitución Española impõe um dever de conhecimento a toda a cidadania, enquanto a política educativa da Estado Español na Galiza impõe a obrigatoriedade do ensino do galego e em galego nos níveis educativos obrigatórios para os jovens terem a oportunidade de ser, precisamente, cidadãos nacionais españóis.

6. O galego e o valor de mercado

Claro que, na sua preocupação pola política educativa da Xunta, o CFV revela de maneira límpida como vê na realidade o que chama “ciudadanos”: como força de trabalho em potência que não deve perder o tempo dominando o galego em (pretenso) detrimento do español. Na secção “Lengua y economía” (pp. 12-14), o relatório do CFV fala explicitamente do valor de mercado das línguas, nomeadamente do español. (Incidentalmente, é impressionante constatar quanto aprendeu o Capital do materialismo que nasceu para acabar com ele, até o ponto de que quem melhor aprendeu as ensinanzas marxistas sobre o funcionamento do Mercado foi a Escola de Chicago). A rejeitar tão claramente que o galego possa ser veículo dominante do ensino (enquanto o español não se perde), o discurso liberal realmente está a dizer que o galego não tem valor de mercado.

Seria útil para o debate civilizado se o discurso do CFV e outros, em lugar de divagarem sobre a importância folclórica do galego, disessem exatamente isso de maneira transparente: que o galego não tem valor de mercado. Calculo, até, que muitos sociolinguistas e ativistas culturais concordariam. O problema é que esta declaração forçaria os setores programaticamente liberais a se posicionarem para esclarecerem publicamente duas importantes questões.

A primeira é, de novo, uma outra aparente contradição. Porque, se o Mercado livre manda, como máquina de movimento perpétuo onde apenas se atualizam as liberdades individuais (de compra e de venda; de troca material; em definitivo: de cousificação, embora os liberais não sejam capazes de dizê-lo, por pudor), então, que importância teria que o galego chegasse a ser mesmo o veículo dominante em todos os níveis educativos obrigatórios, e inclusive que neles se deixasse de ensinar español? Afinal, o Mercado livre (também o da língua) continuaria a mandar, autonomamente, e faria com que o galego adquirisse valor ou não, à margem de que a política interviesse ou não nele. Por acaso não aconteceu assim durante décadas com um español “impuesto” no sistema educativo, e não por isso agora os liberais españóis negam que o galego possa chegar a ter valor de mercado? De fato, é argumento repetido deles que o galego se manteve apesar da imposição do español durante o Franquismo. Por que não se poderia repetir agora o mágico fenómeno no sentido inverso?

A segunda questão que este liberais galego-españois se veriam forçados a esclarecer explicitamente, se é que o galego não tem valor de mercado (caso, claro, que eles tenham um compromisso social além do compromisso com o benefício e o Capital), é mais crucial: O quê fazerem, então? Colocarem as bases para que o tenha? Ou deixarem que continue sem tê-lo?

Evidentemente, aqui o liberalismo español tem a batalha discursiva perdida, porque as forças nacionalizadoras galegas (tanto as que estão presentes nas instituições quanto setores civis e de base) proclamam que querem fazer o segundo. O liberalismo español não se pode permitir enunciar o fundamento do seu discurso: que não convém economicamente promover o galego como Língua com valor de mercado, sobretudo porque (como acontece com a ilegalização arbitrária de outras “drogas ilegais”), não é seguro quem terá afinal o seu controlo.

Mas –não nos enganemos– nesta prevenção os españolistas não estão sós. Exatamente da mesma maneira, o galeguismo não quer permitir que o ilegal “português” tenha valor de mercado porque também não tem o seu controlo.

7. Conflito entre discursos

Que o relatório do CFV tenha gerado polémica no próprio seio do organismo é índice deste confronto entre setores: nomeadamente, entre os liberais de identificação española e os conservadores de identificação galega. Porque, não o esqueçamos, a manutenção da “lingua propia” do país (o galego) como recurso simbólico e económico potencial ligado a um imaginário coletivo seria, em teoria, uma política extremamente conservadora: intervencionista e conservacionista. De fato, assim aconteceu sempre com o español na España.

Polo contrário, a promoção na Galiza da língua de apenas uma parte das “personas” galegas (o español) e de uma outra língua estrangeira (o inglês) que nem sequer é de “personas” do país parece puro aventurismo. Como se vai fundamentar uma política económica sólida na promoção unicamente de uma língua que é de “personas” que a escolhem livremente, com todas as flutuações que essas vontades individuais possam ter? Se a língua española é só de personas” de “Galicia/Galiza”, e não propriedade duma inexistente coletividade, como vai ela garantir ser um útil instrumento de “desenvolvimento económico” (isto é, de acumulação de capital para uns poucos e de precariedade laboral para a maioria)?

Se calhar, para riçar mais o riço, talvez resulte que nestes tempos de chamada “mundialização” é a política linguística liberal que é conservadora, e a política nacionalizadora galega que se revela como potencialmente liberal. Isto pode parecer, de novo, argumentalmente revirichado, mas real. Vejamo-lo.

O relatório do CFV outorga ao español e ao inglês o papel de línguas prioritárias da nova economia mundial. Perante a “globalização” do capital, o CFV e certas empresas galegas que apoiam esta política linguística bilingue español-inglês (por exemplo, Aguas de Mondariz, http://www.agal-gz.org/modules.php?name=News&file=articlecomments&sid=4617) aplicam a fórmula tática conservadora que se tem demonstrado como mais inútil para a criação de capital dinâmico galego, pois é uma política baseada numa falácia e num mito. A falácia é a do pretenso papel positivo do español para facilitar a necessária mobilidade social ascendente interior de classe (não de renda) na Galiza, mobilidade que deveria dar como resultado a criação de capital. A realidade é que na Galiza não é a assimilação ao español que dá mobilidade social ascendente de classe, singelamente porque esta mobilidade praticamente não existe no nível estrutural (não há “dinamismo” de capital gerado na Galiza; antes, há contínua absorção por capital estrangeiro). O mito, por sua parte, é o da “utilidade” do inglês para a projeção internacional deste capital, sobretudo porque, por muito que se ponha antes o carro da língua inglesa do que os bois do capital próprio, o veículo não vai andar: se não há nada a vender fora, não pode ser nem em inglês nem em español.

Polo contrário, e de maneira complementar, o intuito de internacionalização do galego como Língua com valor de mercado (para o qual é imprescindível a sua institucionalização como capital cultural no sistema educativo, mas, evidentemente, como propõem os “lusistas”, sob uma forma padronizada portuguesa adequada para a troca simbólica internacional, ainda ausente na Galiza exceto em reduzidos domínios sociais), responde mais a esse ideal quase mágico da “mundialização” com os seus diversos e libidinosos “fluxos” transcontinentais. Os empresários galegos deveriam saber que, como o mundo árabe, o Brasil também tem petróleo.

A hipotética internacionalização do galego como português (como a internacionalização do árabe, ou a do chinês mandarim), pode, inclusive, revelar-se como uma tática mais inteligente para que até os setores liberais (estes ou outros futuros) internamente se apropriem pouco a pouco da língua e possam chegar, nalguma altura, a chamá-la a “língua comum”, que então poderá emanar discursivamente, de novo de maneira essencial, da “nação”, isto é, dessa poderosa metonímia que no discurso do Capital resume os seus interesses de classe. De fato, esta construção Língua-Nação-Mercado já está presente na maneira em que setores inteletuais reformistas galegos tratam o português galego no mercado simbólico, embora o seu lugar no mercado económico seja marginal. E há também elementos disto no crescente interesse pola aprendizagem do padrão português na Galiza por parte de cidadãos e cidadãs muito livres mas igualmente cegados pola miragem do Mercado.

8. Galiza, essa Empresa

Bourdieu adverte no mesmo texto (ou assim o interpreto eu) que, em tempos de ofensiva ultraliberal com um “programa político” (não apenas económico) conduzente à “destruição metódica dos coletivos” (destaque no original), paradoxalmente são as “forças de ‘conservação’, que são fáceis de tratar como forças conservadoras”, as que mais podem contribuir para a preservação dos imaginários e das instituições, e portanto, do sentido do social contra a “utopia ultra-lógica” teoricamente individualista do Mercado. E, suponho eu, o que o autor quer dizer nesta zona ambígua do seu discurso (e também nalgum lugar de Acts of Resistance: Against the Tyranny of the Market. New York: New Press, 1999) é que neste contexto a resistência socialista (ou comunista, ou coletivista: a resistência da força do trabalho) terá que aguentar alianças com as “forças da conservação” para impedir o retrocesso do que se denominam (por Bourdieu também) as “conquistas sociais” da força de trabalho no sistema capitalista. De novo, em tempos de “crise” (que no capitalismo é um resultado cíclico estruturalmente determinado), a política linguística de conservação do galego como um recurso “propio” (frente ao gloto-darwinismo liberal) ligado a estruturas coletivas também “propias”, pode resultar mais mundializadora e mais libidinosamente fluxificante, e pode gerar mais “dinamismo”, do que o esclerótico bilinguismo español-inglês (e que inglês!) do liberalismo españolista.

Na realidade, isto é o que estão a dizer já alguns setores do poder político. Porque, como concluíu o nosso Vice-Presidente Anxo Quintana na sua reveladora Tribuna ou “Almuerzo Coloquio” quando foi convidado no mesminho Club Financiero Vigo em 15 Julho 2008 (O cambio en Galiza e a Galiza do cambio, Papeles CFV n1 37, http://www.clubfinancierovigo.com/archivos/archivo_328_9426.pdf ):

“O galeguismo [=o conservadorismo dominante na altura no BNG] sinala nitidamente a liña da fronteira respecto daqueles que pensan que Galiza só ten futuro como unha administración descentralizada e supeditada ás directrices do Estado [=o liberalismo do PSdeG-PSOE] e daqueles outros que cren que Galiza é unha realidade histórica que unicamente ten pasado [=o liberalismo españolista do PPdeG].

Somos unha [sic] país [isto é, talvez “unha nación”, depois corrigido] con historia, pero Galiza ten un autogoberno presente [=o “propio”] que é un instrumento para construír o noso futuro en termos de benestar [=”conquistas sociais”], desenvolvemento produtivo [=acumulação de capital] e normalización cultural [=”imposición” do galego como Língua]. O proxecto de presente e futuro do noso país defínese ao redor de todos os galegos e galegas [=”contrato social”] que cren e confían nas capacidades [=”dinamismo” do capital] de Galiza” (p. 4).

A ver se me inteiro. Por acaso não será o galego simplesmente a forma galega da “lengua común” cujo conhecimento algumas forças nacionalizadoras também quiseram fazer obrigatório em “Galicia/Galiza”? Ah, Galiza, essa grande Empresa!

Em qualquer caso, tudo isto não é o que opino eu, mas o que posso ler nos discursos do capital. Isto é, no Discurso do Capital, o único que conheço que se enuncia a si próprio, com duas cabeças e duas bocas, de duas maneiras complementares.