Publicado em Vieiros
Periodicamente, surgem à palestra pública das minorias que lêem, e que lêem sobre cultura, notícias em torno das afrentas ao “galego”. A pseudo-polémica social alimenta a incapacidade histórica colectiva de articular-se em verdadeira in-dependência (que é etimologicamente sinónimo de autonomia), se é que na realidade a Galiza como invento alguma vez a teve, e não foi, em troca, o germolo “espiritual” e social de España, desde o mito do patriótico Apóstolo até ao actual Regime das Autonomias, passando pola política galeguista de Fraga Iribarne ou polo filme Raza de Francisco Franco. Só este papel explica, por exemplo, que a Matriarca literária duma “nação oprimida” (Rosalia de Castro), a mesma que o galeguismo recuperou como símbolo nos anos 1960, se estudasse com toda naturalidade nos livros de texto oficiais da fascista “nação opressora”. So este papel explica que o mesmo dia dum Apóstolo Patrono de España seja o dia duma Pátria galega.
Desde polo menos os anos 1970, as hemerotecas e os arquivos sonoros e audiovisuais estão cheios de documentos de pessoas visíveis no mundo cultural galego que testemunham uma dupla trajectória de significados, aparentemente contraditória mas perfeitamente compatível: (1) por uma parte, o laio pola “perda” do galego e, polo tanto, os protestos contra as barbaridades jurídicas e políticas de España (leis recorridas ou impugnadas, declarações monstruosas, políticas linguísticas laminadoras); e por outra, (2) a confiança, porém, de que o caminho da “normalización lingüística” é o adequado, de que há signos positivos na literatura, nas artes, na cultura em geral, no ensino, até na empresa… A circular auto-justificação perante esta aparente contradição é fácil: Precisamente porque o caminho está bem traçado (discurso 2), dão-se os ataques de España (discurso 1); e precisamente porque os ataques se dão (discurso 1), devemos continuar no caminho bem traçado (discurso 2). E esta lógica absurda auto-alimenta-se, num eterno solipsismo característico da cultura galega desde tempo imemorial. Um parece estar a ler sempre os mesmos textos, as mesmas diatribes e protestos, as mesmas louvanças e proclamas, num contexto social invariável, imóvel e por isso terrivelmente pacífico. Assistimos, verdadeiramente, ao triunfo do ideal centralista da Galiza como uma Arcádia (espanhola mas galega, sem dúvida; até muito galega, como deve ser: espanholamente galega) onde nada de relevância social acontece (só lumes, vacas loucas, terramotos e piche) e, quando decerto acontece (como de Fevereiro a Julho de 1936), massacra-se exemplarmente com metralha, e pronto. A morte, não as letras: trata-se da morte.
Mas pouca gente parece parar a pensar que, se esta é a dinâmica do campo cultural galego excepto no breve parêntese prévio ao Massacre Galego também chamado Guerra Espanhola, e se colectivamente as elites não mudam de rumo, talvez seja porque algo está errado na concepção canónica do conflito nacional, “España contra Galiza”, que é a que o nacionalismo galego apresenta como mitologia explicativa final de todos os nossos males. Quando as próprias elites galegas geram tanto as políticas “em favor” do galego (um irrealizável, descabido, hipócrita e portanto unânime Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega, por exemplo) quanto os instrumentos “em contra” do galego (as nomeações conflituosas, as cedências, as políticas marginadoras de parte do campo cultural galego), talvez a explicação mágica seja que, além das suas vontades políticas sustidas por um imaginário ideológico herdeiro do pretenso galeguismo de resistência durante o Franquismo, na verdade o seu papel estrutural não seja outro do que a definitiva construção nacional de España (sim, com Eñe, com esse profundo eñe subsidiado no que pensam sempre os políticos e as editoras). Evidentemente, estas elites não estão a construir a España de Pelayo ou de José Antonio, mas a España galega originada no mito do Apóstolo biface e mantida ano após ano nos Dias da Pátria onde se proclama com toda a impunidade a necessidade do uso do galego enfrente dum arcebispo, da representação do Reino de España e dos seus exércitos.
Porque, não nos enganemos, as três forças políticas parlamentares na Galiza na altura são herdeiras do galeguismo da pós-guerra. O abano ideológico do galeguismo da pós-guerra era amplo, e está todo representado, com contadas excepções, em sectores dos seus sucessores naturais do BNG, o PSdeG-PSOE, e o PP de Galicia. Não há qualquer cousa de extraordinário nisto, porque, por definição, a perpetuação no poder acarreta a exclusão sistemática –até por vias dum regulamento eleitoral aberrante desde qualquer concepção democrática racional– dos rivais potenciais, isto é (por exemplo), do in-dependentismo no seu sentido mais frontal: o da auto-nomia na gestão (quer dizer, a auto-gestão) dos recursos económicos, culturais e simbólicos, na organização social e territorial, no estabelecimento dum quadro de relações laborais emancipador, na implementação, simplesmente, da liberdade social na medida em que esta pode ter lugar dentro dum Estado.
O que pode gerar quanto à língua, portanto, uma classe de elite galeguista que continua sem ver o seu papel na construção final de España? Mais do mesmo. O que se pode esperar de uma classe política que é capaz de impor legislação progressiva em matéria urbanística ou de direitos das mulheres mas refusa entrar nos salões de aula “concertados” onde professorado e estudantes urbanos escacham a rir do “galego” enquanto os curas e monjas destas madrassas recebem mensalmente os seus quartinhos da Xunta pagos por nós? O que se pode esperar dum governo público que, por enquanto, ainda hoje, numa cultura amplamente subsidiada, continua a negar com toda a impunidade uns miseráveis euros a modestas publicações e grupos culturais activistas por mor dos “ç” ou dos “ão”, como se estas letras fossem as inimigas da Patria (sem acento), como aconteceu à revista Novas da Galiza? Pode-se esperar, singelamente, mais do mesmo: um incessante e cansativo tira-puxa dialéctico, uma perda geral de energias na ilusão de diálogo, uma constante reavaliação da “correlação de forças” entre um e outro campos linguísticos, e, em resumo, uma perpetuação da Grande Miragem da língua, enquanto cada decreto da Xunta continua a levar a assinatura de Juan Carlos I de Borbón e o arcebispo católico de España dialoga ritualmente com a Presidenta do Parlamento galego e não se encontra um livro português de cultura geral nas bibliotecas. O que se pode esperar, em definitivo, da política linguística dum pedaço do governo español (porque a Xunta é España) que em 30 anos, com todo o aparelho mediático e institucional, com todo o dinheiro e todos os subsídios, foi incapaz (se é que o procurava) de ensinar até a ortografia española do galego nas escolas, isto é, a mesma lógica ortográfica da língua socialmente dominante?
Não sei o que se pode esperar, mas sei o que não se pode esperar: Nunca uma instituição espanhola vai normalizar Galiza como Galiza. Normalizará Galiza como “España” exclusivamente e exclusoramente, até ao ponto de que antes ou depois Galiza deixará de ser Galiza em galego, se continua esperando a salvação das instituições espanholas. Não o disse eu (eu quase nunca digo nada novo: apenas observo e documento o que leio). Disse-o António Gil Hernández em 1991, por exemplo. E já choveu. E continuará a chover sobre esta formosa e vacacional Arcádia, tangallegacomoelmarisco.