O mercado linguístico e o futuro da escrita

Publicado em A Nosa Terra 712, 8 Fevereiro 1996, p. 26

O meu colega Xosé Ramón Freixeiro convida de novo a reflexionarmos sobre as relações entre fala e escrita no nosso país, isto é, sobre as opções gráficas para o idioma (“A voltas coa norma lingüística na procura dun necesario pulo normalizador”, A NOSA TERRA 706, pp. 26-27). Basicamente, Freixeiro propõe um acordo que elimine as pequenas diferenças entre as normas majoritárias nas instituições (as do Instituto da Lingua Galega-Real Academia Galega, ILG-RAG) e as chamadas “de mínimos”. Tomo-me a liberdade de recolher a oferta de Freixeiro para sugerir, de primeiras, que a sua proposta (que está já na mente de bastantes utentes da escrita do galego) não resolve os vários problemas de fundo. Quero explicar em que me baseio para pensar assim. Começo cada apartado com umas afirmações gerais sobre as relações entre fala e escrita nas sociedades alfabetizadas.

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História fóssil da língua

Publicado em A Nosa Terra 699, 9 Novembro 1995, p. 26

A paleontologia (o estudo dos restos fósseis e a sua reconstrução) topa-se às vezes com aparentes e formosos paradoxos. Por exemplo, numa ubiquação dada descobrem-se restos de uma espécie que existe durante um longo período de tempo, talvez milhares de anos. Logo, a espécie começa a esvaecer-se rapidamente, enquanto no mesmo lugar e no mesmo estrato geológico surgem fósseis de um animal muito semelhante ao anterior, com o que aquele coexiste. É a nova espécie herdeira da anterior? É diferente? Houve um elo perdido na evolução? Por que não se encontram, ao longo dos milénios, restos das duas espécies no mesmo lugar?

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The Korunya: História de nove cidades

Publicado em A Nosa Terra 681, 6 Julho 1995, p. 24

Nove Partidos Ortográficos disputam o controlo simbólico de uma vila grande com espírito de cidade pequena, ou vice-versa. Controlar um nome é na realidade controlar o seu referente (são o mesmo país Galiza e Galicia?). As letras significam ideologicamente muitas cousas, num acto de subtileza tal que deixaria pasmado a qualquer alienígena de linguagem binária. O famoso da flamante presidência espanhola na Neouropa é claro índice da vontade de identidade estatalista: esse til originado no ñ não representa nem a bascos, nem a catalães, nem a galegos. O símbolo oficial e exclusivo do catalanismo é a insólita grafia l·l (paral·lel); o do basquismo, tx (txapela); o do galeguismo oficial (surpreendamo-nos), o ï de formas verbais como saïamos. O símbolo exclusivo dos portugueses e de muitos galegos invisíveis é, obviamente, o ã da razão.

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Em favor de Babel

Publicado em A Nosa Terra 670, 20 Abril 1995, p. 24

Aos represaliados e invisíveis

O chamado «mito de Babel» é sem dúvida um dos instrumentos mais nocivos entre os gerados pola ideologia cristã para impor uma unidade que não temos, e uma das suas falácias mais insidiosas para impedir o raciocínio. A interpretação dominante diz que um deus castigou às gentes pola soberba de quererem ser como ele, e, desde então, fez-lhes falar de maneiras diferentes. Uma leitura alternativa é que já antes de Babel as gentes falavam e escreviam diferente, mas entendiam-se. Foi precisamente o seu projecto comum de se unirem livremente para alcançarem as alturas do saber o que ameaçou o poder desse deus medíocre, inseguro, mesquinho, vingativo, um deus que não merece ser deus dos mortais que queiram ter um deus.

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Triunfo da democracia, martírio da palavra

Publicado em a A Nosa Terra 668, 6 Abril 1995, p. 14

Para aqueles de nós que vivemos uma época na que poucas palavras careciam ainda de sentido, o terror democrático actual supera as mais imaginativas previsões. Muito mais insidiosa que o fascismo patente –e portanto combatível–, a democracia formal nega-nos mesmo a possibilidade de conceber a revolta, formoso termo dormido entre as pregas da nossa adolescência de acne, algo de Lenine, Tintin e assembleias de distrito. A guerra civil actual entre os mercenários das direitas espanholas, com as comparsas voyeuristas da ilusa minoria de esquerdas e a constante supervisão do exército, confirma a absoluta consolidação da democracia no estado e o patético caminho descendente que ainda nos tocará percorrer ajoelhados só para nos deter pontualmente a introduzir molhadas papeletas ilegíveis nas morbosas urnas oficiais de onde sai um fedor a palavras putrefactas e liberdade assassinada. Os numerosos «casos» judiciais actuais, nos que se misturam a intriga de sauna escandinava, o Perry Mason, a China dos mandarins e o Interviú de sobremesa, são o elemento que lhe faltava ao Estado Espanhol para se homologar com o mundo mal civilizado. Como a Itália recente, como Bélgica, como os Estados Unidos de Al Capone, da Lei Seca e dos sindicatos desmobilizados, como a Índia de Gandhi e Neru ou como a Alemanha de Baader-Meinhoff, durante os últimos vinte anos as forças institucionais do estado espanhol, desde o Fraga Iribarne de Gobernación até o dúctil Belloch e o ávido Paco Vázquez, ajuntaram com êxito as miúdas peças da maior operação de alienação e derriba da esperança jamais concebidas. É apavorante compreender que têm mais crédito as palavras dum polícia chulesco do que as dum presidente com sarro. É triste aceitar que o gesticuloso discurso jornalístico supra a reflexão e o debate diário entre as gentes. É aterrador confiar como recurso no mesmo sistema judicial que mantém nos cárceres a miles de réus agonizando com SIDA. Mas é inclusive mais pavoroso assumir que às vezes, talvez várias vezes ao dia, chegamos a pensar que esse magoante país é o nosso.

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Elites lusófonas? Oui, merci

Publicado em A Nosa Terra 653, 22 Dezembro 1994, p. 28

Hoje fui ao Corte Inglês e comprei os quatro compactos do cativante grupo português Madredeus. Não sei que me satisfaz mais: a sua música ou o elitismo de saber que, entre escrito e escrito ou entre cigarro e cigarro, ainda tenho tempo de escutar. Enquanto sigo as letras impressas, encanta-me também pensar que não lhe se entende tudo à solista de primeiras porque é cantado. Deve ser a mesma sensação de iluminada reverência que tinham as nobrezas proto-alemãs do XVIII ao escutarem o bel canto italiano, ou os aristocratas russos finisseculares ao escutarem as lições de francês das filhas, ou a que sentiam os latifundiários autóctonos da Índia ao escutarem um recitado em inglês de Cambridge. Esse foi sempre o problema das elites da Galiza: não olharem para fora. Cada país precisa olhar para fora. Os catalães, para a França. Os japoneses, para a China. Os portugueses, para a Espanha.

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O caló, os símios e a eutanásia. Ao fio do I Volume do Mapa Sociolingüístico

Publicado em A Nosa Terra 646, 3 Novembro 1994, p. 15

Caminho polo meu bairro semi-urbano, nem carne nem peixe, agora cemitério de concreto que fora bosque de alcalitos e antes, quando os povos ainda conversavam, deveu ser mesta fraga, e escoito às minhas costas a dous cativos falarem com normal espontaneidade no que ainda se reconhece como galego: singelamente, sem mais volta de folha, nesse português nosso que espanhois de todas cores nos querem extirpar. Viro a cabeça e observo a rapaz e rapariga: são ciganos, ou mohinantes, esfarrapados da língua. Volvo caminhar e, com mágoa, compreendo: o português da Galiza sobrevive sustido por dous extremos, como a sociedade capitalista feroz se mantém na mais aguda contradição da miséria do ghetto e a luxenta dilapidação do Village de Manhattan. Aqui os extremos são, por uma parte, o neo-galego de casta dos nossos locutores públicos (patética farsa que às vezes me faz, literalmente, enrubescer), e por outra esse caló rotundo e remoto que invoca sempre a palavra «ainda»: ainda se fala, si, ainda hai tribos fósseis que fazem lume com pauzinhos.

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Com as línguas cortadas

Publicado em Çopyright 10, 30 Julho 1996

UM

A realidade compõe-se de um número impreciso de mundos concêntricos de verdade e falsidade, todos eles cruzados por frechas de linguagem, o único material que nos resta para exprimirmos a complexidade e o assombro. Onde começarmos é sempre a tarefa mais inumana, quase impia, pois em articularmos um desses espaços de realidade por meio da linguagem ignoramos os outros. Isto é o que me acontece hoje, forçado a converter em território plano de palavras as multíplices dimensões dos signos do social. O quem sou, o quem me defende realmente detrás deste triste discurso, é talvez a questão acessória: o perigo é aceitarmos a estrita limitação do texto, a sua falácia, como se a razão de o texto não nos revelar a verdade fosse simplesmente uma carência nossa, não a carência imanente dos objectos.

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O país da semi-língua

Publicado em A Nosa Terra 623, 26 Maio 1994, p. 28

Paul Éluard disse: há outros mundos, mas estão neste.

O nosso país é já dous países: um país com semi-língua e um país com língua própria. O país com semi-língua tem limites precisos, Norte e Sul, é como uma borda, como a membrana duma célula, como uma contínua periferia. Porém, o país com língua própria mora dentro do outro, e também fora, em zonas irregulares e cambiantes, em redes esporádicas que medram, constituindo territórios fugazes cada vez mais sólidos, sedimentando-se na consciência colectiva de falar. O país com semi-língua é reconhecível desde fora, tem marcas registadas, hinos e bandeiras, vistosos líderes registados, estabelece relações com outros mundos registados, limita. Porém, o país com língua própria não limita, é errante, não tem hinos, nem privilégios, e os seus poucos líderes são pobres líderes, líderes falsos que talvez desejariam só ser líderes registados do outro país, do país com semi-língua.

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“Recrimíname un lusista”: Postura política e ortografia

Publicado em Galicia Literaria. Suplemento Cultural de Diario 16 de Galicia, 3 Julho 1993, p. IV

As palavras, como outros instrumentos de expressão do social (os símbolos, os hinos e mesmo os números), carregam-se involuntariamente com o seu uso de conteúdos imprevistos. Poucos usuários da linguagem são alheios aos deslocamentos semânticos que imbuem às palavras de atributos apenas inicialmente sugeridos. A reflexão vem a conto duma coluna de Isaac Díaz Pardo (La Voz de Galicia, 17/6/93) titulada «Recrimíname un lusista». O artigo é uma resposta a outro recente de Xavier Vilhar Trilho nas páginas de Diario 16 de Galicia sobre a decisão de Díaz Pardo de se apresentar nas listas do PSOE nas recentes eleições. Este terceiro texto meu tenciona, sem entrar no fundo de ambas colaborações, relacioná-las através da interpretação desse singelo titular: «Recrimíname un lusista».

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