Alegado pola dor contra a paz

Publicado em A Nosa Terra

Nestes dous meses de guerra declarada tentei tantos tipos de discursos –internos, às vezes inutilmente públicos como este, às vezes na forma duma dor adolescente– que pude concluir que toda palavra habita no silêncio. Neste triturador silêncio público da sociedade, as numerosas conversas de café ou cerveja com as poucas mentes ainda ágeis que conheço demonstram que a táctica da fragmentação não funciona só nas criminosas bombas da OTAN. Por acaso é possível alinhavar um discurso colectivo a partir das narrações fragmentadas dessa dor impotente? Podem ou querem os partidos assumir essa responsabilidade, reconhecer-se -embora lhes doa aos seus interesses– nessa mítica “vanguarda” da Europa que construía a consciência dos esfarrapados? Indubitavelmente, não: não querem, portanto não podem. Por contra, a figura que emerge desta guerra declarada é a dos Intelectuais Institucionais, esmagadoramente masculinos (como os generais), que representam no calabouço de interrogatório dos jornais os papeis reais do Polícia Bom e o Polícia Mau: Bourdieu contra Cohn-Bendit, Chomsky contra o Estado, os Escritores, as plumas multiculturais que recebem os Prémios Príncipe de Astúrias. No tear das rotativas (não tanto das televisões, porque aí os seus rostos humanos denunciam as mentiras assumidas por uns poucos gravanços), os intelectuais institucionais tecem o discurso fechado da dicotomia e da responsabilidade: impedem efectivamente a circulação da dor, erigem o Manifesto como uma renovada arma de joguete, para cumprirem em conivência com o capital (sim, o capital) o ritual do silêncio, a bolsa de pintura ideológica contra os cérebros humanos.

Continue reading “Alegado pola dor contra a paz”

Os Balcãs: Outra guerra de classe

Publicado em Çopyright 71, 24 Abril 1999 • N’A Nosa Terra

Entre as características mais notáveis dos discursos actuais sobre a guerra em Jugoslávia, surpreende ver a omissão quase total da questão económica. Perante a afirmação de que também na guerra em Kosovo e Sérvia há bases económicas, tanto a direita quanto a “esquerda” parecem reagir com incredulidade, se não com clara oposição. Mas a omissão ou a negação da dimensão económica no discurso público são reveladoras. O Secretário Geral da OTAN, Javier Solana, em entrevista na TVE-2 de Espanha no programa “El Tercer Grado” (15-Abril-99) diz explicitamente “Esta guerra não é polo petróleo ou polos recursos naturais: é uma guerra polos valores humanos”. Se a deciframos minimamente, a afirmação implicita um ingénuo reconhecimento de que outras guerras semelhantes sim que foram e são polos “recursos naturais”. Perante esta descrição de Solana, um vê-se forçado a tentar compreender por que esta guerra especificamente não seria polos recursos naturais; quer dizer, um vê-se forçado a procurar as (inexistentes) circunstâncias peculiares polas quais a expulsão e o massacre de centos de milhares de kosovares das terras em que habitavam, e o intuito dos exércitos europeu e americano de, aparentemente, devolvê-los a elas, não seria um conflito económico. Eu pessoalmente não conheço nenhuma guerra que não seja económica, e a explicação é singela: nas sociedades de classes (todas), na matança de outros seres humanos há grupos armados que actuam como instrumentos de elites económicas e políticas para a apropriação de recursos e para o mantimento de regimes economicamente injustos (todos). A guerra armada é um produto da lógica de exploração que começa na submissão ao roubo do trabalho assalariado.

Continue reading “Os Balcãs: Outra guerra de classe”

Kosovo e Sérvia: Os exércitos contra os povos

Publicado em Çopyright 70, 10 Abril 1999 • Em Non! • N’A Nosa Terra

Quando se leia este texto, provavelmente a intervenção por terra da OTAN em Sérvia e Kosovo já estará decidida ou será um feito. O estado russo já estará a emprestar o seu apoio ao exército sérvio dalguma maneira, provavelmente na forma de contingentes humanos.

A guerra contra os povos em Sérvia e Kosovo convoca mais que nunca a uma aliança mundial anti-militarista, à renovação da utopia libertária baseada nos mais singelos princípios da liberdade, a igualdade e a justiça ética. O conflito está desenhado para reforçar a dependência das populações ocidentais do aparelho militar e do discurso democrático, numa era em que cresce o anti-militarismo de base mercê a essa ambiguidade de que os soldados, simplesmente, deixam de fazer-se necessários para matar. Frente ao horror bélico cultivado polas elites dos estados, as sociedades civis dos países afectados vêm-se forçadas a posicionar-se diversamente, num maniqueísta jogo que só favorece a cultura da violência de estado. É o mesmo dispositivo ideológico interpelador que leva operando com êxito em Euskadi desde há 30 anos e que a ideologia política nacionalista basca agora tenta desactivar com o projecto ilusório duma Grande Euskal-Herria.

Continue reading “Kosovo e Sérvia: Os exércitos contra os povos”

Biafra, sempre

Quando contemplo em detalhe o granulado fotográfico daquele meninho totalmente despido de Biafra que retratou McCullin em 1969, ou o corpo calcinado polo napalm do paradigma do terror que foi a meninha vietnamesa a fugir pola estrada borrenta, compreendo com uma força aterradora que o meu próprio privilégio de falar é a essência pura do fascismo. Sem tristeza, com a raiva dum cérebro impotente, debato-me entre a adesão ao Acaso mais inapelável ou a adesão à História. É redundante lembrar que esse meninho poderia ter sido eu, e que o meu corpo poderia ter sido aquela meninha: carne obscenamente nua, carne expiatória, desaforada mancha ética, epítome da barbárie que desde a origem do tempo não cessou.

Continue reading “Biafra, sempre”

O Corpo, a Língua e o Estado Nacional

Publicado em Çopyright 66, 7 Novembro 1998 • Em Non! – crítica & intervenção

Na sociedade ocidental actual os três objectos (língua, corpo, estado nacional) que fazem referência a três âmbitos fundamentais da pessoa (o simbólico, o fisiológico, o social) sujeitam-se a um jogo entrecruzado de analogias com as quais entendemos e construímos um âmbito por meio do outro. Os três (língua, corpo, estado) são espaços minuciosamente territorializados e articulados polo discurso. Os discursos quotidianos, com as suas visões fortemente enraizadas de “como são as cousas”, constroem as nações-estado em termos orgânicos, como seres vivos cujas partes devem coerir, a risco de ficarem mancados: como uma árvore a que se lhe não podem cortar pôlas, como um corpo que não deve perder membros ou fetos. As línguas são também concebidas como realidades orgânicas que nascem, crescem, vivem, reproduzem-se e morrem, e que são mesmo invadidas por colonos alheios (“impurezas”) que as infectam e até as fagocitam. Os vírus das línguas são os “estrangeirismos”, os vírus dos estados são os “terrorismos”, os terroristas dos corpos são os vírus. O inimigo duma língua é outra língua, o inimigo dum estado é outro estado, o inimigo do corpo masculino é o corpo feminino.

Continue reading “O Corpo, a Língua e o Estado Nacional”

As falsas Perguntas dos estados

Publicado em Non! – crítica e intervenção

Confesso não conhecer muito os detalhes da proposta de regionalização de Portugal, mas, como galego do Norte, supõe-se que deveria ser uma questão que nos interessasse. A Galiza “desfruta” dum pedacinho de Estado monárquico na forma da Comunidade Autónoma “Galicia”, e a aparência de democracia mais directa também inça de cada vez mais as nossas maltratadas consciências. Apenas algumas gentes, provavelmente lunáticas, comprimidas entre várias formas de Estado –desde a crescente Europa até aos governos locais dos concelhos– debatem-se entre aceitarem a miragem duma suposta “aproximação” do Estado aos súbditos e a sua inusual lealdade às utopias, isto é: um mundo sem Estados como os conhecemos, e uma verdadeira regionalização e nacionalização definida pela união livre e pela desunião também livre.

Continue reading “As falsas Perguntas dos estados”

A ausência de linguagem

Publicado em A Nosa Terra 840, 23 Julho 1998, p. 31 • Non! – crítica & intervenção [ligação não operativa]

Nunca se poderá destacar suficientemente a instrumentalidade da apropriação da língua e da palavra na sociedade capitalista para a dominação social. Embora os sociolinguistas não o saibam, a primeira divisão entre as gentes que estabelece o capitalismo não é entre aqueles que falam a Língua A e aqueles que falam as Línguas B ou C, mas entre aqueles poucos que possuem uma linguagem e aqueles muitos que simplesmente são utentes duma língua, ou duas, ou três. A complexidade das condutas diárias é reduzida por políticos e sociolinguistas a cifras de “falantes” que “escolhem” uma língua (ou “Língua”) ou outra, e é curioso constatar que esta “escolha” se constitui num visível signo científico dos grupos sociais, como se houver algo inerentemente transcendental em proferirmos sons para comprar pão na loja da esquina ou para comentarmos sobre os vizinhos. Os “povos”, assim, são dirimidos em grupos de “falantes”, e estes grupos são assignados a cifras visualizáveis. A territorialização da gente em populações sociolinguísticas emula outras territorializações sociais, como amostra dos complexos protocolos inerentes ao capitalismo para impedir a emancipação, isto é, o reconhecimento próprio e mútuo das pessoas como forças activas na essencial procura da utopia.

Continue reading “A ausência de linguagem”

Literatura Zonal

Publicado n’O Pica-folla, Maio 1998

Imagino que, duma vez mais, será a minha uma das poucas vozes discordantes a respeito de como se vê o idioma galego e a cultura feita na Galiza. Não me importa muito, estou afeito. Não me importa “ter razão” ou “estar errado”: o que me importa é como se vai impondo o silêncio sobre as mentes, e importa-me, ainda que for, apenas porque parte da minha nutrição perante a desídia quotidiana é duvidar da obviedade das cousas. Se esse libertador exercício de debate interno se nos nega, pouco nos resta já. Por isso, vencendo o crescente cepticismo que ameaça com descebralizar-me ainda mais, aceito o convite a contribuir para esta celebração, espero que crítica, do chamado “Dia das Letras Galegas” de 1998.

Continue reading “Literatura Zonal”

Um panfleto: Em favor da insubmissão

Publicado em Çopyright 4

Em 8 de Maio de 1997 teve lugar num pub da Corunha um acto convocado pola Assembleia Nacional de Objecção de Consciência (ANOC), com motivo de uma série de juízos contra insubmissos que se estão a celebrar na Galiza. Este texto foi lido nesse acto.

Ainda que poda parecer excessivo, é um grande motivo de honra e satisfação para mim ter sido convidado a este acto contra a barbárie, a este espaço reduzido, minoritário como é sempre o espaço social onde começam as verdades. Convidou-se-me a ler poesia ou outra cousa, e eu escolhim outra cousa porque para mim na actualidade só existem duas formas literárias úteis para a emancipação humana: a poesia e o panfleto. Este texto quer ser um panfleto. Só lamento que não esteja impresso em borrenta letra azul de multicopista fatigada, lamento que não circule de mão em mão nervosa pola obscuridade das ruelas interiores, e lamento não ter medo de ser detido agora polo exército, porque as palavras que aqui dizemos são clandestinas e mereceriam ser tratadas como tais. A liberdade real não consiste em poder dizer o que queremos: a verdadeira liberdade consiste em não ter já necessidade de dizê-lo.

Continue reading “Um panfleto: Em favor da insubmissão”

Prisioneiros do Discurso

Publicado em A Nosa Terra, 15 Maio 1997, p. 6

Aos desaparecidos

Este artigo ia-se intitular, por exemplo, “A clandestinidade da literatura galega”. Durante vários dias alimentei a trivialidade do tema, como se fosse interessante ou mesmo essencial. Percebim, nas minhas visitas a alguma livraria, a segregação dos volumes em ghettos políticos (Ficción, Viajes, Gallego), e percebim a mimética reprodução desta hierarquia na livraria galega que existe: Poesia, Novidades, numa mesa aparte Portugués. Polas manhãs, através dos pátios interiores, escoitei mulheres de antiga estirpe camponesa a cantarem sevillanas, emulando luminosos concursos televisados ou a ilusão por uma triste filhinha maquilada que aprende a ser sexual perante o poder fálico dos focos, perante Deus e a Monarquia. E polos corredores da universidade comecei a ver cartazes que anunciam os actos do grande Dia das Letras, a nossa miragem anual, com os repetidos nomes de conferencistas sempre agrupados em triunviratos de amor pola cultura. Na letra pequena dos cartazes figura muitas vezes o logótipo do governo que votámos.

Continue reading “Prisioneiros do Discurso”