Língua e Estatuto: Uma proposta audaciosa

Enviado a A Nosa Terra; não publicado • No Portal Galego da Língua • Em CMI Brasil

Nunca gostei da expressão, mas começa um novo “curso político” e social paralelo ao académico. Com ele, voltarão debates à minguante esfera pública que nos resta. A língua não é nem de longe o principal problema de qualquer sociedade. Mas o problema da língua é amiúde sintoma e, pior ainda, causa de outros. Neste sentido, é evidente que a situação sociolinguística na Galiza continua a ser grave: a Galiza como sociedade ainda foi incapaz de se articular nacionalmente, e a sua língua continua sem ser o que se entende por Língua Nacional, quer dizer, entre outras cousas, um símbolo de Estado e um instrumento que veicule e expresse conteúdos culturais distribuídos “democraticamente”, que sirva como recurso dentro da infelizmente inescapável lógica do Capital, e que seja um referente e uma conduta natural, diária e habitual de que por fim podamos deixar de falar com obsessão. E a sociedade galega foi incapaz de alcançar ainda esta situação porque carece dos recursos políticos soberanos, aqueles que poderiam levar a um estado nacional independente tão nocivo (mas, contra os medos dos liberais defensores do “mercado”, não mais nem menos) como o Reino de Espanha ou a República de Portugal, ou como qualquer outro Estado do capital.

Diz tudo isto quem nem é programaticamente nacionalista, nem independentista, nem estatalista. Manter contra toda laminação do pensamento uma ucronia ideológica informalmente libertária não pode significar cegar-se às evidências. E uma das infelizes evidências é essa carência de Língua Nacional na Galiza paralela à falta de autodeterminação real, como lhe corresponde em direito (humano, já não político) a qualquer colectivo em processo de construção intersubjectiva, que é como se dão os processos sociais.

Seria longo (e precisaria de outro autor) detalhar as responsabilidades históricas das proto-elites nacionais na falta de país e de língua actuais. Culpar sempre o Outro, como se o Outro fosse uma invisível entidade estrangeira em “Madrid”, não soluciona o problema. O facto é que em dous séculos as proto-elites nacionais galegas políticas e intelectuais foram incapazes de gerar pouco mais do que ideologia da Identidade e discursos culturais. Mas muito pouco Capital. E sem Capital não há Língua, porque é esta que se constitui em moeda de troca simbólica paralela às moedas únicas que nos subjugam. Evidentemente, a versão actual do galego culto, proposta pola Real Academia Galega e acolhida como útil miragem polas classes dominantes, não é tal veículo de capital que poda concorrer contra o espanhol como lengua nacional. De facto, está a acontecer todo o contrário: de cada vez mais, o espanhol é também lengua nacional da Galiza, porque todos os processos fundamentais de identificação social, (escassa) mobilidade de classe, comunicação social, etc., passam por ele.

Na minha opinião, no plano sociolinguístico só há uma maneira de procurar reverter esta tendência: abraçarmos com todas as consequências e acatarmos como súbditos obedientes a natureza cruel das Línguas Nacionais de estado, e construirmos a língua da Galiza como tal. Este é, nem mais nem menos, um velho projecto que o insidioso “senso comum” se encarregou de adjectivar como “lusista” ou, em linguagem politicamente correcta, “reintegracionista”, mas que subjaze a notáveis ideólogos da nacionalidade galega, desde Biqueira até Castelao ou Lôpez-Suevos ou (com uma importante concessão ao benefício da dúvida) Nogueira. E a história e o presente dizem-nos que o modelo mais próximo que temos para construir uma Língua Nacional que reproduza e à vez invisibilize a cruel distinção social e de classe é também o mais próximo cultural e geograficamente: Portugal.

Sei que se argumentará que o “Povo” não concebe o galego como língua portuguesa. Talvez este argumento fosse válido se os especialistas soubéssemos ver a ideologia “real” que têm as pessoas sobre a língua nos enunciados delas. E talvez não fosse válido, se soubéssemos resgatar as variadas concepções informes da língua e da fala em qualquer sociedade. Mas, contudo, queiramo-lo ou não, a concepção do “povo” sobre a língua não é a questão. Durante o Franquismo o “povo” galego (a gente) sabia que o galego era um dialecto do espanhol. Não o “pensava”: sabia-o. Agora a maioria da gente sabe que o galego é independente do espanhol. Muitos sabem que é independente também do português; mas muitos também sabemos que o galego é língua portuguesa. Como o sabemos, alguns chamamos o galego “português galego”, paralelo ao “francês quebequense”, e sabemos que não estamos a violentar a natureza da língua. Contudo, nada adianta discutirmos a firmeza destes saberes (o episteme é a cousa mais misteriosa que existe) nem os números das maiorias ou das minorias: as analogias mais transparentes (estruturalmente, o galego é à língua portuguesa o que o quebequense é à língua francesa) são facilmente ignoradas quando contradizem fortes ideologemas. Por isso, trata-se de tomarmos um caminho diferente do debate circular. Passo a explicá-lo.

O “curso político” talvez ofereça a possibilidade de as elites partidárias levarem adiante uma revisão do quadro jurídico do Reino: o quadro dos Estatutos de Autonomia, incluído o galego. Devo suprimir por praticidade a discussão da conveniência destas reformas. Teoricamente (ucronicamente), não podo defendê-las, porque não podo aceitar a existência do Reino sem grande ranger mental. Mas os factos sociais são mais poderosos do que a vontade do cérebro. E existe a possibilidade de o estatuto para “Galicia” ser revisado. No que atinge à língua (a minha deformação profissional) e aos direitos linguísticos, não se deveria deixar escapar a oportunidade de tocar o estatuto.

E é aqui onde se apresenta socialmente o que considero uma proposta audaciosa. Em 29 de Junho de 2004, as associações linguístico-culturais de âmbito galego AAG-P (Associação de Amizade Galiza-Portugal), AGAL (Associaçom Galega da Língua) e MDL (Movimento Defesa da Língua) aprovaram após discussões a três bandas uma proposta conjunta de revisão de alguns pontos do Estatuto, apresentada publicamente em 25 de Julho, que, na minha opinião, contribui para facilitar juridicamente a construção de Língua Nacional. A Proposta 2004, como é chamada (http://www.proposta2004.tk/) redefine o estatuto legal da língua da Galiza deixando aberta, de maneira muito elegante, a sua consideração, classificação tipológica e portanto denominação. A sugestão de reformulação do Artigo 5 do Estatuto galego, na qual me focarei, é a seguinte: O galego ou português é a língua oficial da Galiza.

Esta formulação é extremamente inteligente. A identificação entre “galego” e “português” é paralela à tão efectiva equiparação entre “castelhano” e “espanhol”, por exemplo, sinónimos que operam tanto no âmbito oficial e institucional quanto no quotidiano. No nível jurídico, a fórmula O galego ou português é a língua oficial da Galiza (esteja escrita como estiver) não impede nem promove qualquer modelo de formalização (padronização) autónoma do galego, enquanto levanta qualquer atranco jurídico para a discriminação em razão de língua (outro ponto também reformulado na Proposta 2004). Não se posiciona (como não se pode posicionar um Estatuto) sobre o debate técnico a respeito da delimitação do galego como língua (língua galega, língua galego-portuguesa, língua portuguesa na Galiza, português galego, etc.), nem muito menos sobre a questão normativa. Não impõe usos (como não poderia), e não os impede. Em definitivo, é inclusiva, não excludente.

Na minha opinião (e de muita outra gente), a construção efectiva de Língua Nacional na Galiza passa inelutavelmente polo amplo reconhecimento social e pola plasmação jurídica desta inteligente equação. Evidentemente, esta é uma condição necessária mas não suficiente para o alvo dos três enes: nacionalização, normalização e naturalização da língua. Para isto, a Proposta 2004 (que diz mais cousas, por exemplo sobre direitos linguísticos e meios de comunicação públicos) visa o apoio maciço de pessoas e organizações. Não é uma iniciativa desenhada para ficar no fácil recanto da heterodoxia que se autolegitima: é para ser contemplada com seriedade. Não me engano: a Proposta 2004 representa um desafio para partidos, intelectuais, e outras inevitáveis minorias que querem (em toda lógica) que sejam reconhecidas socialmente as parcelas de legitimidade alcançadas numa recente história de trinta anos. Mas eu vejo que a Proposta 2004 não está desenhada contra: está desenhada para. Cada um(a), cada pessoa, cada organização ou entidade, saberá como fazer encaixar a sua ideologia e projecto político com uma oportunidade histórica.

Confesso que eu já dei o meu apoio a esta iniciativa: o meu apoio, sim, à revisão dum Estatuto inconcebível. Diz tudo isto, e convida a visitar a Proposta 2004 e a considerá-la, uma pessoa que, repito, não é nem autonomista, nem quisera acreditar nas leis, nos estados e no poder das línguas. Mas assim é a natureza da Besta, que impõe tantas aberrações diárias, enquanto morre o mundo a mãos da única Língua, uma espessa língua de ouro preto que se chama Language.

Proposta 2004: http://www.proposta2004.tk/
Associaçom Galega da Língua: http://www.agal-gz.org
Associação de Amizade Galiza-Portugal: http://www.lusografia.org/amizadegp/default.htm
Movimento Defesa da Língua: http://mdl-galiza.org/

Sobre a Escrita, Contra o Populismo Normativo: Catorze Verdades de Fé dum Pseudo-Sociolinguista

Publicado no Portal Galego da Língua

Na lista Assembleia da Língua, Gerardo Uz pergunta sobre o papel dos sistemas escritos na marginação dos grupos sociais. Concretamente, a questão é se a forma específica duma norma escrita afecta o seu possível conhecimento ou desconhecimento e, portanto, ulterior selecção social. Opino longamente:

1) Nas sociedades de classes a forma específica da norma escrita não tem qualquer incidência sobre o mecanismo geral de class-ificação, selecção e marginação social baseadas no conhecimento diferencial da Língua.

2) As diferenças graduais (o contínuo) de saberes sobre a língua transformam-se em categorias discretas de classificação social. Por exemplo, tanto uma pessoa que comete muitas faltas de ortografia como uma pessoa que comete muito poucas “têm faltas de ortografia”, e portanto ambas são susceptíveis de serem classificadas como “não conhecedoras da Língua escrita”.

3) O estabelecimento da fronteira entre “os que sabem” e “os que não sabem” é contingente e depende da forma particular de distribuição desigual do conhecimento. Por exemplo, entre “sábios” absolutos alguém que ignore um só facto pode ser um “burro” total.

4) Os pontos 2 e 3 acima têm um paralelo nos contínuos da fala. O que se chamam “marcadores sociais” são elementos linguísticos isolados que adquirem o valor simbólico de toda a variedade dialectal ou sociolectal a que pertencem, co-ocorram ou não com outros elementos dessa variedade. As variedades são construções mentais dos falantes: representações globais que, embora compostas de signos (sociais) individuais, operam como signos complexos elas próprias. Por exemplo, alguém que diga “dizer” e “canção” é um “lusista” (até que essas formas deixem de ser socialmente “lusistas”). Por exemplo, um “andaluz” é alguém que aspira os “s” embora não faça o resto de cousas que fazem os andaluzes na fala. Na Galiza, alguém que “fala galego” é alguém que diz uma frase com “eu”, não “yo”.

5) Portanto, qualquer elemento linguístico (oral ou escrito, “correto” ou “incorreto”) é susceptível de cobrar o valor simbólico de distinção grupal, e de se constituir num “erro” ou um indicador de subalternidade, ignorância, etc., ou de valores positivos como inteligência, cultura, etc.

6) Portanto, não há sistemas escritos mais “fáceis” ou “mais difíceis” de aprender para o seu uso se constituir em SIGNO de competência linguística e  social. Na sociedade de classes, uma escrita “tecnicamente fácil” de aprender é ainda um procedimento de exclusão, porque não está garantida (é impossível) a destreza completa de todos os utentes nessa escrita.

7) O mecanismo geral de exclusão e dominação a meio da língua na sociedade de classes é paralelo aos outros mecanismos de distribuição inerentemente desigual dos recursos (materiais ou simbólicos). Na sociedade liberal-capitalista, por exemplo, o sistema educativo está desenhado para reproduzir a desigualdade sob a miragem da igualdade de oportunidades. Quando um recurso (a escrita, a língua) é oferecido para o seu aprendizado a todos “por igual”, mas afinal do ciclo educativo obrigatório básico não todos o dominam “por igual”, a explicação da diferença (já tornada em distinção hierárquica) cai sobre um leque de factores, todos relacionados com as características dos indivíduos distinguidos polo saber (os “listos” e os “burros”). Excluídas as explicações politicamente incorrectas sobre as diferenças entre listos e burros (por exemplo, que pertençam a “raças” ou grupos étnicos distintos), as obviamente erradas (as diferenças de género) e as invisibilizadas (as diferenças de classe), só resta uma pretensa explicação psicologista: o Indivíduo. Os listos (os que escrevem bem) são listos porque a sua mente é lista e trabalhadora. Os burros (os que escrevem mal) são burros porque a sua mente é burra e preguiceira. Melhor: cada pessoa é lista ou burra, trabalhadora ou preguiceira. O sistema educativo, portanto, fornece simultaneamente os recursos democráticos, as explicações do seu fracasso, e as culpabilizações inevitáveis polas hierarquias que reproduz.

8) As diferenças na aquisição da língua escrita têm muito a ver com o valor atribuído à língua escrita e de cultura polos grupos, e com a exposição dos meninhos a essa língua de cultura no âmbito familiar. Como a própria cultura está previamente distribuída de maneira diferencial entre as classes, nas classes mais cultas haverá mais meninhos mais cultos e “listos”.

9) A língua escrita de cultura distribuída na escola sempre está baseada na fala das classes burguesas meias mais cultas. A escola introduz o conflito social no seio das famílias onde a cultura escrita tem menor presença, ao oferecer ao meninho modelos de língua, de fala, de escrita e de saber que contrastam com os dos pais não educados. Sistematicamente, os meninhos de classes trabalhadoras menos cultas passam por um período de des-identificação com a língua da família.

10) A compensação por este escoramento de classe da língua escrita não pode consistir em tomar a fala das “classes populares” como modelo. Quando isto se faz, dá-se simplesmente uma ré-colocação de classe, pois, de novo, a fronteira simbólica e social entre formas da língua é absoluta: a nova norma  culta supostamente baseada na fala popular torna-se em língua culta de classe. Veja-se o caso galego actual.

11) O caso anterior pode acarretar o acesso ao poder simbólico da língua para novos grupos sociais a expensas de outros, mas não representa uma alteração da lógica da exclusão de classe pola língua.

12) Em definitivo: enquanto existam as classes sociais existirão as “faltas de ortografia” e as escritas boas e más, “fáceis” e “difíceis”, os “listos” e os “burros”.

13) A solução radical é mudar o modelo social e económico e portanto o sentido social da diferença linguística oral ou escrita. A solução reformista é acatar o valor classificador da Língua, não pré-julgar e pré-classificar os grupos pola sua “capacidade” ou “incapacidade” cognitiva de ganharem acesso a essa Língua, e remover qualquer obstáculo legal e social que obstaculizar efectivamente a expressão linguística e qualquer medida que representar um agravo comparativo na distribuição de recursos comuns (o dinheiro, que vem dos impostos e o mais-valor propriedade do Estado) para qualquer forma de se expressar na língua.

14) Em conclusão, a escrita mais “fácil”, “popular”, “democrática” e universal é fazer um “o” com um canuto.

Referências básicas:

  • Bernstein, Basil (1972). A sociolinguistic approach to socialization; with some reference to educability. Em J. J. Gumperz & D. H. Hymes (eds.), Directions in Sociolinguistics. New York: Holt, Rinehart and Winston, 465-497. (= Bernstein, Brasil (1996). A Estruturação do Discurso Pedagógico: classes, códigos e controle. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Luís Fernando Gonçalves Pereira. Vol. IV da edição inglesa. Petrópolis: Vozes).
  • Bourdieu, Pierre (1977). The economics of linguistic exchanges. Social Science Information 16(6): 645-668.
  • Bourdieu, Pierre (1982). Ce que parler veut dire. Paris: Fayard. (= Bourdieu, Pierre. Data? A economia das trocas lingüísticas: O Que Falar Quer Dizer. Trad. Sergio Miceli, Mary A. L. de Barros, Afrânio Catani, Denice Catani, Paula Montero e José Carlos Durand. São Paulo: Edusp).
  • Bourdieu, Pierre (2000). Poder, derecho y clases sociales. Bilbo: Desclée de Brouwer.
  • Joseph, John E. (1987). Eloquence and power: The rise of language standards and standard languages. London: Frances Pinter.
  • Scherer, Klaus R. e Giles, Howard G. (1979). Social markers in speech. Cambridge: Cambridge University Press.

A estrela das cinco pontas cardeais

Publicado no Público, suplemento Fugas, 5 Junho 2004, p. 8.

Dizem que de Compostela parte um caminho que são muitos. Que tudo começou há séculos de pedra; e que quem voltar a essa cidade submergida em mineral pela mesma via, como numa Ítaca pessoal, muito mais ancião com as cousas e os pensares, achará no meio de uma pequena praça que não posso nomear o desenho inusual de uma estrela de cinco pontas cardeais. Esta pessoa só poderá vê-la se trazer consigo um fardel de serenidade, uma autêntica compreensão do lento transcorrer do tempo humano. Sentando-se no centro da estrela à meia-noite do solstício de Verão, se olhar justo para o zénite da cúpula, esta pessoa verá passar a rota da sua própria vida e o princípio do universo. Assim singelo é o reencontro: faz o périplo dos mares, procura-te nas línguas e vegetações diversas, volta para sentar-te placidamente no astro inscrito na pedra, olha para cima.

Compostela é aqui metáfora da mente. Qualquer lugar deveria conter a estrela das cinco rotas ou outro signo onde sentar-se na noite de solstício após uma vida de procura ética. E então dizer: Vi a morte passar em carros de combate; vi homens matarem mulheres, homens matarem outros homens; vi ladrões em fatos luminosos entrarem com sigilo na casa comunal e roubarem o azeite, o arroz, roubarem a força de trabalho; vi a miséria que não deveria persistir; mas algumas vezes vi o prazer de corpos nus à lua, o assombro dos meninhos, o enlevo de amor adolescente. Vi palavras falsas, palavras assassinas; vi povos fragmentados por um rio inexistente, estados construídos com os blocos de casas derrubadas por um tanque, vi reis coroados com o ouro das moedas; mas algumas vezes vi um júbilo de centenas de pessoas sem armas a lutarem. Vi cifras inumanas nos jornais, vi as linhas horizontais do sangue no ecrã que não cessava, vi raças de seres magros a arrastar-se e raças de seres poderosos a arrastá-los; mas às vezes vi nuns olhos uma incombustível resistência, vi a mente central da humanidade. E compreendi.

Ninguém deveria deixar de visitar a sua própria casa, que está dentro. Dentro levamos o desenho da razão humana, que é por exemplo um ícone na pedra, o labirinto de Mogor nos glifos da Galiza, que baixa até ao Sul como uma língua. Não existe um ano especial para visitar a própria casa. Não existem as celebrações dos opulentos. Não existem os nomes empolados: não existem as maiúsculas. Não é preciso sangrar pelo caminho. Não é preciso adorar um homem morto. Não é preciso adorar qualquer fronteira. O caminho tem a forma da estrela marinha que sabe a sal, não a forma dos fogos de artifício. Compostela, onde eu também vivi enquanto morria a anterior face do terror da Ibéria e nasciam vermelhos estes murchos cravos, está dentro. Para encontrar a casa e encontrar-se não é preciso o ano falacioso: apenas basta a noite do solstício, o símbolo, o limpo céu obscuro justo acima, talvez a cadência de uma música contida, uns passos a ecoarem, um animal que ama. Crede-me. Vinde. Trazei terra vossa e todas as palavras, a nossa língua inteira: faz-nos falta. Vinde sempre, que nós também iremos às vossas Compostelas.

“Mi terrorismo”: Como as palavras denunciam a verdade

Enviado a Vieiros

Numa entrevista feita por Federico Jiménez Losantos em la COPE na manhã do 12 de Março passado, quando se propagandizava ainda sobre a autoria de ETA do massacre de Madrid, ao então candidato do PP Mariano Rajoy escapava-lhe um significativo lapsus linguae, que ele auto-corrigiu, mas que explica muito sobre o tratamento do “terrorismo” em Espanha. O tema era, como não! (uma vez “cancelada” a campanha eleitoral) por quem votariam os espanhóis o 14 de Março:

“Y éste [a eleição de voto] es un problema de confianza sobre el que se debaten los españoles, de a ver en quién puedo dejar… en manos de quién dejo esto: mi país, mi bienestar y mi terrorism- y y y y mi libertad y mi vida” (Arquivo sonoro: http://www.cope.es/audios/manana/entrevista2_120304.wma ).

“Mi terrorismo”. Com efeito, no confronto eleitoral entre “ETA” e “Al-Qaeda” em Espanha entrou em jogo a questão da delimitação do que é “próprio”: do que é o “nosso” terrorismo (e o que lhe convém ao Estado Espanhol) e o que é “alheio”. Não para só Rajoy, mas para a grande maioria dos habitantes do Reino, existe a convicção de que ETA representa o “nosso” terrorismo, o interno, enquanto Al-Qaeda representa o terrorismo alheio, o estrangeiro, e, assim, é denominado às vezes “terrorismo internacional”. A falácia desta dicotomia é evidente, mas funciona para reforçar a ideia de Espanha. Farei-me temporariamente espanhol e farei-me parte dum “nós” inexistente para explicá-lo.

Para começar, tanto os bascos como os árabes estão entre “nós”, em Espanha. Nas notícias sobre o 11-M distingue-se significativamente entre os detidos “marroquinos”, “árabes” ou “sírios” e os “espanhóis” (como se um árabe não pudesse ser espanhol, ou um espanhol árabe), às vezes com detalhadas etiquetas, como a de “hispano-sírio” aplicada a um cidadão espanhol desde há anos que nascera num lugar que se dá em chamar Síria. Se se argumenta que os atentados, nos que morreram tantas pessoas com passaportes estrangeiros, foram contra “Espanha”, é lógico concluir que os ataques por residentes e cidadãos espanhóis também vinheram desde dentro de “Espanha”: também foram feitos por “Espanha”. Com efeito, alguns dos implicados na matança são residentes legais de Espanha desde há muitos anos. Três deles têm um DNI expedidinho por procedimentos idênticos ao DNI de Rajoy, de Zapatero, de Otegi, ou o meu próprio. Portanto, ou “Al-Qaeda” é também em parte espanhola, como a ETA (e portanto é o “nosso” terrorismo), ou nenhuma é “nossa”: as duas são exteriores (Euskal Herria, o Islão) e atacam o estado que as ataca. Se ao nacionalismo liberalista espanhol lhe importassem um figo os estados (o Estado só deveria ser um gestor e garante da “liberdade”, sobretudo a económica), por que negar-lhe a espanholidade ao espanhol “de origem síria”, ou por que negar-lhes o seu contributo para o fabuloso progresso do país a esses residentes legais árabes, que durante décadas pagaram obedientemente os seus impostos na nossa sociedade de mercado? Semelhantes aparentes contradições deram-se nos EUA após o 11-S, para apresentar sempre o “terrorismo islâmico” como uma ameaça “externa” contra um Estado natural, essencial e nacionalmente infalível. Mas a evidência é que o atentado de Al-Qaeda foi um atentado espanhol, isto é: tão espanhol como os da ETA.

Ou, se não, tão pouco espanhol: Ou jogamos todos, ou rompemos o baralho. Com efeito, as duas redes assassinas surgem fora do país Espanha (a ETA, em Euskal Herria e Bélgica; Al-Qaeda, nos EUA e Afeganistão). Mas seguramente é mais próxima a Espanha (mais “nossa”) Al-Qaeda do que a ETA. E com isto quero dizer que o ideário (?) de Al-Qaeda é muito mais semelhante à ideologia cristã conservadora do que o ideário (?) da ETA. É curioso constatar o descenso brutal do terrorismo do fundamentalismo cristão não estatal nas últimas décadas em todo o mundo, excepto, por exemplo, nas recentes matanças em Uganda polo chamado Exército de Resistência do Senhor. Os terrorismos do estado de Israel, dos Estados Unidos e desse “actor não estatal” (como o caracterizam os think-tanks ultraconservadores) que é “Al-Qaeda” compartilham muito mais que as bombas. Compartilham sobretudo três cousas: o monoteísmo como inspiração ou justificação propagandística, a meta da expansão territorial, e a guerra santa como método para estes fins. Lembremos que a noção de “cruzada” é apenas adaptação duma interpretação parcial da noção muçulmana de jihad, que significa guerra contra outros, sim, se é necessário, mas também guerra interna (“revolução interior”) contra o Mal. Para o sionismo expansionista (não todo sionismo o é), o território de Israel deverá chegar até ao Éufrates e Tigris, em pleno Iraque actual. O Islão é nem mais nem menos que todo o imenso território do planeta onde há muçulmanos. E o território a conquistar pola cruzada capitalista cristã é o da “globalização”, pois já sabemos que o capitalismo é só a expressão moderna e genuína do cristianismo, particularmente do protestantismo. As três formas de terror, portanto, são a táctica que têm os três fundamentalismos político-religiosos principais do planeta para levarem adiante as missões dos respectivos povos elegidos. E resulta que “nós”, os espanhóis (repito o truque retórico), somos fruto destas três visões monoteístas do mundo. Israel, Al-Qaeda, EUA, deus uno e trino: Pai, Filho e Espírito Santo da trindade, em competência mútua polo papel a jogarem no planeta.

Porém, esta explicação ideológica a três bandas não satisfaz um importante aspecto da realidade: o económico. E a realidade é que o mundo em conflito na altura (o mundo a conquistar) é sobretudo as terras e mares sob os quais há ouro negro, um território que se estende do Sara Ocidental até Indonésia, passando por várias zonas “geo-estratégicas”. É assim de simples. Como podemos esperar que fenómenos da transcendência como o terror selectivo estejam desligados desta realidade económica? É lógico então que pensemos num jogo mixto de conflitos e conivências entre estas três variantes fundamentalistas polo controlo de recursos essenciais. Porque, quando a história de classes pus as suas cartas mais duras sobre a mesa, por exemplo durante o período hitleriano, demonstrou-se que os interesses económicos se sobrepõem à pretensa ideologia religiosa: judéus ricos colaboraram com os cristãos nazis ricos, muçulmanos ricos deram-lhes as costas muçulmanos palestinianos pobres, cristãos americanos ricos mataram cristãos alemães ricos e pobres, e assim por diante.

Entre o 11 e o14 de Março passados, à direita liberal e conservadora espanhola convinha-lhe que o inimigo fosse “interno” (mi terrorismo). À direita social-democrata, convinha-lhe que fosse visto como “externo”, só por necessária hidráulica eleitoral. Mas resulta que não há nada externo nem interno nestas duas formas de morte programada: as ordens para matar sempre vêm em última instância do capital. Se ETA sempre foi a escusa para a nacionalismo liberal estatal contra os interesses dos nacionalismos liberais subestatais por construírem estado, “Al-Qaeda” é o braço armado dum poderoso capital oleogárquico transnacional para atacar selectivamente estados, quer dizer, grandes corporações económicas.

Na entrevista citada, Rajoy tinha razão, mas devia ter-se auto-corrigido doutra maneira. Evidentemente, uma eleição “democrática” consiste em depositar o voto naquele grupo de poder que vai gerir melhor “mi terrorismo”. Rajoy deveria ter dito: “mi país, mi bienestar y mi terrorism– quiero decir, mi Estado”.

A transmissão da língua na família e nas classes

Publicado no Portal Galego da Língua

Se, como se descreveu num texto anterior ( “‘Osmose’ e redes sociais na transmissão da língua’: O papel dos locais sociais” ) a língua é um recurso (cultural, simbólico, material) que se transmite e circula por redes sociais, a pergunta básica é como abordarmos a sua transmissão nas redes centrais na organização do corpo social: a família. A família é a estrutura que reproduz (em vários sentidos da palavra) a hierarquia. As sequelas da família como experiência duram toda a vida, até gerações: arrastamos os cadáveres familiares como os povos arrastam a sua história. Nações inteiras arrastam o seu cadáver, até que o fedor pesa de mais e uns iluminados cortam o saco vitelino dos mortos e nasce algo novo. Quisera poder dizer que a transmissão da língua galega portuguesa que no nosso país está a perder o apelido é algo crucial para a emancipação social. Mas provavelmente não o seja. A transmissão intergeracional da língua, e a sua necessária revolução formal, são simplesmente sintomas de resistência. Quando um colectivo é incapaz de levar adiante o seu ideal, algo substancial fracassa. Não é obrigatório que essa utopia seja assumida por todos ao começo: pode-se construir nação dentro da nación, língua dentro da lengua e da lingua, e resistir confiando que os cépticos que ficaram fora escolham esta opção como a menos má para a sua pervivência. Mas, como fazer isto, desde que âmbitos, com que tácticas sociais, com que discursos? Eis a múltipla pergunta que nenhum activismo linguístico da Galiza aborda na altura, provavelmente porque não sabe como.

Ignoro muito sobre a estrutura social da Galiza e sobre a própria estrutura da família como para oferecer, até para mim próprio, qualquer dica plausível sobre essas perguntas. Mas alguns fáceis razoamentos sobre as relações entre língua e sociedade, e algumas fáceis metáforas, podem ajudar a compreender a situação.

Nas sociedades de classes, a língua é sempre um instrumento para o que se deu em chamar “avanço social”. O “avanço social” consiste simplesmente na mobilidade social ascendente, que se dá quando, na hierárquica geometria da sociedade, um próprio ou, sobretudo, os seus filhos, chegam a alcançar uma situação “mais alta” em termos de recursos económicos, capacidade aquisitiva, reconhecimento social e símbolos de status. Estes recursos (dinheiro e símbolos) são de distinta natureza e circulam de maneiras distintas, mas no circuito de mercado -explica Pierre Bourdieu- são até certo ponto formas intercambiáveis de capital: eu exibo língua (uma língua dada), e obtenho posição social. Como, exactamente? Uma via é através do valor de troco específico da Língua (reflectido, por exemplo, em títulos académicos de valor estandardizado) em certos âmbitos ocupacionais (ensino, burocracia, serviços de tradução, “indústrias da língua”, etc.). Outra via muito importante é através do reconhecimento dos outros, em redes específicas, da minha exibição de Língua como símbolo legítimo, e, portanto, através da abertura de possibilidades de trabalho, casamentos “ascendentes”, etc.

É lugar comum dizer que, na Galiza, a aculturação e assimilação à língua espanhola (que chamarei La Lengua para não confundir-nos) têm funcionado segundo esta lógica desde, polo menos, começos do século XIX: a perda de falantes de galego explica-se comumente como um processo polo qual La Lengua foi “descendo” desde as capas altas (burguesia – classes meias – classes trabalhadoras), que tentavam emular e aproximar-se das superiores. Mas esta explicação não pode dar conta de tudo do que está a acontecer. Como pode “baixar” socialmente uma língua desenhada para subir? Acho que algo falha ou algo falhou ao longo do processo, e tentarei expor por quê.

Distingamos, em primeiro lugar, os âmbitos rural e urbano. No âmbito rural, relativamente imóvel e estável durante séculos em termos de sistemas ocupacionais e de relações entre as estruturas sociais básicas (família e paróquia), o uso do galego era exclusivo ou muito dominante nas redes sociais densas (muitas pessoas interligadas por contactos frequentes), fechadas (sem novas incorporações habituais à rede) e multiplex (ligações estabelecidas em função de múltiplos tipos de relação social). Assim, o indivíduo A relacionava-se com B em galego porque eram simultaneamente membros da mesma família, do mesmo grupo de trabalho na exploração rural, da mesma paróquia. As fortes funções relacionais da língua no seio da família transferiam-se assim às redes do trabalho ou da paróquia. O objectivo do ascenso social limitava-se a melhorar as condições económicas de geração em geração, a enviar algum filho ao exército ou ao sacerdócio, ou a emigrar. Mas não havia verdadeiramente muitas expectativas de “avanço social” a meio de uma Lengua espanhola que era materialmente estrangeira e, além de uns poucos usos rituais, materialmente desconhecida.

Com a urbanização (desruralização), porém, vão-se modificar substancialmente as funções relacionais do galego e da Lengua espanhola. Na cidade interage-se sobretudo em redes abertas pouco densas (contactos mais ocasionais) e simplex (relacionamo-nos com alguém em função de apenas um tipo de papel social: amigo/a-amigo/a, empregado/a-chefe/a, etc.). E a língua neutra por excelência para estas redes urbanas é o espanhol. A emigração à cidade significa a possibilidade de “avanço social”. E para avançar não só há que falar espanhol, mas, sobretudo, há que falar espanhol aos filhos, na esperança, tipicamente, de que os varões consigam um trabalho melhor e de que as mulheres “casem bem” (em inglês diz-se “casar para acima”, to marry up), quer dizer, casem com um membro dum estrato superior que já fala espanhol (é reconhecido o papel mais avançado das mulheres na mudança sociolinguística, até para -evidentemente- a assimilação à língua dominante). Portanto, para estes propósitos, no novo âmbito urbano pode-se manter em galego a comunicação “horizontal” entre pai e mãe, mas a comunicação “vertical” entre pais e filhos deve ser em espanhol para estes adquirirem os recursos dos quais os primeiros carecem.

Ora bem, se este mecanismo de ascenso e selecção social funcionasse na Galiza (se La Lengua tivesse sido e fosse um instrumento para o “avanço social” ascendente), realmente não se estaria a dar a situação actual, com tal penetração maciça do espanhol nos estratos baixos. É paradoxal que uma língua dominante “baixe” quando a sua função social é facilitar que a gente “suba”. Tentarei de expor uma explicação possível a este aparente paradoxo.

Numa sociedade galega com mobilidade social real, idealmente, se a maior parte dum estrato ou classe galego-falante inicial educasse os seus filhos em espanhol para emular as classes urbanas superiores e para permitir os seus filhos se relacionarem em (fictícia) igualdade com elas, é de imaginar que muitos destes filhos ascenderiam socialmente: obteriam trabalhos melhores, ou “casariam bem”. Agora as classes meias, já espanhol-falantes, seriam algo mais largas. Mas como a mobilidade social continua “para acima”, os estratos superiores das classes meias espanhol-falantes também ascenderiam. Quanto mais arriba, mais acumulação de capital (de vários tipos) se dá, mas não mais Lengua. Assim, o resultado da função mobilizadora ascendente do espanhol poderia ser uma ligeira ampliação das capas meias espanhol-falantes, mas não uma acentuada penetração da Lengua para “abaixo”, pois o grosso dos falantes desta língua (La Lengua) estariam de cada vez mais “arriba”.

Continuando com a idealização, uma minoria das classes trabalhadoras assimiladas ao espanhol não ascenderiam, claro, e manteriam o status dos seus pais, mas falariam já espanhol. Mas o influxo galego-falante do campo à cidade deveria manter em proporções mais ou menos constantes a distribuição das línguas no seio destas classes trabalhadores: maioritariamente galego-falantes. (Além, não todo mundo se assimila: continuaria e continua a haver galego-falantes que transmitem o galego na família). Porém, evidentemente a distribuição estável por classes não é o caso actual: não há nem manutenção da língua nas classes trabalhadoras, mas perda gradual. No âmbito urbano, o uso do galego com os filhos é terrivelmente minoritário em todas as classes sociais. Mesmo entre os pais, as cifras de galego-falantes são muito baixas.

Portanto, por que não se dá a situação típica de função da Lengua para o ascenso social? Será porque as classes meias assimiladas e já espanhol-falantes “descem” de status de geração em geração? Ou será, antes, porque, apesar da tentativa de ascenso através do idioma, as classes originariamente galego-falantes que se assimilam simplesmente não ascendem? Os pais educam os seus filhos em espanhol para lhes fazer a vida social mais fácil. Mesmo quando a língua da casa é o galego-português, a vida na escola, claro, faz com que os meninhos adquiram o espanhol como língua de relação com seu grupo geracional. Mas os filhos, relativamente falando, afinal não ascendem socialmente. Alguns poderão ter, em termos absolutos, mais recursos e uma vida mais cómoda do que os pais. Mas, como grupo, vão ocupar o mesmo lugar social subalterno relativo e ocupações comparáveis às das gerações passadas. Não “baixa” o espanhol não: deixam de “subir” os novos espanhol-falantes! La Lengua prometida oferece-nos um famoso provérbio que resume cruamente esta situação: Aunque la mona se vista de seda, mona se queda. Esta miragem de falso ascenso social através do idioma reproduz-se em todos os níveis. E os poucos galego-falantes que ainda mantendo o idioma ascendem, não fazem massa suficiente como para se constituir em pontos de referência social para a emulação de condutas por parte dos que permanecem em estratos inferiores: a experiência dos galegófonos “com sucesso” também é excepcional, não paradigmática dum processo social.

Portanto, a causa primeira da perda acelerada do idioma na Galiza não é o próprio mecanismo nocivo e universal de selecção social a meio do idioma: é a falta de mobilidade social real, de dinamismo económico (e disto há dados macro-económicos evidentes), até dentro da lógica capitalista. A lógica capitalista na Galiza leva décadas, se não um par de séculos, a jogar com o famoso fraude comercial da “pirâmide” a grande escala: oferece socialmente investir em Lengua prometendo o ascenso, mas os que ascendem já tinham Lengua e posição alta de antemão.

Em contraste, em qualquer sociedade verdadeiramente “de mercado” onde existe dinamismo, grupos sociais definidos e coeridos por cultura, origem e/ou língua podem chegar a construir o que se chamam sistemas ocupacionais próprios: redes económicas, comerciais, empresariais levadas por membros do grupo, com reprodução da divisão vertical do trabalho, com elites ou proto-elites, com hierarquias sociais internas (como de facto ainda se dá no âmbito rural), com alianças comprometidas entre elas, e portanto com potenciais económicos que se estendem além das fronteiras da “minoria”. São estes grupos que podem ameaçar as “essências nacionais” dominantes, porque os estratos inferiores não precisam emular as condutas das elites da cultura hegemónica: já têm as próprias. Em certas zonas dos Estados Unidos, por exemplo, a língua espanhola chegou nos últimos anos a constituir-se em “ameaça” para a anglofonia dominante (até o ponto de se promulgarem leis restritivas tipo English Only) só quando os hispanos imigrantes e filhos de imigrantes (e descendentes de populações hispano-mexicanas originarias antes da anexação polos EUA) chegaram a constituir, com os instrumentos da sociedade de mercado, sistemas ocupacionais próprios coeridos pola origem, cultura e língua comuns. Não me refiro ao caso (também excepcional) do Miami dos cubanos exilados ou auto-exilados, mas ao de cidades como San Antonio, em Texas. Por contra, mencione-se na Galiza algum sector económico (além da indústria editorial e editorial) onde a língua de relação seja o galego-português, onde trabalhem maioritariamente galego-falantes, onde se dê “lealdade” em termos de alianças económicas endógenas , e onde tanto a força de trabalho como a do capital falem em galego e falem aos seus filhos em galego. Mencione-se algum fragmento de cidade galega onde se poda dizer que, económica e socialmente, isso é a Galiza, não España. Compostela, tal vez? E essa é Galiza, ou “Galicia”?

Em resumo, sem sistemas ocupacionais próprios galegófonos, lusófonos, onde as gentes trabalhem, sejam contratadas e se relacionem em função de relações próximas, familiares, de vizinhança, etc., e que funcionem com capital “galego” e identificação “galega”, as poucas experiências das empresas “galeguistas” (as que se apresentam “graficamente” como tais) ficarão em ilhas folclóricas que emitem as facturas em dialecto, sim, mas nas quais a língua que continuará a ser um vínculo e um recurso é La Lengua. E essa é na prática a língua nacional (la lengua nacional, evidentemente), não o totem idealizado e ideologizado do Galego.

Qual a tarefa, então? A tarefa é expandir essas redes urbanas de classes meias (comerciais, pequeno-burguesas) lusófonas, quer dizer, abrir uma cunha social ascendente que, como a famosa faixa central da “língua sande” que é o catalão (comprimido tradicionalmente entre duas talhadas de pão espanhol: uma, a alta burguesia e aristocracia urbanas hispanófilas, e outra as classes trabalhadoras imigrantes), sirva de ponto de referência para o avanço social. Não são as Zaras as que fazem país, mesmo se fossem galego-falantes: é o famoso tecido social e económico urbano. Estamos (se estamos!) polo menos vinte anos por detrás de países como Catalunha nesta tarefa. E é duvidoso que a Galiza poda fazê-lo com a força económica própria, sem relacionamento efectivo transfronteiriço com as redes económicas lusófonas onde a língua (quer dizer, agora sim A Língua) sim que funciona -dentro da aborrecível lógica que faz as nações- como instrumento para o “avanço social”: Portugal.

Em definitivo, é o âmbito da família, como principal canal de transmissão intergeracional da língua, que o activismo linguístico lusófono deve abordar com uma seriedade que até agora está ausente. Mas tentei dizer que a “família” é sobretudo um agregado primitivo de corpos cinzelados para o trabalho assalariado: uma fábrica que fabrica operários a base de Cola-Cao. E a “família” falará a Língua que lhe prometa, eleitoralmente (nacionalmente), o pão para os filhos.

Golpe económico de ‘Al-Qaeda’?

Publicado em Vieiros

Os resultados das eleições gerais espanholas podem ser fruto dum golpe do terror económico internacional. Uma série de circunstâncias faz pensar num plano detalhado de obscuros interesses, em última instância ligados à crise energética mundial e à luta (verdadeiramente) polo controle dos recursos: o petróleo é absolutamente crucial para a indústria pesada, incluída a armamentística. Dentro da obscena lógica do capitalismo internacional, a matança de Madrid é um sintoma de que, na guerra económica, as oligarquias devem respeitar certas regras de jogo, polo seu próprio benefício. Enumero apenas alguns dados e hipóteses, para que quem tiver mais inteligência, as ligue e extraia conclusões. Tudo isto é tão especulativo como grande é a minha ignorância de muitos factos. Em todo o caso, quando se dão eventos históricos desta magnitude é legítimo perguntar-se: A que interesses beneficia a nova situação?

Concorrem nestes acontecimentos vários factos recentes. Podem ser coincidências, ou pode ter sentido ligá-los. Em 5 Dezembro 2003, dous dias antes das eleições parlamentares russas, uma potente bomba estourou num trem de proximidades em Yessentuki, em semelhantes circunstâncias às do massacre de Madrid. Eram as 7:45 da manhã. No ataque morreram mais de 40 trabalhadores e estudantes. A explosão destroçou parte do trem em maneira semelhante à das bombas de Madrid. Discutiu-se se fora um ataque suicida ou uma acção por controle remoto. Putin atribuiu o atentado a “separatistas chechenos”. Nunca se soubo quem fora. Dous dias depois, Putin ganhou esmagadoramente as eleições. Em 29 Dezembro foi detido um tal Israpilov como implicado nos ataques. Encontraram-se-lhe explosivos e material para estourar bombas por controle remoto. Em 2001, o Ministério de Interior espanhol informava que alguns dos detidos de “Al-Qaeda” tinham ligações com o terrorismo checheno. Há pouco detiveram-se ainda mais membros de “Al-Qaeda” (dos quais se falou muitíssimo menos que dos da ETA). Em 12 de Março informava-se que agora mesmo o exército EUA está a realizar operações em Algéria contra as brigadas salafistas, que têm membros residentes em Grã Bretanha, França e Espanha. O massacre de Madrid tivo lugar no dia 20 Muharram 1425 no calendário religioso islâmico (de base lunar, não solar), exactamente no aniversário islâmico das grandes manifestações em Espanha e todo o mundo contra a invasão de Iraque (23 Março 2003, isto é, 20 Muharram 1424). Curiosamente, o vídeo de Abu Dukhan Al-Afgani (“Pai do Fume, O Afegão”; Gebel Abu Dukhan é o nome duma montanha em Egipto) que reivindica o atentado, refere-se a um aniversário cristão (“Dous anos e meio depois” do 11 S), o qual faz duvidar do carácter fundamentalista religioso dos autores, da verossimilhança do vídeo, ou de ambas cousas. Em qualquer caso, ao dia seguinte do massacre, milhões de pessoas saíam de novo à rua no Estado Espanhol contra o terrorismo, quer dizer, contra a guerra. Dous dias depois, as eleições espanholas forçavam um novo governo.

As circunstâncias políticas dos países da “aliança” também merecem comentário. Parece que, pouco antes dos atentados, o Partido Popular estava a perder pontos e até a maioria absoluta. Mas para nada estava assegurada tal vitória do PSOE. Por sua parte, o Partido Republicano dos EUA já começara a sua campanha eleitoral capitalizando a mensagem antiterrorista até com imagens do remoto 11 de Setembro 2001. Mas existe também a impressão de que pode ganhar o candidato democrata, John Kerry. Portanto, de cumprir-se alguns prognósticos, sem o atentado de Madrid poderíamos encontrar-nos com um binómio Kerry-Rajoy, não já com o tandem Bush-Aznar. E Blair está também debilitado. Bush representa a possibilidade duma nova intervenção em oriente médio (Irão, Síria) polo controle dos recursos energéticos. Kerry pode significar um hiato táctico na campanha de terror contra o Golfo Pérsico, um hiato no qual, sem abandonar o Iraque, os interesses se dirijam agora a África Ocidental, com grandes reservas de petróleo ainda sem explorar (sem dúvida um novo “golfo pérsico”, como alguns analistas o chamam, mas sem as turbulências daquele). África pode ser, por uma série de razões, um alvo militar e económico muito mais fácil para o capital ocidental.

A presença de tropas ocidentais em Iraque garante o estabelecimento duma “constituição democrática” que ameaça as famílias oleogárquicas do Golfo. O “efeito dominó” dos ataques de Madrid pode acelerar a retirada de tropas ocidentais de Iraque, uma situação mais aproveitável para o “fundamentalismo islâmico” (quer dizer, os oligarcas sauditas, “Bin Laden” incluído). Certo, a possível presença de tropas conjuntas da ONU no Iraque não elimina totalmente o risco de ataques em países ocidentais. Mas é possível que a nova constituição definitiva (?) que surgir das eleições em Iraque (não antes de finais de 2004) tenha muito pouco a ver com a provisória actual. Em todo o caso, uma “democracia” no Iraque debilitaria a autocracia saudita, por exemplo, e certos opressivos valores do “Islão” em que se escuda a sua forma de dominação.

A tragédia de Madrid e o resultado eleitoral em Espanha podem precipitar uma reconfiguração das peças na guerra económica internacional. A retirada das tropas espanholas poderia relaxar a ameaça de mais atentados em território espanhol: simplesmente, o terror é uma táctica, não um estado permanente de cousas. Mas é claro que outra parte beneficiada é “Al-Qaeda”. O ataque demonstra que, quando se vulneram flagrantemente as regras da guerra santa entre as grandes famílias económicas (uma vulneração que começou muito antes do ataque do 11 S 2001, que pode ser interpretado como uma advertência perante um plano já pré-desenhado dos EUA para invadir o Afeganistão) pode haver terríveis consequências. A capacidade de pressão do “terrorismo islâmico” é, neste sentido, muito grande. O petróleo está fundamentalmente sob os “seus” territórios, nos “seus” países. Os interesses de “Al-Qaeda” não são só recuperar os “seus” territórios (todo o Islão!, incluindo o Iraque) para reestabelecer um regime teocrático medieval, mas também ter bons clientes petroleiros entre os países industrializados: a China, cliente de Irã; Europa e Rússia, clientes do Iraque; EUA, cliente de Arábia Saudita. Donos do seu petróleo, os oligarcas poderiam negociar mais facilmente com uma Europa mais dócil militarmente (Alemanha, França, uma Espanha reincorporada, uma Rússia de Putin) do que o fazem com o ávido eixo anglo-saxão. E a sua mensagem é que, se a voracidade do grande capital industrial de Ocidente deseja este petróleo, agora que só restam tão poucas décadas dele, deve aprender a pedi-lo e a negociá-lo, sobretudo quando as famílias oligárquicas da região têm de garantir também a sua distribuição para os próprios interesses da sua classe. O capital industrial americano, por exemplo, deverá diversificar os seus alvos de “segurança energética” (algo explícito, além, nas próprias recomendações dos think-tanks conservadores americanos), olhando para a África e para a América do Sul. Por isso, espero atinar com a hipótese de que “França” ou “Alemanha” não são objectivos de “Al-Qaeda” na altura. E espero que esteja errada a hipótese de que sim que o são “Grã Bretanha”, “Itália”, “Polónia”, “EUA” e “Austrália”, estes dous últimos, com próximas eleições em finais de 2004.

Com a invasão de Iraque, o sector hegemónico do capital espanhol (“Aznar”) apontou-se a uma viragem arriscada: favorecer-se dos EUA para as contratas petroleiras em Iraque, e talvez para a exploração do possível petróleo das Ilhas Canárias e do seguro petróleo frente à costa do Sara Ocidental, calculando que dentro do clube de Europa não poderia competir com economias mais fortes polo reparto dos recursos. Numa ocasião, dantes da invasão de Iraque, Aznar disse-lhe a Zapatero no parlamento: “Se você estivesse no meu lugar, faria o mesmo”. O apoio de “Espanha” aos “EUA” era, portanto, uma questão de Estado: de assegurar-se o acesso aos decrescentes recursos por décadas por vir. Essa política está a fracassar tragicamente, com milhares de mortes no Iraque, Marrocos, Turquia, Espanha. Agora o relativamente modesto capital industrial espanhol deveria restaurar alianças com o europeu, sem pretensões de grandeza económica, e com muita cautela perante os actuais e futuros detentores do petróleo mundial.

Mas provavelmente ainda restem muitas décadas de tragédia: até que dure o petróleo. No entanto, como sempre, será a gente de toda parte quem continuará a pagar o piche com sangue.

Aquelarre

Publicado no Semanário Transmontano • No Portal Galego da Língua

Depois da Grande Finale eleitoral de hoje, há jogo o domingo em España. Eu vou jogar, vou votar, vou introduzir entintadas papeletas num féretro pequeno donde sai o fumo dos ausentes. São féretros que cheiram a Iraque, Palestina. Levam as letras de Alá em tinta de petróleo. Os versículos do Al-Corão chegam à tua casa em recolhidas papeletas. Cada profeta canta as suas virtudes na única Língua do universo. São todos enormes ídolos masculinos, representados sem imagens, representados por palavras sagradas. Vou votar no dia 23 do mês de Muharram do ano 1425 após a Hégira do profeta, no sonoro 14-M 2004 após a Morte do profeta, que era o mesmo ser monstruoso. Vou votar contra mim próprio, pois cada partido ao que vote é contra mim próprio, cada brigada de Abu Hafs Al-Masri reencarnada em brigada eleitoral, ou viceversa, que são todos o mesmo ser monstruoso, com várias cabeças comparáveis e uma única devoração unánime. Vou votar a parte desse monstro, aquele que ainda não me devore a ilha de utopia que sobrevive no meu centro. Vou votar contra a palavra, com o absoluto silêncio dos altivos vencidos, vou votar na silenciosa língua portuguesa que hoje representa por puro acaso o mar dessa inútil utopia: vou votar sem língua, como as alimárias primitivas. No dia 23 do primeiro mês de Muharram quando Mohammed se expulsou a si próprio da Mecca como um Cristo do deserto para maior glória da vesânia, vou alimentar orgulhoso as filas do silêncio, orgulhoso da inútil resistência. Porque não quero ser esse dia ainda mais resto de mim próprio. Vou votar em preto, em piche e sangue, que são as duas cores das entranhas dos seres primitivos. E essa noite celebrarei com ânsia o banquete das cifras, e trocarei sons guturais com os outros amigos derrotados, e celebraremos o aquelarre, e esperaremos pacientes outra guerra refugiados debaixo dos tanques que são as casas, as garagens clandestinas, onde naufraga o amor, o sexo, que são o mesmo prelúdio da morte. E serei feliz, como hoje, como todos os seres primitivos. Aberta a boca ao alimento, enfrente do ecrã e dos pálios, aberta a boca enorme ao alimento.

“Osmose” e redes sociais na transmissão da língua: O papel dos locais sociais

Publicado no Portal Galego da Língua

Assistim ontem a parte do interessante I Fórum da Língua organizado polo Movimento Defesa da Língua, com a presença de numerosos colectivos luso-reintegracionistas do país. Estivem como público nas sessões sobre ensino obrigatório da língua, e sobre locais sociais. Uma das preocupações condutoras do que ali se falou referia-se, naturalmente, à questão central do luso-reintegracionismo: como espalhar o uso da língua! Isto foi explícito na intervenção de Ignácio Orero, o representante da Fundaçom Artábria na mesa sobre locais sociais: ele perguntou retoricamente pola (inexistente) “fórmula mágica” para promover a ré-galeguização. A experiência comum relatada por várias associações é que a tímida transmissão do idioma entre os jovens espanhol-falantes ou neo-falantes que acodem aos locais se dá por “osmose”, e que uma “osmose” semelhante se dá também entre os próprios activistas da língua nos locais, que vão incorporando-se ao luso-reintegracionismo gradualmente, por pura “naturalidade”.

Com efeito, esta “osmose” é parte consubstancial no processo de naturalização social do idioma. Mas, em que consiste exactamente este processo, do ponto de vista sociolinguístico? Como se pode incidir nele? Como se pode acelerar a transmissão no trabalho de base?

Para abordar este processo, é fundamental compreendermos, focarmos e privilegiarmos a noção de rede social ou retícula social, e compreendermos também o valor da língua como recurso transmitido socialmente. Uma rede social é um conjunto de pessoas ligadas por relações sociais mais ou menos habituais, e conectada com outras redes por linhas mais ou menos fortes ou débeis de relação também social. Cada pessoa faz parte de múltiplas redes sociais interligadas. Teoricamente, cada um(a) de nós pode ser concebido/a como o centro de uma rede, que conecta com outras. Frente à noção de grupo, que destaca o indeterminado (um “grupo” é como um conjunto de pontinhos movendo-se soltos dentro dum círculo, dum “conjunto boleano”), a noção de rede destaca a relação e a troca e circulação de recursos: materiais (como objectos, bens) e simbólicos (valores culturais, ideologia, língua). Uma rede pode ser vista, assim, como um conjunto de pontinhos (pessoas) ligados por linhas que simbolizam a sua interacção mais ou menos habitual ou mais ou menos frequente. A maior interacção entre as pessoas, maior reforçamento das linhas de relação. E, enquanto o solapamento de “grupos” consiste na sobreposição desses círculos, desses “conjuntos boleanos” a que algumas pessoas “pertenceriam” e outras não (como se “pertencer” a um “grupo” consistisse em levar um boletim de identidade no cérebro), a ligação (mais ou menos débil ou forte) entre redes descansa no agir dos indivíduos em mais de um esquema de relações bi-direccionais. Contrastem-se estas duas representações dos “grupos” e das redes:

Representação de dous "grupos" sociais
Representação de duas redes sociais

A transmissão da língua e da cultura ao longo destas redes só ocorre e só pode ocorrer a meio das práticas sociais, que são sempre, práticas de intercâmbio de algo: actividades conjuntas, conversas, o empréstimo dum objecto cultural (livro, revista, música, software), que adquire assim um valor simbólico: não é só o livro físico o que se troca, mas o que contém, e até parte da história do seu itinerário de circulação. Por exemplo, amiúde estamos tentados a aceitarmos mais facilmente um objecto cultural que chega de uma pessoa “de confiança” do que o mesmo objecto se chegasse dum desconhecido ou dum “adversário”, porque o objecto transporta com ele o simbolismo duma cadeia de relações. Certas seitas religiosas sabem isto muito bem!: deixam-che na casa um livrinho, que nem lês, mas que é pretexto simbólico para a breve conversa que tivestes na porta e para futuras conversas esperáveis sobre o mesmo pretexto. A Opus Dei totemiza o seu Camino como objecto de troca, e nos grupos dos partidos marxistas circulava e/ou circula o Livro Vermelho de Mao, o Que Fazer, o Marta Harnecker…

A “osmose” na naturalização social da língua é fruto, portanto, da circulação de recursos (incluída a língua) entre participantes duma rede social, e da sua eventual passagem para outras redes. Por isso, a presença de materiais lusófonos e lusógrafos nos locais sociais (já não materiais “galegos”, mas galego-portugueses) é, como veremos, crucial para a transmissão do reintegracionismo.

Acho que é fácil, portanto, compreender a função da circulação de recursos quando estes são materiais. Ora bem, como entra especificamente o recurso e prática da fala neste processo? Visto que a fala não é “material” (as palavras têm uma base física acústica, claro, mas não são permanentes), como se “distribui” então a fala ao longo das redes? E para que serve?

Com efeito, quando eu falo em galego-português (“galego reintegrado”) não transmito materialmente nada: depois de escutar-me, o meu ouvinte não “possui” materialmente nada novo. Se era dominantemente espanhol-falante, não deixa de ter esta competência em espanhol. E, sim, se era também galego-falante, aspectos da minha competência –um uso linguístico, uma construção, um pedaço de calão– podem ser assimilados por ele/a, e repetidos posteriormente. Mas nada disto é material. Em função de que processo social, então, podem estes actos de fala contribuir para espalhar o idioma entre falantes não habituais, se, afinal, a escolha de um ou outro idioma vai continuar a ser um acto individual? Um livro em português que nos emprestaram há que devolvê-lo, e contribuir assim para o reforçamento das relações de rede. Mas, uma conversa escutada em português há que devolvê-la também?

É aqui onde entra a noção de prática social, e da fala como prática. Frente a um acto individual (como escovar-se os dentes, por exemplo), uma prática social é um acto que manifesta valores colectivos, sempre interpretáveis no contexto (modernidade ou “tradição”, utilidade ou inutilidade, camaradagem ou hostilidade, normalidade ou anormalidade, urbanidade ou ruralidade, resistência ou acomodação, poder ou subalternidade), manifesta também ideologias e fragmentos de identidade(s), relaciona indivíduos e portanto cria e reforça redes, e (de maneira fundamental) cria expectativas sobre as próprias formas das relações futuras, incluída a língua utilizada. Por exemplo, se certa conversa de grupo se desenvolveu maioritariamente em galego, a língua associa-se de maneiras subconscientes a outros componentes da situação: as pessoas, o lugar, o momento, o tema, o tom ou “humor” geral, os objectos manipulados como recursos (bebida ou comida, revistas), etc.

Neste sentido, é frequente –e por isso é fundamental para a naturalização do idioma– o facto de a língua utilizada numa primeira interacção com uma pessoa ser com frequência a língua dominante dessa relação, quer dizer, desse fragmento de rede. O interlocutor associa aspectos da prática do falante com o contexto, e também com aspectos da “identidade” do outro falante e da sua “ideologia” (dos valores que dão certo tipo de coerência aos seus actos). Certo, a “identidade” não pré-existe: não somos o que “somos”, mas o que fazemos que somos (“somos” muitas cousas à vez, mas fazemos-ser algumas destas cousas selectivamente). E, certo, a “ideologia” não se vê: faz-se também, através das práticas. Mas, precisamente por isso, na mente do nosso interlocutor (que é onde se constrói o social), geram-se expectativas não só sobre como nos vamos comportar no próximo encontro (que práticas vamos levar a cabo), mas também sobre quais serão as próprias práticas sociais mais adequadas dele ou ela. E assim, em encontros posteriores, o que se vai “trocar” entre as pessoas vão ser também as palavras que se ajeitem a essas expectativas de conduta. Inclusive nos casos em que ambas pessoas sejam no fundo (por extracção linguística) espanhol-dominantes, se a sua primeira conversa foi em galego, é muito possível que esta prática do galego se mantenha entre eles… se o contexto continua a ser favorável.

Mas, o que fazer precisamente para que esse contexto continue a ser favorável? Porque, o que acontece numa situação bastante gueotizada do galego, é que as ligações entre o conjunto de redes jovens galegófonas e o conjunto de redes sobretudo hispanófonas são muito débeis. Quer dizer: Existe uma “fronteira” na ordem sociolinguística que consiste em que amiúde as práticas galegófonas dos locais sociais e outros âmbitos restritos não transcende para outros âmbitos porque não há suficiente fluidez e sobreposição de redes: numa cidade, os poucos jovens galegófonos reintegracionistas são simultaneamente membros da mesma associação cultural, do mesmo grupo de amigos, do mesmo grupo político. Fazem-se, portanto, redes densas (e intensas), mas pouco ligadas com outras. Os contactos com outros tipos de pessoas são mais débeis e ocasionais. E, embora a prática monolingue continue fora da rede “guetoizada” por parte dos indivíduos, não existe Aí Fora (fora das paredes do local social) suficiente densidade de práticas galego-falantes como para produzir a “osmose”. Por contra, os outros “guetos” dos jovens espanhol-falantes que se reúnem noutros lugares não são tão guetos: as suas práticas (a língua) encontram-se e contribuem para consolidar outras redes sociais: familiares, profissionais, do mundo público, e, sobretudo, da grande rede social que é o imaginário colectivo de “España”.

A questão fulcral, portanto, é como ampliarmos gradualmente as mais escassas redes jovens onde domina o galego, e conseguirmos que a fala e os recursos de língua associados (escrita, música, cinema, software) ultrapassem essa fronteira invisível. A questão não é só que os locais sociais cresçam por dentro, mas que as suas práticas e significados saiam fora. Estas duas gráficas poderiam representar idealmente o começo do processo:

Uso das línguas em duas redes
Transmissão da língua ao longo de redes

Em circunstâncias favoráveis, com o estabelecimento de novos contactos pola rede lusófona, a prática da fala deveria estender-se. Nas circunstâncias mais desfavoráveis, não aconteceria nada novo. Mas uma cousa é evidente: a fluidez entre redes não pode ser negativa para a lusofonia, pois em geral a prática monolingue entre essas redes está tão assente que, a partir desses centros de irradiação da língua, não haveria risco de experimentar o processo contrário (assimilação ao espanhol).

Para favorecer este processo ideal, a circulação de recursos que acompanha a fala lusófona deve ser suficientemente cativante para os membros das outras redes como para que, de pouco a pouco, poda ser alternativa efectiva às culturas anglófona e hispanófona dominante. Deve produzir-se uma identificação crescente entre estes recursos lusófonos e o imaginário da “Galiza”, e, mais ainda, da “Galiza jovem” (e mais ainda, duma Galiza internacional!), sem por isto exigir uma total viragem na adscrição social (identificação) dos neo-falantes. O negativo “efeito gueto” reforça-se quando determinada prática (a fala lusófona) vai indefectivelmente unida a uma dada “ideologia” e a uma dada “identidade” que se tornam em contra-senhas de adscrição. Por exemplo, quando um neo-falante potencial não compartilha aspectos importantes das “ideologias” e “identidades” dos seus interlocutores numa rede galegófona fechada, e quando estes valores estão ferreamente unidos à prática da língua, pode ser mais fácil para o neo-falante potencial assinalar e destacar o seu posicionamento não mudando de língua: mantendo-se no espanhol. E, de maneira complementar (ainda que poda soar paradoxal), em circunstâncias específicas a prática monolingue em galego sem fissuras perante um neo-falante potencial pode não ser a melhor táctica para um necessário reconhecimento mútuo e posterior convergência na lusofonia: falar a linguagem da outra pessoa às vezes transcende falar numa língua dada, e certos usos muito pontuais e simbólicos do espanhol podem favorecer uma inicial linguagem comum.

Em conclusão, é tarefa das associações de base e locais sociais desenharem as tácticas concretas para a consolidação, alargamento e ligação das redes lusófonas habituais, também fora dos locais. Para começar, precisa-se, acho eu, duma quantidade maciça de materiais lusófonos e lusógrafos atraentes que veiculem as relações sociais, face a obter-se uma maior visibilidade da língua como referente natural das culturas urbanas. É importante, por exemplo, que destes materiais se vá destilando e utilizando a necessária linguagem específica (o calão jovem) que veicule novas relações de rede. Estas utilizações simbólicas das gírias luso-brasileiras, inseridas na fala galega e até no espanhol, invocam inconscientemente um distinto imaginário.

E para isto também se precisa, sem dúvida, da articulação efectiva com outras redes lusófonas sólidas ali onde se dão com toda naturalidade: em Portugal (por pura proximidade geográfica e social). O intercâmbio de actividades e visitas de pessoas com outros locais sociais e associações de base de Portugal, por exemplo, seria um bom instrumento para as associações contribuírem para a construção dum novo imaginário com base real (não apenas mítica), talvez mais efectivo do que qualquer umbiguista acto minoritário no que estão ou estamos os de sempre.

Apesar de que dalgumas perspectivas se queira negar, do que estamos a falar é em definitivo do contributo “de abaixo” para a construção duma língua nacional, até quando por ideologia se recuse chamá-la assim. Porque uma língua nacional não é a língua duma “nação”: é uma língua internacional. Evidentemente, sem trabalho de elite “de acima” por parte das instituições, partidos e “grupos” (quer dizer: redes!) dirigentes, nunca haverá língua nacional neste país. Mas, se por acaso se está a caminhar nessa direcção, quando a situação madurar (digamos, daqui em vinte anos), se não houvo antes caldo de cultivo “de abaixo”, poderá existir tal vazio de língua portuguesa nos grupos mais jovens que se encontrará maioritariamente ainda mais resistência a ela do que agora.

Mas esse é um segundo capítulo por escrever. Se há interesse, também o podemos debater.


Do Iraque a São Tomé: Preparando uma longa resistência

1. A crise energética mundial

Temo-me que este texto poderia ter sido escrito há anos (talvez décadas), ou poderá ser ré-escrito no futuro por vir. O projecto de controlo dos recursos energéticos mundiais polas oligarquias ocidentais -sobretudo as que só tangencialmente se podem chamar “dos Estados Unidos”, pois as principais Raças que dividem o mundo são a classe e o género, não a nação– é logicamente longo, detalhado, cuidadoso, consciente, sério e evidentemente responsável. Ao longo da história, nenhum grupo dominante deixou de preservar por todos os meios possíveis os seus interesses já não para eles próprios, mas para os seus descendentes e herdeiros sociais. A iminente escassez dos recursos energéticos pesados é uma evidência tão clara que só uma cegueira colectiva pode levar a subsumir os motivos de muitas “guerras” actuais sob escusas ideológicas. Diversas fontes indicam que, ao ritmo actual de produção petrolífera, e para as reservas que se conhecem, ao planeta lhe restam uns 50 anos de petróleo. As reservas dos EUA durarão 10 anos; as do Reino Unido, 5. As de Arábia Saudita, mais de 100. Mas, em toda lógica, uma vez acabadas as reservas num lugar, e com o crescimento económico exponencial, a produção dos jacimentos restantes deverá aumentar, e esses 100 anos da Arábia Saudita ficarão em menos. Mesmo se se acharem novos jacimentos e se melhorarem as técnicas de extracção (na altura aproximadamente a metade do petróleo é desaproveitado no processo), estamos a falar só de décadas (não séculos) de reservas. Nas páginas excelentemente documentadas de Planetforlife (http://planetforlife.com/OilPeak.htm ) mostra-se como a curva de reservas mundiais de petróleo e gás descerá a partir de 2010, e em 2050 as reservas estarão à altura, aproximadamente, das de 1965:

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Mas, reparemos, as necessidades energéticas mundiais em 2050 serão muitíssimo maiores do que em 1965! Estes são arrepiantes factos, não uma alucinação dos ideólogos da conspiração. O horizonte da “segurança energética”, como o discurso económico conservador o denomina, está muito próximo: a escassez de petróleo atingirá, se não os meninhos de agora, sim os seus filhos. Planetforlife situa este horizonte em 100 anos: “Um mundo sem petróleo não é o futuro que imaginam a maioria dos americanos, mas é um facto. Precisa-se uma visão de longo prazo: sobre 100 anos”. “Longo prazo”, cem anos? 100, 70, 50 anos, pouco importa: isso não é nada na história duma classe. Quantos séculos durou a nobreza feudal? E quantos poucos levamos de capitalismo industrial?

No massacre de Cosova e Jugoslávia não transparentaram tão claramente os interesses económicos, também conectados dalguma maneira ao acesso ao petróleo de Ásia Central. Mas, no rosário de simulacros cada vez mais sofisticados em que consiste o imperialismo militar ocidental, o capital chegou ao seu mais alto grau de transparente cinismo. O necessário consenso popular constrói-se agora polo reconhecimento explícito das causas das invasões militares. Enquanto na segunda guerra do Golfo, perpetrada polo pai de Bush simplesmente como representante da óleo-garquia americana, o motivo explícito era a “libertação” dum país (Kuwait) patentemente invadido polo exército doutro tirano, nesta terceira “guerra” de Iraque que continua, as conexões com os interesses económicos saem à luz da maneira mais evidente.

Ignoram-se ainda as intenções exactas da atrocidade das Torres Gémeas de Nova Iorque. Sabe-se que os fundos para essas acções vinham da Arábia Saudita, e que o entramado principal que suporta a metáfora de “Ben Laden” é também a Arábia Saudita, país extraterrestre no seu ordenamento jurídico e na coalescência entre a religião, o estado, a classe e a enorme família dos Saud, e paradigma do fascismo petro-monárquico. Sob o chão expoliado polo estado de Arábia Saudita acha-se a maior reserva de petróleo do mundo. Sob o chão expoliado polo sempre militar estado de Iraque acha-se a segunda. A economia dos EUA depende na altura num 54% de petróleo estrangeiro. Em 25 anos (se ainda há mundo) dependerá num 70%. O panorama é apavorante, não nos enganemos. Um pergunta-se em que medida se podia sentir de pressionada a oligarquia saudita sabendo que era a principal fornecedora do seu regime aliado americano. Até quando poderiam continuar a subministrar petróleo? E quanto restaria para eles próprios, para a perpetuação da sua casta? Embora pareça irónico, tanto o ataque de Nova Iorque como a conquista de Iraque para a libertação das suas grandes reservas de petróleo resultam positivos para Arábia Saudita: no jogo do capitalismo, o melhor que podes ter é um bom competidor, que será o novo petróleo de Iraque quando saia maciçamente ao mercado, agora pago em dólares. Voltará a baixar o euro.

2. O novo cenário de África Ocidental

Quanto à visão do actual regime norte-americano, a sua lógica não tem fissuras. É o pensamento conservador de sentido comum mais enraizado nas masculinas hierarquias familiares: Há escassez de arroz entre os vizinhos do teu prédio. Se tu tens mais poder, e observas que o teu vizinho tem mais arroz, mas vende-lhe-lo (em euros, não em dólares) aos outros vizinhos (Europa), por acaso não entrarás na sua casa, capturarás o chefe de família que os curdos escondem drogado num zulo e apropriarás-te do arroz para a tua família? Não quererás que os netos da tua casta continuem a manter os teus privilégios, para o qual devem comer desse arroz? E não considerarás que é injusto esse reparto desigual do arroz no teu mundo? Substitua-se arroz por petróleo, e vizinho por Iraque, e obtemos o panorama.

Mas o panorama continua. Outro vizinho com muito arroz é Irão, que o vende sobretudo à China. Também haverá que entrar dalguma maneira na sua casa (com cuidado, porque a China é nuclear e espreita) para que no-lo “venda” a nós (que casualidade que um membro do clã Bush é alto cargo num importante Comité de relações sino-americanas). E mais tarde ou mais cedo haverá que controlar Síria. E, logo, haverá que ir procurando o arroz dos outros vizinhos ainda pobres, quase desconhecidos, que ignoram que têm grandes recursos nas suas alazenas fechadas: o ocidente africano, por exemplo, novo “teatro” da expansão militar norte-americana. Informes dos conservadores Programa para África do Center for Strategic & International Studies dos EUA ou do grupo AOPIG (African Oil Policy Initiative Group) do Institute for Advanced Strategic and Political Studies, baseado em Israel mas com actuação também nos EUA, falam explicitamente da necessária “diversificação” das fontes de energia dos EUA, por “segurança energética”, e do carácter estratégico de África e África Ocidental especialmente (ver p.ex. “U.S. Oil Stakes in West Africa“, por Jessica Krueger). Outras fontes falam da possibilidade dum novo Golfo Pérsico em África em termos de reservas. O petróleo do ocidente africano, de bastante boa qualidade, é mais ligeiro e mais barato de transportar aos EUA. Além, a maioria acha-se sob a plataforma continental, não na terra firme, que é sempre motivo de conflito. Em África não há grandes exércitos que poderiam molestar. Há, sim, “corrupção” e lutas “tribais” que convém destacar, para impor a necessidade de certa ordem e estabilidade, com as quais a maquinaria capitalista funciona melhor. Em troca da intervenção americana em África Ocidental, e de bons acordos comerciais para a “ajuda” na exploração deste petróleo, estabelecerão-se regimes democráticos “estáveis”, desenvolverão-se minimamente as comunicações internas, e impulsará-se um sistema de ensino “universal” e “democrático” comparável ao que sofremos em Ocidente, requerimento ineludível para o disciplinamento ideológico e para a reprodução da classe política. Polos hoteis de luxo dos países de África Ocidental pululam de cada vez mais executivos americanos do petróleo, procurando acordos para um futuro próximo. Obviamente, precisará-se estabelecer também bases americanas de controlo e para treinamento militar para os caducos exércitos africanos. Depois, haverá que “modernizar” os exércitos africanos com armamento pesado: haverá que lhe-lo vender em troca de petróleo. Esta “diversificação energética” reduzirá também a dependência dos EUA do petróleo de zonas “geo-estratégicas” conflituosas, como Oriente Médio.Um claro exemplo de como isto já se está a cumprir encontra-se no acontecido em São Tomé e Príncipe. Um informe da AOPIG de Janeiro de 2002 para a administração Bush falava explicitamente de

“Declarar o Golfo de Guiné área de “interesse vital” para os EUA; estabelecer um sub comando regional semelhante ao US Forces Korea; esse sub-comando regional deveria considerar decissivamente o estabelecimento duma base regional, possivelmente nas ilhas de São Tomé e Príncipe“.

Apenas sete meses mais tarde, em Agosto de 2002, o presidente eleito de São Tomé e Príncipe, Fradique de Menezes, um rico homem de negócios, anuncia planos para estabelecer uma base naval dos EUA no país. Em Outubro de 2002 De Menezes substitui o primeiro ministro Gabriel Costa, do Movimento para a Libertação de São Tomé e Príncipe, a quem meses antes encarregara formar governo por o MLSTP ser o partido mais votado. Em Julho de 2003, um golpe de estado militar com elementos de antigos combatentes depõe De Menezes e o seu governo sob acusações de corrupção e passividade perante a injustiça social. Após uma semana de negociações e conversas entre a facção golpista, o embaixador dos EUA Kenneth P. Moorefield e representantes de Nigéria, Gabão e outros países, De Menezes é restituído na presidência. Moorefield, um condecorado militar texano que lutou no Vietname, fora delegado comercial em Venezuela durante o mandato de Bush pai, e tivera outros cargos diplomáticos. Em Novembro 2003, Moorefield anuncia que o exército dos EUA colaborará com a “reestruturação” do exército são-tomense. Embora São Tomé e Príncipe ainda não explorou uma gota de petróleo, espera-se que a extracção comece em 2007. As companhias ExxonMobil, ChevronTexaco, Royal/Dutch Shell e TotalFinaElf têm indicado interesse nas explorações. Ao meter as mãos também em São Tomé e Príncipe, os EUA quer previr a possibilidade deste estado cair na órbita da mais poderosa Nigéria (com quem compartilha a exploração do petróleo da zona), sob crescente influência islámica.

3. O discurso e os factos

Mas, porque o petróleo? Se os maiores recursos energéticos mundiais ainda por explorar estão no gás natural, porque ainda o carácter estratégico do petróleo? Cada vez se está a utilizar mais o gás natural e o gás em estado liquado (que ocupa 600 vezes menos que o natural –melhor para o transporte– mas que é muito mais perigoso de manipular). Sectores crescentes da economia capitalista (telecomunicações, informática) podem se reconverter a outras fontes energéticas, até a solar. Mas a indústria pesada não é reconvertível não: precisa de fuel, de derivados do petróleo. E a indústria pesada (a do aço, por exemplo) é a que fabrica, entre outras cousas, as armas que se empregam na conquista dos territórios onde se acha o petróleo para fabricar as armas. É também com maquinaria pesada que se fabricam muitos outros bens de consumo: precisa-se petróleo. O círculo vicioso é interminável.

Portanto, não se prevê no futuro imediato saída a esta lógica do grande capital industrial, do que Chomsky chama o “complexo militar-industrial”. Parte desta lógica é transparentemente articulada no discurso das oligarquias industriais (os EUA, Europa, Japão e outros países). Os think-tanks ultra-conservadores norte-americanos, que nutrem o pensamento dos “falcões” do Pentágono (muitos deles filhos, por certo, de judéus liberais que sofreram o nazismo ou o exílio), expressam as metas com uma clareza que não precisa tradução. O Project for the New American Century (Projecto para o Novo Século Americano), ao que pertenciam o intrigante Dick Cheney e Wolfowitz, elaborou em Setembro de 2000 (antes das Torres Gémeas!) o informe Rebuilding America’s Defenses (“Reconstruindo a Defesa Americana” http://www.newamericancentury.org/RebuildingAmericasDefenses.pdf ) que explicita sem lugar a dúvidas o lugar militar dos novos EUA no mundo:

«O liderado global de América (sic), e o seu papel como garantia da paz actual entre os grandes poderes, depende da segurança da pátria americana; da preservação dum equilíbrio favorável de poder em Europa, no Oriente Médio e a região circundante produtora de energia, e no Leste asiático; e da estabilidade geral do sistema internacional dos estados nacionais relativamente aos terroristas, ao crime organizado, e a outros “actores não estatais”».

Em breve: não estamos a falar só de interesses pontuais tácticos (eleitorais ou de hegemonia cultural), mas duma estratégia geral de colonização (num recente artigo em EL PAÍS, Carlos Taibo desmonta o mito da “globalização” económica e caracteriza o processo actual como de pura americanização), envolvida, sim, numa nauseabunda retórica cristã megalómana e messiánica, comparável à dos sionistas, os fanáticos islâmicos ou os fundamentalistas hindus, mas que não é mais do que retórica. E o que contam são os factos: as armas, não as metáforas. Seria ingénuo pensar que as actuais elites industriais e as petromonarquias árabes não planificam a longo prazo o futuro das suas castas, sobretudo quando este futuro está tão próximo. Para eles, trata-se duma questão de sobrevivência.

Não tento psicologizar nem personalizar: cumpre entender esta lógica para tratá-la como uma verdadeira encruzilhada económica e política global. Não compartilhar (naturalmente) o modelo económico capitalista e lutar por outro(s) não resolve o dilema energético. As diferenças entre o Capital da “velha Europa” e o dos EUA neste assunto são de táctica, não de filosofia geral. Portanto, muitas das futuras guerras, invasões, massacres e outras violações do triste “direito internacional” serão de novo uma função da tensão entre os blocos económicos, e das oportunidades pontuais dos seus regimes. Por exemplo, a decisão de intervir proximamente em Síria ou no Irão de uma maneira ou outra dependerá de se não é mais rendível intervir, por exemplo, no Chad, no Sudão, ou em Nigéria, onde “lutas tribais” (dizem as notícias periodicamente) obstaculizam a produção petrolífera. Esta dinâmica poderá ter o hiato duma administração americana do partido Democrata (mas, lembremos, foi Clinton também quem em 16 Dezembro 1998 ordenou atacar objectivos civis de Iraque), ou de outros dirigentes republicanos que representem interesses doutras famílias económicas. Mas a lógica é imparável, e os detalhes do processo são contingentes. Por exemplo, o ex-candidato democrata Al Gore também tem interesses na Occidental Oil, que passa um importante gasoduto por Colômbia. Colômbia, portanto (sob a escusa da guerrilha terrorista e do narcotráfico) poderá ser mais um próximo objectivo. Devemos por isso estar alertes aos avisos retóricos dos dirigentes dos regimes económicos ocidentais contra os países do “terrorismo”, simplesmente porque esse discurso pode dar dicas sobre os possíveis lugares de intervenção próxima: a legitimação da barbárie precisa do anúncio prévio às massas. As frequentes viragens na delimitação do “eixo do mal” internacional podem expressar interesses tácticos cambiantes: poucas semanas depois de Líbia deixar de pertencer ao “eixo do mal” por “pregar-se” à condição de não produzir “armas de destruição em massa”, a ministra espanhola Ana Palacio visita o ditador Gaddafi. Repsol já tem contratas em Iraque. Mais petróleo, é a guerra. O mesmo se pode dizer sobre os cambiantes apoios de regimes políticos e partidos a determinadas “causas” ou “povos”, oprimidos ou não.

4. Uma longa resistência

Em resumo: devemos estar preparados para uma longa resistência, uma resistência que pode durar toda uma vida. E aqui o dilema está em se é possível ainda proclamar a utopia e fazê-la compatível com o protesto pedestre. É evidente que os estados assentes em territórios que, por pura coincidência, possuem o petróleo, não têm o direito legítimo de fazer o que queiram com um recurso que é de todo o planeta. Os povos que ali vivem, sim, têm o direito e a obriga de administrá-lo, mas há que economizá-lo e reparti-lo. A utopia é que, se compreendéssemos que estamos no mesmo barco que afunde, fariam-se desnecessários os estados fragmentados, perante a iminência do desastre (económico, ecológico, sanitário, humano). A realidade é, porém, que o desastre ainda é selectivo, e igual que se matam ratos que poluem os “nossos” esgotos, se é necessário exterminam-se colectivos inteiros que se interpõem no “nosso” labor de latrocínio.

Por isso, a alternativa é procurar negociar os termos do privilégio de classe sobre o petróleo. As organizações internacionais, partidos, grupos de pressão, ou o próprio Foro Social Mundial devem tentar negociar no âmbito mundial e local, nos mais altos níveis e instâncias, os termos e condições em que se pode efectuar o controlo de classe dos recursos. Desde a resistência anti-colonial deve procurar-se a interlocução sobre uma politica energética mundial que evite os genocídios e o império militar, e devem explorar-se com inteligência as fissuras naqueles regimes económicos (a “velha e caduca Europa”, por exemplo) que ofereçam outras “soluções” internacionais, igualmente antidemocráticas por capitalistas, mas menos sanguentas. A resistência humana em favor duma nova sociedade será longa, muito longa (e sem garantias de que nunca vaia dar frutos!). Poderá desaparecer George W. Bush do panorama mundial, sujeito a contingências eleitorais. Poderá oscilar Europa entre períodos mais negros e mais grises. Mas o projecto de apropriação dos recursos por parte do capital não tem volta atrás. E, dentro do ódio ideológico que lhe professemos às oligarquias, uma resistência o mais ampla e organizada possível deve tentar compreender a lógica delas para tentarmos minimizar o sangue, para tentarmos erradicar o massacre como método. Afinal, só se trata de conjurarmos o cinismo: porque aqui em Ocidente reside a resistência privilegiada, a quem seguramente nunca lhe cortarão a luz dos computadores enquanto haja um iraquiano ou um nigeriano a quem voar em pedaços para garantirmos o oleoduto que nos nutre.

Um casamento irreal

Publicado no Semanário Transmontano on-line, secção Crónicas da Galiza, 3 Novembro 2003

É notícia que o príncipe de Espanha, Felipe de Borbón, acaba de anunciar o seu próximo casamento com a jornalista Letizia Ortiz. Entrado o século XXI, o povo continua a ver-se sujeito a cerimónias medievais, adereçadas mediaticamente com o bombardeamento humanitário dos telejornais, magazines, e outros subprodutos. Entre os absurdos desta situação política e social está a necessária aprovação deste futuro casamento polas Cortes espanholas (as câmaras do Congresso e o Senado). O epígrafe 4 do artigo 57 do Título II da Constitución Española diz (intraduzo, porque as leis espanholas, espanholas devem ficar, não distorcidas polo falacioso exercício de pretender fazê-las galegas, bascas ou catalãs a traduzi-las): “4. Aquellas personas que teniendo derecho a la sucesión en el trono contrajeren matrimonio contra la expresa prohibición del Rey y de las Cortes Generales, quedarán excluídas en la sucesión a la Corona por si y sus descendientes”. Quer dizer, se as Cortes espanholas não aprovarem este casamento, Felipe de Borbón não poderia ser rei de Espanha quando Juan Carlos morrer. Mas a hipótese é impensável. E, contudo, outro rei ou reina sofreríamos.

Mas, que lhe deu a monarquia, esta monarquia, qualquer monarquia, à Galiza, a qualquer dos países do reino? Ignoro tanto a história política da Galiza como a de Espanha, é um dos meus problemas mentais. Mas, como amostra, dos últimos fotogramas que mais ficam na minha retina é o do actual rei Juan Carlos a descer ex-machina à praia totalmente petroleada de Mugia, quando do inacabável desastre do Prestige, com os seus impecáveis sapatos pagos por nós, a fazer-se a foto enquanto criticava os políticos que se faziam a foto. Pura propaganda monárquica e direitista. Porque, não esqueçamos, o rei é o Chefe do Estado, do mesmo estado que leva décadas a mostrar negligência, desprezo e esquecimento polo bem-estar das gentes da Galiza. E o rei é o Chefe de Todos os Exércitos, dos mesmos exércitos que tardaram semanas em baixar a limpar o piche das nossas praias mas tardaram dous dias em ir a Iraque a matar humanitariamente ou repartir esmola ocidental a um povo que deveria ser deixado em paz. Portanto, o rei não é nem pode ser neutral: nem este, nem o vindeiro, nem nenhum. A monarquia é um jacobino resíduo sexista, classista e espanholista, num país de países envenenado por Gran Hermano. Porque, por qual razão que não for primitiva se herda patrilinearmente a representação política, o controlo de todos os exércitos, o privilégio de sancionar as leis, de nomear o presidente do governo eleito polo parlamento, etc. etc.? A monarquia é o maior obstáculo para o raciocínio humano numa Espanha politicamente esclerótica.

E um parlamento inteiro de 350 pessoas terá de se pronunciar, de uma maneira ou outra, sobre se o sangue azul de Felipe se pode mesclar ou não com o sangue vermelho de Letizia! Se podem ou não os amantes legitimamente misturar os seus orgânicos humores nas noites em que os seus exércitos continuem a ocupar humanitariamente qualquer país! Será interessante ver que posição política sobre esta erótica ligação (ir)real tomam no parlamento espanhol os (poucos) representantes do nosso republicano Bloque (sic) Nacionalista Galego.

Mas dizem as boas línguas que entre os inconfessados planos políticos deste principinho azul Felipe estaria, quando herdar na coroa, renunciar e submeter a monarquia a referendo. Ou algo assim. Seria o acto mais inteligente da sua vida. Espero viver para vê-lo, agora que o povo está desactivado para botar directamente a monarquia aos caimães do esquecimento, que é o que merece. Sim, seria inteligente, sobretudo porque Felipe poderia ganhar o referendo! Mas já sabemos que a inteligência está renhida com o Poder. E a Galiza, se na altura ainda existe, continuará a ter rei para um tempinho. Até anda outro nobre chamado de Bragança por aí a fazer-lhe as beiras à Galiza, como se um só pretendente não fosse suficiente. Vaites, vaites!, como enxotamos nós os maus agoiros. Saúde e república –diz o colega António Gil–, que é uma forma algo menos cavernícola de oprimir-nos.