O direito a sermos dominados pola Língua

Publicado no Semanário Transmontano, 30 Setembro 2003

Pouco se sabe em geral nesse lugar que por convenção chamamos Portugal do que acontece em matéria de língua(s) (e de muitas outras cousas) nessoutro lugar que por convenção chamamos a Galiza: refiro-me à parte da Galiza na altura submetida (como todos os países naturais) aos efeitos dum Estado, o Reino de España, em cujo centro mora um enorme eñe imperial. Na realidade, as cousas da língua na Galiza são tanto muito complicadas como muito singelas. Tentarei resumi-las pobremente, para ver o comum no respeitante ao papel da língua na vida diária.

É sabido, isso sim, que na Galiza se falam dous idiomas. Do espanhol, nem direi muito: é uma forma de espanhol que não se pode identificar com o falado na Andaluzia ou na Bolívia, mas que, na mente de muitos (esse prodígio de catalogação da realidade), é “o mesmo”. Da outra e primeira língua da Galiza, o português –que coloco em segundo lugar simplesmente para poder estender-me mais–, direi quase o mesmo: o português galego não se pode identificar plenamente com o alentejano ou o carioca; por isso (e aqui vem a curiosa diferença), na mente de muitos é “outra cousa”, “outra língua”.

Qual é a fonte de tal divergência no tratamento destas duas línguas na Galiza? (a própria, que é o português, e a historicamente alheia e agora socialmente dominante, que é o espanhol). Que faz o Estado espanhol para impor tal distinção nas mentes? E que não faz o Estado português para restaurar o equilíbrio na visão das línguas na Galiza?

Simplesmente, o Estado espanhol impõe sobre nós as letras: a palavra escrita, a cultura escrita, o sistema educativo em espanhol… enfim, a ignorância do próprio como método. Por meio do sistema educativo e doutros dispositivos criam-se os contrastes entre os falares “regionais” galegos (periféricos, quase atávicos, perdidos num recanto dessa tristíssima piel de toro, e portanto “tolerados” como curiosidade) e a letra impressa espanhola, que da sua ortografia até ao discurso vem embebida de ânsias nacionais espanholas, quer dizer, coloniais.

Mas, por acaso não é isto o que faz o Estado português com os falares dos seus súbditos? Não impõe o “ão” onde se diz o “om”, o “o” onde se pronuncia “ou”, o “v” onde se realiza o “b”, o “também não” onde existe o “tampouco”? Por acaso não cria o Estado português miragem de unidade da mesma maneira? Sim, e não. Portugal estabelece estas diferenças (sempre de classe) entre falares e escrita, e portanto entre grupos sociais, sobre e contra a sua própria língua, o qual não deixa de ser um mecanismo de dominação dos estados tão comum que se torna, por obediência, em direito dos cidadãos ocidentais a serem correctamente disciplinados na Língua.

É isto exactamente, nem mais nem menos, o que queremos muitos galegos e galegas (provavelmente muitos mais do que se pensa): que a nossa língua escrita, a que nos divide e classifica como sábios ou parvos, como pobres ou ricos, seja o mesmo instrumento que têm outros países de língua comum. Não queremos escrever (ou falar) o galego em espanhol: queremos o direito a sermos dominados, como qualquer país ocidental normal, pola Língua própria, que no nosso caso é a portuguesa. E nesta matéria Portugal inibe-se porque cai do outro lado dum rio inexistente. Má sorte, ou má política de estado?

Se as cousas fossem normais na Galiza, nem este textinho seria necessário: falaríamos dos assuntos que têm importância.

A derrota da sua vitória

A recente reforma das normas escritas da Real Academia Galega para as falas galegas é sem dúvida um ponto de inflexão no conflito linguístico, queirámo-lo ou não. A série de perguntas que nos assalta, porém, é: Um ponto de inflexão para que? Para quem? Há uma vitória e uma derrota? Vitória ou derrota de que e de quem? Futuro melhor ou pior do galego para que ou para quem?

A quantidade de citações, opiniões, manifestos, declarações, textos, posicionamentos e análises que poderíamos aduzir para justificar uma crítica frontal a esta reforma, procedentes do campo do galeguismo cultural, encheria páginas. O denominador comum destes discursos seria que, sem recuperação efectiva da unidade linguística do tronco galego-português, não há futuro para o galego. Porém, nem estes discursos poderiam responder as perguntas anteriores. Porque no meu modesto entender está ainda por explicitar, contudo, qual projecto cultural, linguístico, social e portanto político acompanhava e acompanha todas as proclamas unitaristas, quer dizer, lusistas e reintegracionistas. O projecto do campo hegemónico, declarado ou não, já o conhecemos: É o degredo das falas galegas ao estatuto dum ser linguístico inferior, precário, em constante diagnose, com constantes operações cosméticas mínimas, em situação de sobrevivência constante, enquanto se afasta mais e mais da hipótese de Língua Nacional (e desculpem as maiúsculas, que explicarei) no território onde nascera, há demasiados séculos como para que a inútil nostalgia histórica deva embaçar o nosso realismo.

É evidente que o pacto entre o nacionalismo espanhol e um sector do nacionalismo linguístico galego (BNG, ASPG) nesta reforma significará para os segundos importantes renúncias. Ilegalizadas agora certas práticas escritas, os que as tinham como símbolos deverão deixar de utilizá-las nas suas aulas e publicações, nas aras dum consenso que soa, sabe e cheira a derrota dos nacionalistas. E se soa, sabe e cheira a derrota deles, provavelmente seja uma derrota. Durante anos, alguma intelectualidade e posição política enarvorou hífenes, acentuações portuguesas e outras formas como estandartes dessa essência linguística galego-portuguesa, descafeinada por um possibilismo ortográfico populista. A par da norma institucional, nos liceus e poemas ensinavam-se ou praticavam-se também esses Amínimos@, inserindo-se essas excrescências (Ahistória@, Aamar-te@) como manifestos de resistência. Para nós os lusógrafos, apenas um par de símbolos nunca foram suficientes, certo. Mas o seu uso significava algo, algo ou várias cousas sem dúvida sempre negociáveis, e polo menos significava uma declaração de diferença: estando estes praticantes Adentro@ da Norma, estavam Afora@. Ou isso diziam. Agora ninguém poderá negar que a desaparição por decreto desses símbolos situa este sector do nacionalismo linguístico galego numa difícil situação. Já ninguém deles poderá argumentar que formas como Ahistória@ ou Aamar-te@ são galego. Os nacionalistas defesores do Novo Oficialismo deverão riçar o riço da argumentação para justificarem a legalidade dos Areitores@ mas a ilegalidade dos Aleitores@, a galeguidade da Apuberdade@ frente à estrangeirice das Afaculdades@. Curiosos exercícios pedagógicos e de renúncia. Negociou-se com as palavras da língua como se fossem fichas num jogo de póquer, ou ofertas num tira-puxa de feira semanal. Isto não é grave em si (não essencializo a Língua): o que move à piedade é que se justifique tudo isto na Adocumentação@ do galego, como se a escrita historicamente defeituosa dum idioma fosse um critério científico de peso. Pacto político recoberto de Filologia, isso é o que foi e o que é.

Para nós os lusógrafos, nos nossos diversos graus de analfabetismo (que não fazem mais do que revelar o hipócrita exercício de apropriação da língua, pois ninguém dos analfabetos como eu poderia chegar a publicar um texto numa sociedade linguisticamente normal, quer dizer, onde imperasse a naturalização das hierarquias linguísticas), esta reforma deles tanto não nos afecta como não nos afecta. Se tivéssemos claro o objectivo, poderíamos avaliar se a derrota de certo nacionalismo linguístico galego representa a vitória de outro sector do mesmo campo. Mas, assim como o programa isolacionista é claro desde os começos (e este pacto normativo não é recuo não, mas hábil coopção), e foi respaldado por conivências e votos variados durante décadas, o programa unitarista é, no meu sentir, muito mais incerto.

Para começar, os isolacionistas têm claro que a língua está por construir. Toda a sua prática vai orientada nesse sentido. As absurdas correcções paulatinas à norma, com a incorporação de palavrinhas aqui e lá ao Diccionario Perpetuo de Galicia, lembram as situações militares de assédio, os contextos pré-constitucionais dilatados indefinida e artificialmente para manter o statu quo, as longas Transições Democráticas que só dão como fruto a reprodução do domínio sob outra forma. Para o isolacionismo, a língua que está por construir é, evidentemente, uma variante social e regional do espanhol.

Os reintegracionistas, por contra, dividimo-nos entre quem pensa também que a língua está por construir (mas de outra maneira) e quem pensa que já está construída, diversamente, noutros países, e também aqui, nas margens do sistema. Que este texto poda ser lido fora da Galiza (Portugal, Brasil, Moçambique, até Espanha) com algo de estranhamento polos seus erros e peculiaridades e muito mais de reconhecimento pola sua forma demonstra o segundo: que a língua já está construída e só temos que aprendê-la. Mas que o mesmo texto nem seja lido na Galiza por culpa do alto muro sionista que o isolacionismo está a erguer em todo o mundo da palavra prova, complementarmente, o primeiro: que a construção social da língua portuguesa na Galiza, da língua galego-portuguesa, da língua galega chamada portuguesa, não é apenas um assunto de desejos. Para começar, que um só dos colectivos que compõem o nosso campo, a Associaçom Galega da Língua, se queira erigir em árbitro normativo criador de Língua, embora legítimo projecto, roça a altivez. A vontade reitora da AGAL não supre a evidência da nossa diversidade interna. A assembleia geral do campo linguístico unitarista na Galiza (aquele que sabe que temos uma língua comum a muitos países) ainda está por fazer (ofertas recentes houvo neste sentido, e ainda não calharam). Só um campo efectivamente unificado estará em melhores condições de exercer a interlocução: não uma interlocução vazia para chegarmos a novos pactos por um ridículo acento (não quero pensar como se sentem internamente os bons filólogos nacionalistas Ade mínimos@ que pactaram durante meses e aceitam agora o massacre ortográfico espanhol; eu, com certeza, não gostaria de estar no seu lugar), mas uma interlocução para demonstrarmos que estão em jogo duas concepções tão distintas da língua que só o reconhecimento da posição do outro nos poderá salvar a todos da iminente desfeita.

Se soubéssemos qual é o objectivo do campo unitarista, poderíamos portanto desenhar tácticas orientadas a uma tarefa simples: Que o objecto que não me dá medo chamar Agalego@ se constituísse em Língua Nacional, e é aqui onde retomo as linhas do começo. A Língua Nacional não é necessariamente, embora poda parecê-lo, a língua de uma Nação: é o hierárquico instrumento de poder e de saber, de disciplinamento e de liberdade, de poesia e grosso prosaísmo, de criação, projecção exterior, identificação, cultura, relações sociais, jogos, reflexividade e espontaneidade duma sociedade estatalizada que quer, de uma vez por todas, deixar de gastar enormes energias em decidir como há-de falar e escrever, e começar a distinguir-se internamente e a combater polos espaços sociais mais polo que se diz e escreve que polas letras como se escreve. Tenho a impressão de que o cansaço por esta tarefa introspectiva de desmiudarmos o significado dos simbolinhos escritos não se dá só neste campo unitarista: é um cansaço que se dá também no outro campo, embora se disfarce aí de Redenção Científica. Porque a esquizoglossia que sofremos não serve para exercermos a distinção mútua: Não há maneira de sermos melhores ou piores do que outros como galegos se não escrevemos a mesma língua. A única língua continuará a ser o espanhol, e no seu mercado até os ganhadores actuais são perdedores. Por isso os unitaristas não queremos escrever o espanhol que está a inventar a RAG, mas o nosso português como Língua Nacional. E nas sociedades democráticas, adquirir a Língua Nacional é um direito (um direito que só reproduz a desigualdade, como tantos outros, mas um direito). Quanta mais gente aprenda e pratique esta lógica, quanta mais cresça o campo unitarista, melhor para todos.

Porém, o reconhecimento deste cisma, e da necessidade da unidade para continuarmos a roubar a língua ao inexistente Povo, não é suficiente para qualquer dos dous campos ceder e escrever da outra maneira. Não, a hipótese da cedência total é impossível. Portanto, sem interlocução real dirigida ao reconhecimento, a máquina do movimento perpétuo continuará, continuará a estabelecer no nosso seio duas sociedades de cultura (uma galego-espanhola, outra galego-portuguesa) igualmente distanciadas do Inexistente Povo ágrafo, operaçãotriunfista, alheio a estas letras e às outras, afogado no piche político, votante dos medíocres, cativo da propaganda, envelhecido de mente e de atitude, e profundamente espanhol. Por isso este pactinho normativo é, como sempre, a derrota de quase todos, e a entranhável vitória duns poucos, que com arrogância proclamam o falso fim das diferenças, decretam a Verdade Linguística e repartem privilégios porque, simplesmente, estão a fazer o seu trabalho, que entre todos pagamos porque no-lo ordena a Monarquia.

A língua, a energia e o Povo (Quando o cu é ilegal)

Publicado no Portal Galego da Língua

O processo actual em torno da questão linguística no país demonstra que, felizmente, existe ainda uma energia de resistência e tensão que não podemos desaproveitar caindo em velhos tribalismos e personalismos que só beneficiam o projecto aniquilador de Espanha, palpável e dura realidade diária. A reforma interna das normas da Real Academia Galega para as falas galegas, levada a cabo por uma instituição de duvidosa legitimação social e variada composição, junto com as acções paralelas dos contrários reintegracionistas (acções anteriores e posteriores, pois a dialéctica acção-reacção não vai só numa direcção, como bem aponta o comunicado do grupo Nós-UP sobre a reforma normativa) são só, neste caso, motivo para as minhas reflexões. Seria-me, seria-nos mais fácil simplesmente deslegitimar a iniciativa da RAG, e há muitas razões para isso, a fundamental a exclusão de base de parte do campo cultural, linguístico e social galego. Mas a própria dinâmica da RAG, com os resultados da votação sobre a reforma (por maioria, não unanimidade), e a dinâmica dentro do que alguns damos em chamar “luso-reintegracionismo” (também com as suas diferenças internas) demonstra que a tensão se instaura como a força motriz duma nova fase da naturalização da língua no país. Está claro que os projectos são muito distintos, até essencialmente irreconciliáveis na altura. Mas a crítica legítima aos Outros não pode magicamente eliminar o facto de que nas filas dos dous campos agem fortes vontades sociais com compromissos diversos, com muitos custos pessoais, com variadas agendas, com distintos graus de contradição pessoal, e até com pontos de insuspeitada convergência com o adversário. Pode-se assim detectar, cartografar, um contínuo de sensibilidades a respeito da língua ou da lingua, separadas por um acento mas unidas na verdade polo exercício inerente da apropriação simbólica dela, frente às glorificações muitas vezes propagandísticas da importância do Povo. É curioso mas regular que nesta glorificação se reúnam posições políticas tão diversas como as da certa direita espanholista e as de certa esquerda nacionalista galega. Fugir da altarização do Povo e o Popular –como advertiu repetidamente o ainda desconhecido Bourdieu– é o primeiro passo para compreendermos a nossa posição, a posição social estrutural dos que debatemos nas tribunas de papel ou de pixéis sobre a forma da língua e o seu nome, truque performativo de criação daquilo que, apesar de ser, ainda não é. E esta posição nossa não pode deixar de ser uma posição de privilégio social. É bom que lembremos isto.

É evidente que as lealdades sectoriais, declaradas ou não, continuarão nesta nova fase do conflito linguístico. Um académico como Alonso Montero manifesta que, sem concordar com a reforma da RAG, igualmente a acatará. Desde o chamado reintegracionismo, outros posicionam-se e posicionamo-nos claramente dizendo que não há nada a acatar porque não reconhecemos a legitimidade desta decisão, entre outras razões (ou para alguns) porque essa instituição nos exclui sistematicamente. Não é difícil sair da contradição de não acatar esta legitimidade mas, ao mesmo tempo, contestá-la (por exemplo, com um comunicado unitário) argumentando, como farão alguns, que, bom, afinal de contas se o Poder não nos reconhece como utentes da língua galega (e portanto como interlocutores potenciais na sua construção), no problem porque somos utentes da língua portuguesa, que não tem nada a construir porque já está construída. Essa poderia ser a minha postura pessoal teórica, por exemplo. É uma postura pavera e interessante. Mas este gambito retórico tampouco resolve o problema: é (no meu caso, polo menos) puro nominalismo. Como o deles.

Porque o que é urgentemente necessário é alcançar a ilusão de interlocução mútua que o espanholismo, na sua táctica de fragmentação, nos nega. Não há muito tempo histórico para reverter o processo de assimilação ao espanhol, a desidentificação social crescente (que outros chamariam “globalização”), em definitivo o naufrágio dos restos dessa trajectória cultural e social inaugurada polo menos com a Geração Nós. Em quê medida o oficialismo linguístico está a contribuir para este naufrágio sociolinguístico é algo que só o tempo dirá, e neste sentido a desaparição política de figuras como Manuel Fraga Iribarne será um fito muito revelador. Programaticamente, várias vozes (entre elas, vozes tão divergentes ideologicamente como as de António Gil Hernández, Pilar Garcia Negro, Mário Herrero Valeiro ou eu próprio, ou um artigo recente de Ângelo Canosa no Portal Galego da Língua) levam tempo a afirmar que o projecto deste oficialismo, e o resultado desta política, é simplesmente a normalização do espanhol. Por contra, num artigo de 1998 em Tempos Novos, Henrique Monteagudo mantinha que a “normalización” lhe caíra ao PP como uma “pataca quente” com a qual não soubera o quê fazer. Para outros, como Méndez Ferrín, o principal obstáculo para a “normalización” e consolidação da Norma Vixente (sic) que ele, com patriotismo constitucional, defende, é o próprio BNG com a sua esquizoglossia normativa interna (o quê argumentará Ferrín agora que se consuma o Pacto da Língua entre inimigos tão atrozes como FPG e BNG?). E é de imaginar que a desaparição chapapótica de Fraga Iribarne constituirá um ponto de inflexão na articulação Língua-Política. Eu não ousaria aventurar o quê acontecerá em matéria sócio-linguística quando soframos uma nova configuração político-partidária no país, nestes tempos em que nenhum futuro é já o que era. Mas, no entanto, temos a responsabilidade de assumirmos como bons privilegiados o repto do confronto. As palavras sacerdotais não resolvem nada. Nada decidem sobre a famosa realidade da língua nem sobre o debate cultural as afirmações do actual presidente da Academia de que “o debate está fechado”. As próprias posições contra “o português” ou “os lusistas” de jornais vozeiros ideológicos da direita são sintomas de debilidade, não de força. Portanto, reconheçam estes sectores que o que lhes espera é o crescimento constante do campo “lusista” contrário, e o jogo será mais fácil e transparente.

Mas a interlocução mútua também não se acada magicamente, nem pode proceder por igual de dous (claramente, dous) bandos com recursos tão desiguais. O novo oficialismo linguístico tem a responsabilidade de, fechando filas de unidade de portas para fora (como acontece em toda boa organização político-militar, como os partidos), conceder a alguns dos Outros e Outras o benefício da dúvida e do diálogo: convocando-os, por exemplo, a participar no seu Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega (sic) pré-desenhado para o triunfo do espanhol. Isto de convidar só alguns dos outros chama-se coopção, e, se bem feita, dá bons resultados legitimadores. Se o Novo Oficialismo não faz nem isto, não poderá suportar a pressão da soidade na sua missão construtora e redentora. Os esquerdistas dentro do campo hegemónico nem sequer poderão teorizar sobre o papel da dialéctica, tese-antítese-síntese etc. e volta a começar. E como os unitaristas não vamos desaparecer por envenenamento quando a Xunta aprove estas pequenas modificações da norma, suponho que terão de tratar-nos dalguma maneira.

Por sua (nossa) parte, os adversários luso-reintegracionistas devem (devemos) também continuar a demonstrar unidade tanto nas nossas posições simbólicas quanto no reduzido espaço que compartilhamos, ainda que só seja por mor de perpetuarmos a ilusão do estigma, desse çê çedilhado sangrento na fronte com que acordamos cada manhã de verão intermitente. Esta miragem de unidade é básica em toda batalha. Mas há também que achegar pontes selectivas de falso diálogo aos outros, oferecendo-lhes a alguns a mão à sua em movimento para puxarmos deles para a nossa posição como bons judo-reintegracionistas, como gosta de teorizar o amigo José Ramom Pichel.

Se somos capazes, uns e outros (que somos os mesmos) de enquadrarmos assim a nova fase de construção e destruição do idioma, ora nas aras da Nação, ora da Nación, ora da Internação ou da Inação, ora da inerente liberdade humana e mental de escrevermos como os nossos dedos ou instrumentos nos deixem (eu costumo explicar que, sorry, a minha caneta não tem eñe), estaremos em melhores condições de contemplarmos, de dentro e de fora, a nossa posição social, e portanto a futilidade de Deus, que é o Povo. Porque, u-lo Povo?, perguntarão-se alguns. Onde é o Povo em todo este barulho de vozes que parece que che dá de comer? Eis a questão inicial deste texto, pretensamente sobre as energias e o Povo: Se somos capazes de combater-nos civilizadamente sobre a língua na esfera pública e social da anglo-saxã liberdade de expressão, descobriremos mais uma vez, da nossa atalaia de palavras, que o Povo, simplesmente, em toda esta história não é. Decerto, este descobrimento pode ser frustrante para alguns, iluminador para outros, ou pode ser um argumento velho, maçador e inútil (por exemplo, poderia ter-me saído um texto menos repetitivo para mim mesmo), mas calemo-lo. Calemos uns e outros a verdade da inexistência do Povo, pois temos um longo caminho por diante. E, em qualquer caso, por pura sobrevivência (a vida dá muitas voltas) uns e outros continuemos a lembrar sempre a ameaça do único poema que me vem à cachola porque o cita todo o mundo: Primeiro eles levaram os negros / porém, para mim de nada importou / porque afinal eu não era negro. / Em seguida eles levaram os judeus / porém, para mim também de nada importou / porque eu não era judeu…

Sim, sempre pensamos que o último em ser levado às chamas vai ser o último, mas nunca há um último na biografia da injustiça como método. A narrativa do cometido neste país contra Os Distintos no nome da língua encheria um sumário como um petroleiro: Despedimentos, denegações, multas, proibições, censuras, expedientes, estigmas… Só os cegos e os hipócritas podem negar estes factos, ou acolhê-los sob o monstro jurídico da Legalidade Vixente. Mas, a longo prazo, amigos adversários, agora que o cu é ilegal, a comodidade dos assentos pode queimar o que, e da mesma maneira que ontem e hoje vieram por alguns de nós (e não é metáfora), amanhã nós podemos trocar o vosso que polo nosso quê e ir por alguns de vós, roubar-vos os vossos subsídios, as vossas publicações, o vosso brilho mediático, as vossas oposições, a vossa propaganda, a vossa televisão, as vossas instituições culturais, os vossos partidos, as vossas editoras, o vosso firme (?) controlo do Cáliz da Língua. Portanto, prezados adversários, por auto-defesa, simplesmente falai: Descei a falar conosco, cht, que o Povo nem se inteira.

Razões ocultas?: Iraque, o euro, Espanha e o Sara Ocidental

Publicado em A Nosa Terra

São sabidas bastantes das causas para este ataque do regime dos EUA sobre o território e os recursos desse país agora chamado Iraque. Também, do apoio do governo do Reino Unido a esta agressão. Menos entendida é, porém, a decisão do governo espanhol, até nas próprias filas do Partido Popular. O cisma entre a direita francesa e a direita estadunidense quanto à política bélica internacional (representadas nas posturas respectivas de Chirac e de Bush) também surpreende. Há alguns factos para mim significativos desta guerra que nos poderiam dar pistas para compreender uma complexa situação.

Facto número 1: O dólar e o euro. Em Novembro de 2000, Iraque adoptou o euro como moeda de troco para a venda de petróleo. Naquela altura, o euro valia 80 centavos de dólar. Hoje, vale sobre 105, uma revalorização considerável. Ou, com outras palavras, o dólar depreciou-se. Isto foi uma aposta do regime iraquiano polo euro, aposta que lhes estava a sair bem, e que com o final do bloqueio económico sairia-lhes ainda melhor. As petroleiras americanas temem que esta viragem do “petrodólar” ao “petroeuro” se poda estender a toda a OPEP, especificamente a Irão primeiro. Significativamente, a intervenção no Iraque é levada a cabo por dous países sem euro (EUA e RU), mas oposta polos governos das principais economias do euro, França e Alemanha.

Facto número 2: Alasca: Recentemente o Senado EUA rejeitou começar as prospecções petroleiras na grande reserva natural de Alasca. O voto republicano foi fundamental para esta surpreendente decisão. Decidir não utilizar o próprio petróleo significa que há mais aí fora, mais barato de conseguir. Iraque é um desses lugares.

Facto número 3: As “razões de Estado” de Aznar. De todo o discurso e contradiscurso entre o governo espanhol e a oposição política (especificamente o PSOE), a mim pessoalmente surpreenderam-me dous factos: a) Em mais duma ocasião (uma vez Aznar, outra vez Arenas), o governo interpelou cripticamente ao Partido Socialista sobre a sua oposição à guerra dizendo-lhes: “Se vocês estivessem no poder estariam fazendo o mesmo que nós”. Não houvo réplica nem tentativa de esclarecimento por parte do PSOE. Isto é destacável na medida em que a linha entre governos defensores e opositores desta guerra não segue linhas partidistas “esquerda/direita”. Porque deveria a “esquerda” do PSOE ter a mesma postura do que a “direita” do PP se aquele estivesse no poder? Deve haver poderosas razões que desconhecemos. b) O secretário geral do PP de Galiza, Palmou, numa entrevista na Cadena SER o domingo 23 disse que “Deve haver razões de estado” que Aznar sabe e nós não. O mistério sobre estas afirmações de destacados membros do PP, e do silêncio do PSOE, esvoaça sobre a operação de extermínio em Iraque.

Facto número 4: O Sara Ocidental, o grande ausente. Surpreende também o silêncio do governo espanhol, e especificamente da carteira de Exteriores, sobre o problema do Sara Ocidental. Em Março 31 deve adoptar-se uma (outra) resolução sobre a situação do Sara. E Espanha está temporariamente representada no Conselho de Segurança da ONU. James Baker, comissionado especial da ONU, e ex-secretário de Estado dos EUA, quem representa os interesses do governo (portanto, das oligarquias) desse país, pode estar mudando a sua posição anterior sobre a autodeterminação do Sara. Baker estava conectado também a interesses petroleiros. É possível que a administração EUA queira apoiar agora uma solução “intermédia” que conceda soberania talvez só à parte sul do Sara, enquanto a norte ficaria sob administração de Marrocos. Isto poderia não ser à partida aceitável para o Frente Polisário, mas ao parecer tampouco o Polisário estaria em condições de recomeçar a luta armada, e no Sul poderia formar-se um estado independente suficientemente auto-sustentável. Porque, que acontece nas zonas norte e sul do Sara Ocidental? No norte, estão os fosfatos. No sul (nas águas jurisdicionais correspondentes à não reconhecida República Árabe Sarauí Democrática) estão a fazer-se explorações petrolíferas por várias companhias, entre elas uma australiana (governo que apoia a guerra do Iraque). Os seus informes iniciais indicam que há petróleo comercializável. Também há uma concessão do governo marroquino de 2001 à companhia francesa TotalFinaElf e outra à estadunidense Kerr-McGee para a prospecção e comercialização do petróleo que se encontrasse. Mas expertos legais de vários países consultados pola União Europeia coincidem que um novo governo saído dum referendo no Sara não teria porque respeitar os acordos contraídos por Marrocos, ocupante ilegítimo do Sara Ocidental.

E como podem encaixar estes factos, então? Que se lhe perde à direita económica espanhola na guerra de Iraque? Um cenário possível é o seguinte:

1) O controlo ao acesso e aos preços do petróleo do Iraque por parte de petroleiras EUA daria-lhe às óleo-garquias estadounidense e à grande indústria pesada que depende dele (entre elas, a indústria do aço e portanto a armamentística) vantagens substanciais sobre as de outras zonas, nomeadamente Europa. São precisamente estes sectores os que não se podem reconverter facilmente a outras fontes energéticas. Por outra parte, esvaeceria-se o perigo da “eurização” do petróleo. O grande capital americano estaria em condições de repartir as reservas petroleiras ora no seu próprio benefício (sem ter que explorar as próprias), ora para países industrializados selectos (Espanha, por exemplo), ora para países em subdesenvolvimento onde se precisa a criação de capacidade aquisitiva para criar mercado. Durante muitas décadas a vir, as oligarquias EUA e algumas ocidentais estariam em condições ainda mais claras de decidir o destino económico de grande parte do planeta. O acesso ao petróleo do Iraque favoreceria à “economia” espanhola (quer dizer, ao capital), frente à francesa e alemã, maiores competidores para os EUA do que Espanha. Significativamente, os governos de “países menores” europeus apoiam os EUA.

2) Claramente, a administração EUA não precisa do governo de Aznar nem do PP para os propósitos imperialistas do capital. Mas a aliança com “Espanha” ajudou-lhe ao governo EUA a criar o cisma com os governos francês e alemão. Que mais obtém “Espanha” em troco disto?: A defesa dos “seus” interesses económicos no Sara Ocidental. E a situação especial que se dá agora, e não há alguns anos, é que Espanha está no Conselho de Segurança da ONU, uma circunstância que entre alguns sectores independentistas sarauís é vista como uma “grande oportunidade” para “Espanha pagar a sua dívida histórica”. Portanto, o cisma entre França e EUA/Espanha a respeito de Iraque estaria em paralelo com o seu cisma a respeito do Sara (França continua a apoiar a actual anexação por Marrocos, e um regime de “autonomia” para o Sara).

O petróleo seria a principal e quase única fonte económica do novo estado sarauí, suficiente para o seu desenvolvimento. Um novo estado saraui poderia rescindir os acordos de exploração petroleira às companhias francesas e conceder-lhe-las a petroleiras americanas. Uma recente informação da BBC de 4 Março 2003 afirma que “Agora as reservas de petróleo do país tornaram-se já um factor nesta luta quando as companhias petroleiras estadunidenses, francesas e australianas começam a informar dos seus primeiros achados”. E, significativamente, outra informação da BBC tomada de Le Quotidian d’Oran de 8 Fev. 2003 diz que: “É de destacar que os espanhóis se alinharam sem reservas com Washington relativamente ao assunto de Iraque. Portanto, os americanos poderiam pedir-lhe a Madrid que fosse menos ‘rígido’ no tema do Sara Ocidental, com a promessa de que os seus interesses serão tidos em conta“. Que significam estas expressões?: “Ser menos rígido” significa aceitar e promover na ONU o plano de Baker sobre a independência da parte Sul do Sara. “Ter em conta os interesses de Madrid” significa que “Espanha” levaria uma parte do pastel dos recursos energéticos do novo Sara. “Os interesses” também pode significar a pesca. Por enquanto é “França” a que perderia com tudo isto, e, em menor medida, “Alemanha” (quem também tem um projecto de exploração de energia eólica em toda a costa ocidental de Marrocos e o Sara).

Em resumo: O governo espanhol e José María Aznar obteriam do seu apoio à administração EUA na invasão de Iraque, além doutras cousas que nem sabemos: 1) Acesso a petróleo iraquiano, sem dúvida. 2) Prestígio internacional pola sua defesa, desde o Conselho de Segurança da ONU, duma solução intermédia para os sarauís promovida por Baker-EUA, alinhando-se de novo com os EUA mas sem romper os vínculos com Marrocos (que conservaria o norte do Sara). E 3) Mantimento dos “interesses de Espanha” (os das petroleiras espanholas também?) no novo foco geo-estratégico mundial da África Ocidental. Tudo isto significa que qualquer governo espanhol (PP ou PSOE), por pressões do grande capital e por defesa destes “interesses”, provavelmente teria agido igual a respeito da guerra do Iraque, como a misteriosa mensagem de Aznar sugere: “Vocês os socialistas fariam o mesmo se estivessem no poder”.

E não sou analista político, nem economista, e tudo isto, claro, é bastante especulativo. A situação é mais complexa. A resolução da ONU deste 31 de Março pode pospor-se mais uma vez. O tempo dirá, quando o tema do Sara Ocidental saia de novo à luz pública, e quando se veja se o governo resultante da imperial conquista do Iraque retorna ao dólar para vender o seu petróleo.

(Algumas fontes: http://groups.yahoo.com/group/Sahara-Update/message/1082
http://groups.yahoo.com/group/Sahara-Update/message/1063
http//www.rebelion.org/imperio/040303clark.pdf)

O PNLG: Um desenho fechado à partida

Publicado em Tempos Novos • Em Vieiros

O PNLG parte da Língua Nacional Espanhola para manter a variedade regional “galego” em níveis mínimos como recurso simbólico e político. Na relação entre custos e possíveis benefícios, o PNLG -claramente tecnocrático- apropria sem pudor o gasto termo “normalización”, enquanto foca o sociolinguístico em termos administrativos, segmentando-o em âmbitos das Conselharias. Não é possível intervir com a crítica num desenho tão fechado à partida. A única alternativa é a definitiva naturalização social da língua portuguesa na Galiza, que é a nossa numa variedade totalmente legítima. A naturalização consiste na produtividade real da língua na vida social até ao ponto da desideologização explícita. Umas necessárias novas elites sociais deveriam abordar na intervenção linguística (sempre um projecto reformista de classe) três grandes questões: (1) Reversão decidida da maciça perda intergeracional do idioma, (2) enraizamento social da consciência da unidade linguística galego-portuguesa-brasileira, e (3) galego falado e portanto português escrito correctos como veículo dominante dos médios e do ensino, para as elites reproduzirem a miragem da igualdade democrática a meio da Língua. Esse é o desenho duma Língua Nacional. A meta (1) requer fortes incentivos e redes sociais jovens. A (2), Propaganda e troca cultural. A (3), dinheiro, docentes e (sub)produtos escritos. O consenso com o campo hegemónico nestes pontos é inviável: o único sensato é procurar uma nova hegemonia por vias políticas.

Carta de chapapote a Manuel Fraga Iribarne

Publicado no Portal Galego da Língua • Em Renovação núm. 14 • Em Areanegra

Sr. Manuel Fraga Iribarne:

Sou súbdito seu. Estivem prestes a lhe enviar um pedaço de chapapote dentro dum envelope, anónimo, obviamente. Direi-lhe porquê anónimo: Primeiro, o Sr. nunca receberia o chapapote, interceptado polos seus serviços. Segundo, o Sr. poderia actuar até judicialmente contra mim, ou os serviços do estado, que é o seu, poderiam se encarregar de registar ainda mais um dado nos extensos arquivos negros, como o piche, que o Sr. se encarrega de manter. O Sr. tem uma longa trajectória no controlo do Estado. Afinal, decidim não enviar-lhe o chapapote, mas escrever-lhe esta carta, que nunca lerá.

O Chapapote, Sr. Fraga Iribarne, é um símbolo da sua trajectória, da sua vida, do negrume dos seus muitos actos contra a História. Afinal, reiteram nestes dias os marinheiros, o mar sempre devolve o que não é dele. A História é como o mar: também devolve o que não lhe pertence. Hoje o Chapapote é o lixo histórico com que você, Sr. Fraga Iribarne, foi poluindo este país e também Espanha. O Chapapote é signo da insolência da sua casta. Não será preciso que lhe lembre, nem que lembre à pouca gente que leia isto, em que consiste esta insolência. Fraga Iribarne é o seu duplo apelido: é o que sempre o definiu, o do lacaio do Estado que se banhou desafiando o resíduo nuclear e instaurando a Propaganda como método. O Chapapote é o símbolo do seu nepotismo cacical, com o qual infectou o campo da Galiza prometendo esmolas enquanto desarticulava conscientemente o tecido produtivo. Com o Chapapote compra você a mente dos sul-americanos de origem galega, os mesmos que são comprados polo Chapapote doutros governantes. O Chapapote representa a sua arrogância ao desprezar durante décadas as palavras da gente. Sobre o Chapapote foi construída a sua casa e será erigida a vindeira cidade faraónica que levará o seu duplo apelido, e com o Chapapote rasgou você, Sr. Fraga Iribarne, uma falaciosa trama de autoestradas para os rápidos automóveis que se nutrem do Chapapote universal. Para você um voto valeu sempre um metro de monstruoso Chapapote dissimulado em alcatrão de vila a vila para cortar o país, sim, como aquela famosa navalhada à terra que se denunciava no outro franquismo. Os velhos, como eu (já levo quarenta e quatro anos de domínio sob os seus e sob os que são como os seus) lembramos tão bem como você essa profecia cumprida dos perigosos radicais dos 70, quando você, tentando inutilmente ser o cadáver de Franco, se negava até ao ridículo regime autonómico que sofremos. O sangue que saiu dos operários bascos que matou a sua palavra era de Chapapote. De Chapapote está feito o selo de lacre da bíblica Constitución Española que rege as suas noites e os seus dias de faisães. Sr. Fraga Iribarne: você inaugura dia a dia o Chapapote em todos os lugares da Galiza. O barco que se afundou, cevado de Chapapote do capital, é o símbolo do seu féretro político.

Mas não pense você, Fraga Iribarne, que o acuso pessoalmente de nada, nem sequer de nadar no Chapapote dos seus actos: Você é tão insignificante para o projecto ignominioso do Capital como eu o sou para o seu combate. Você passará às letras enciclopédicas do Chapapote como um simples lacaio da anti-história, esse processo de morte que sempre foi contra os humanos. Nem sequer é você um oligarca, Fraga Iribarne: é um ser irreal mantido polo exército da miséria sobre um esqueleto de Chapapote. Nem pudo nunca você emular a nitidez estética dos grandes ditadores, dos verdadeiros oligarcas. Os actos mais importantes da sua vida, pense-o bem, foram um jogo de dominó e uma frase totalmente atrapalhada. Tente você pensar que grande estadista passou à história por construir estradas de chapapote, torres telefónicas e albergues rurais. É você um fantasma de si próprio que nem merece a demissão como escusa. E a História, que tem muita força, saberá deixar-lhe continuar o seu rumo de manipulações, roubos e mentiras, o seu triste périplo pola terra, até que passe tempo e o seu corpo se afunde, como se afundará o meu, que felizmente vou, com muita outra gente, num barco diferente.

Não procure outras causas, não finja outras explicações para os seus actos, Fraga Iribarne: Você sabe o quê são as forças materiais da História, esse desejo e essa vontade de total igualdade que contém a mente humana. E você sabe também qual é o braço armado da miséria, o que quer matar a mente da humanidade, e elegeu sempre posicionar-se aí, contra o mundo, do lado do roubo e a lobotomia como métodos. Todos os do seu grupo de classe elegeram o mesmo, e muitos fantasmas políticos doutros grupos também. A sua classe é a simples e triste gerente do Chapapote do mundo, mas você sabe que o verdadeiro centro está alhures, nas enormes fábricas de morte de Ocidente, nos intestinos metálicos do monstro onde a sua classe cacique nem seria recebida. Poderá você sonhar às vezes com imortalizar a sua efígie nalgum dos corredores subterrâneos onde novas promoções dos legionários do euro pudessem admirá-la, mas na verdade essas galerias só estão ladeadas por transparentes urnas onde se adoram mísseis, fardos de heroína afegã e turvos instrumentos de tortura sexual, como tudo o que nos causa dor. Nas entranhas do monstro urde-se o contrabando universal da miséria. Esse é o Projecto, e esse foi sempre o seu projecto, Fraga Iribarne: o roubo da matéria, do trabalho, dos corpos e das mentes como método. Porque esse foi sempre o único projecto do Capital, que existe e não mudou desde as origens. E para esse ingente e odioso plano você será esquecido, como eu o serei e o será este texto. Você, Fraga Iribarne, é apenas uma molesta incidência.

Portanto, durma tranquilo, e sobretudo para dormir melhor não deixe de pensar que toda a gente está errada, e que você é Importante. Porque a resposta é fácil, Fraga Iribarne: A História (que não verá você nem verá a minha geração) tem uma força enorme e é capaz de criar monstros de Chapapote como símbolos para que ressuscite a consciência. E cada mente do planeta que cultive dentro o mapa da utopia será uma prova do seu fracasso, Fraga Iribarne, do irrisório fracasso da sua classe.

Atenciosamente, sempre desejando-lhe que respire:

Celso Alvarez Cáccamo

Dizer o intocável

Enviado a A Nosa Terra, não publicado • Publicado no Portal Galego da Língua

As catástrofes e crises colectivas oferecem-nos, infelizmente, muitos motivos para reflectirmos sobre a linguagem. Levo um mês observando e registrando o discurso público sobre a agressão económica e política a este país causada polo desastre do Prestige, sobretudo nos médios de comunicação, e o que observo confirma-me nas teses de Pierre Bourdieu sobre o carácter construtor e dominador do Discurso. Muitas das minhas observações, suponho, são de senso comum, e nem se comentam por óbvias: por exemplo, a coerente insolência desses locutores legítimos da televisão espanhola a pronunciarem em espanhol os topónimos “Muksía”, “Lákse” ou, como não, “La Korúña”. Aqui o exercício de apropriação simbólica não pode ser mais evidente: “Muxía” e “Laxe” são palavras espanholas, pois pertencem a uma das “lenguas españolas” consagradas na sua Constitución. A pronúncia dos “x” por esse locutor é a correcta, as outras são dialectais.

Mais ricos em significados são os contrastes simbólicos e sociais entre o português de muitos marinheiros e o espanhol dos locutores da TVG, variante regional do espanhol da TVE. Bourdieu destaca que a legitimação duma nova língua de autoridade não consiste apenas na sua regularização formal, mas, sobretudo, na geração de novos discursos com novos vocabulários e novos universos conceptuais para representar o mundo social. A Língua Espanhola que se está a normalizar na Galiza sob duas variedades formais gera o discurso democrático da Modernidade, do Estado, da Eficácia, do Voluntariado, da Responsabilidade Cívica. Em programas de televisão sobre o desastre do Prestige mostra-se nos intervalos propaganda oficial sobre a segurança no trabalho no mar: barcos limpos, grandes e totalmente equipados. A voz que nos fala, em espanhol ou galego-espanhol, é um acento grave e masculino, regular, profundo, sério e (como não), ceceante como España. Os discursos de ministros, jornalistas e científicos baralham cifras sobre ajudas macroeconómicas, cifras sobre graus de toxicidade e viscosidade do “fuel-óleo”, sobre profundidades submarinas. Por contra, o discurso galego-português de marinheiros e mariscadoras fala em termos quotidianos dos ganapães, os trueiros, as redes de almofadas caseiras, o Monstro do chapapote, a necessidade de comer ou emigrar. Eufemismo e materialismo associam-se assim correlativamente com duas cosmovisões de classe intrinsecamente antagónicas, com duas linguagens e duas línguas irreconciliáveis no espaço deste Estado, em definitivo com dous projectos sociais em conflito.

Contudo, os protocolos da tolerância ocidental permitem um certo grau de crítica a esse próprio Discurso que tenta tornar a agressão económica e social sistemática em imponderável “natural”, como no caso dos temporais que estragam vilas mal condicionadas, como no caso das epidemias de vacas loucas causadas pola cobiça económica, como no caso dos terramotos vinculados a monstruosas barragens antiecológicas. As fendas que permite o Discurso são cousas como a utilização pública da acusação de “MENTIREIROS”, a própria petição de “demissão” (que, não paradoxalmente, legitima os governantes como os nossos governantes), ou os jogos de palavras com “bigote” (sic) e “chapapote”, como se o que caracterizasse o totalitarismo fosse o pêlo facial. A personalização das culpas da catástrofe não ajuda para a compreensão das suas causas e para o seu combate. Sabemos também, por exemplo, da rápida apropriação por parte da oligarquia política do lema Nunca Mais. Tentam esvaziá-lo de conteúdo, como com toda a imaginação popular, e agora há que lutar para destinar-lhe novos sentidos, ligar esse Nunca Mais a outro projecto social e económico desafiante e potencialmente emancipador. O Poder sabe bem o quê são e como são as armas do Discurso.

Mas as grandes palavras ausentes de toda esta confrontação social são a palavra rei, a palavra monarquia, o nome próprio Juan Carlos de Bourbon. Eis o imenso tabu que nos sobrevoa como uma imensa maré negra discursiva, obturando os coídos da consciência. Avonda com cartografar brevemente a colonial conduta do rei de España (e, quando escrevo estas linhas, do seu filho) contra as suas palavras na sua visita a Muksía: Manchou de piche os seus sapatos pagos também por nós, para fazer-se a foto enquanto criticava os que se faziam a foto. Veu como representante dum Estado que é na realidade miserável, um longo fracasso histórico que desde há décadas os governantes espanhóis tentam paliar em Europa. Mas no quadrículo do televisor a imagem era outra: o Estado engrandece-se polo zoom preciso dos jornalistas lacaios do Discurso focando o rosto real afectado por tanto sofrimento nos seus domínios. Logo, a cena televisiva elegida para ré-legitimar um chefe de estado colonial é, de novo, a do cidadão ou cidadã “popular” que louva o Rei e o venera nataliciamente como se fosse o quarto Melchior ou Gaspar. O Chefe do Estado espanhol desceu ex-machina, como no teatro clássico espanhol, para citar-nos Fuenteovejuna, uma referência tão remota para nós (polo menos para mim) como os Ananda Randa ou o mito do Tempo dos Sonhos dos aborígenes australianos. Porque na realidade a mensagem real não ia dirigida a nós: ia dirigida a España, para que, desde abaixo, desde o “pueblo”, desde “los pueblos de España”, chegassem procissões de voluntários e caixas de turrão a demonstrarem a inutilidade do pouco autogoverno da Galiza que ainda se gere desde aqui.

Não lamento intrinsecamente a debilitação desse pedaço de Estado, dessa Xunta desaparecida nas fauces do chapapote espanhol. Só tento destacar que as práticas de auto-organização que contemplamos, como defesa material, estão também ligadas a uma linguagem, uns discursos e uma língua que contêm o potencial da revolta, paralela a este Estado, e portanto contra dele. E que o Intocável, o Inominável, portanto, o adversário histórico desse espírito de revolta, deveria ser já também nomeado e tocado por essas linguagens. Por exemplo: o Reino de España, como não podia ser doutro jeito, “falhou-nos” de novo porque nunca foi concebido para não nos “falhar”. A Juan Carlos de Bourbon, responsável constitucional máximo para as boas e para as más, por essa dignidade que declara ter a realeza deveria dar-lhe vergonha ser Chefe desse Estado.

Por princípio, não posso nem sequer ser republicano, defender qualquer forma de estado. Mas devo constatar que a resistência actual contra o chapapote –símbolo e produto da lei capitalista– é uma forma de república. Quando lhe comentei a um conhecido intelectual independentista na manifestação contra Aznar na Corunha que a consigna deveria ser Juan Carlos, Abdicação, não só Políticos, Demissão, ele tentou desactivar: “Claro que estou de acordo, mas essa não é a questão agora”. Não, o regime monárquico nunca é a Questão. O Discurso fagocita também as elites intelectuais, já o vemos. Mas lembrem os nacionalistas galegos que nunca poderá haver soberania sob um regime e com um Chefe de Todos os Exércitos que, por lealdade constitucional, poderia enviar o mesmo exército que agora está a escarvar nas praias para matar marinheiros independentistas se ao Reino lhe fosse necessário. Isto é constitucionalmente assim de claro, não nos enganemos. Ou é que alguém ainda pensa que a forma do Estado moderno pode ser neutral? O Intocável é agora o rei e a monarquia, uma forma de estado que é essencialmente antidemocrática porque glorifica o privilégio do sangue masculino de família e porque consagra a propriedade privada do Reino e as suas colónias, incluindo as nossas costas infectadas. Digamo-lo, a ver quem escuta, e sobretudo a ver se se entende, para que os partidos que dizem “defender-nos” não defendam em lugar disso os privilégios do autoritarismo monárquico: Nunca Mais. Nunca Mais monarquia capitalista na Galiza. Em nenhuma parte. Sempre preferirei o idealismo das palavras deste tipo a esse “realismo pragmático” dos políticos que, dia a dia, não deixa de ser uma derrota.

Uma questão de cultura

Enviado a La Voz de Galicia e a La Opinión de A Coruña; não publicado

O recente Encontro Nacional sobre a Língua organizado pola Mesa pola Normalización Lingüística, a que assistiram numerosas associações culturais e de base e indivíduos, concluiu aprovando uma série de resoluções para o trabalho em favor da língua. A primeira diz: “Reafirmamos a substancial unidade existente entre o galego e o português”. Esta resolução é importante, porque constata de novo uma evidência histórica e social. A unidade linguística galego-portuguesa explica, por exemplo, que este texto poda ser escrito e lido perfeitamente na Galiza, e que poda ser lido, além, em galego, com mínimas adaptações ao acento de aqui.

Estamos provavelmente na fase mais crucial da história da língua da Galiza. A acelerada perda de falantes habituais não se compensa com a congelada penetração de certas variedades da língua nos âmbitos mais formais. Perante esta situação, os poderes públicos e as instituições culturais têm a oportunidade e a responsabilidade de reafirmarem com palavras e com actos a natureza comum da nossa língua galego-portuguesa, porque o que se diz em público lembra-se, e o que se lembra dia a dia pode guiar melhor os nossos actos. O catedrático do Instituto da Lingua Galega Francisco Fernández Rei, por exemplo, escreveu na revista internacional Plurilinguismes que “dum ponto de vista estritamente linguístico, podemos admitir que o galego e o português falados hoje constituem praticamente uma só e única língua ‘por distância’”. O anterior presidente da Real Academia Galega, Francisco Fernández del Riego e muitos outros especialistas têm manifestado opiniões semelhantes. É necessário e inteligente lembrarmos esta evidência.

Por isso, é fundamental uma decisiva viragem que, sem trair nem renunciar às trajectórias culturais anteriores, nos recoloque na evidência e recolha assim o sentir de crescentes sectores de pessoas que também se interessam profundamente polo presente e futuro da língua do país. Um primeiro passo para a coesão e para o enriquecimento cultural seria o reconhecimento, por parte das instituições de poder e de cultura, da legitimidade desta concepção e desta prática galego-portuguesa da língua, que se reflecte na escrita internacional, na literatura e na própria experiência de contacto entre habitantes dos dous lados da inexistente Raia. Os intercâmbios entre escolares da Galiza e de Portugal, por exemplo, promovidos por liceus e organizações culturais, são bons exemplos de uma experiência conducente a reduzirmos as fronteiras. A possibilidade de recebermos habitualmente os meios de comunicação de Portugal acrescentaria também a nossa exposição a uma cultura próxima, e contribuiria para reduzirmos a nossa dependência das culturas anglófonas, nomeadamente dos EUA, que tão pouco têm a ver com a nossa realidade.

Numerosas pessoas e colectivos defendemos o direito da Galiza a receber material cultural de Portugal, Brasil e outros países, em pé de igualdade com o nosso próprio, como a melhor maneira de reforçarmos a nossa própria cultura. Há uma crescente demanda da aprendizagem do padrão linguístico português, cujo conhecimento é essencial para utilizarmos a língua, produzirmos saber, e lermos excelente literatura sem mediação qualquer de traduções deturpadoras. Ninguém duvidaria que os andaluzes, por exemplo, cujas falas são tão distintas da língua da cultura escrita espanhola, têm direito a serem considerados falantes da língua espanhola e de aprendê-la como tal. Não sei porquê os galegos deveríamos ser menos a respeito da língua padrão utilizada em Portugal. Devemos ter o direito de aprendermos e utilizarmos, em todos os níveis educativos e para todos os âmbitos da vida diária, o padrão linguístico que plasma internacionalmente essa substancial unidade entre o galego, o português, o brasileiro, o moçambicano… ou o berciano.

Se a língua se perde geração após geração, é também porque existe um impiedoso mercado linguístico e cultural que procura nos impor o alheio. Talvez a gente não se reconheça na função artificialmente limitada do galego actual para produzir cultura. Aqui somos uma comunidade pequena, mas para o Sul e para o Oeste fazemos parte de uma ampla constelação de comunidades. A globalização não pode funcionar sempre na mesma direcção: temos capacidade de ser outro Centro na periferia ocidental.

É o momento de superarmos o uso do galego oral e escrito como uma forma de militância, e de praticarmo-lo como uma conduta naturalizada dia a dia, para exercermos a nossa cultura dentro do âmbito linguístico e cultural próprio. Mas este projecto não é apenas uma questão de vontade individual. Os poderes públicos e as instituições têm a grande oportunidade e a responsabilidade de recolherem este desafio contribuindo para a nossa adaptação aos tempos com uma valente viragem alicerçada no diálogo.

Reclamarmos o nosso não é uma questão de fé, nem de combate: é uma questão da razão. É uma questão de cultura.

A nação das mulheres

Enviado a Faro de Vigo; não publicado

A todas as mulheres assassinadas. Com a minha culpa como homem.
Com desculpas polo meu atrevimento e pola dureza deste escrito

O caçador diminuiu a marcha e detivo o camião poucos metros mais atrás. Sabia que uma fêmea assim, separada da manada, não se devia deixar escapar facilmente. A Lei era clara neste sentido: Qualquer exemplar solto, sem marcar, é propriedade de quem o capture. As fêmeas assustam-se facilmente com o ruído dos motores. Nessa hora da manhã o resto da manada abrevava ou estava ainda por acordar. O caçador desceu do camião e prendeu habilmente a fêmea sem que esta pudesse fazer nada. Botou-na na caixa do camião, amarrou-lhe as patas, fechou as portas rapidamente para apagar os ruídos de queixa da presa. A Lei é explícita neste sentido: O gando sem marcar será propriedade de quem o capture. Às vezes é mais produtivo revender a fêmea ao seu antigo proprietário. As negociações polo preço podem durar meses. Alguns homens caçam a sós, outros ocasionalmente em grupo, quando voltam irmanados dos lugares de encontro e topam com uma fêmea isolada na curva de uma estrada. Baixam do veículo e rodeiam-na, sobem-na, mantêm-na tranquila com suaves vozes aprendidas secularmente para apaziguar animais enquanto se dirigem a um lugar escuro. Outras vezes, o caçador sofre tanto de soidade que precisa utilizar a fêmea sem revendê-la. A noite é demasiado longa num veículo ou alpendre isolado. O caçador tem direito a utilizar o que é seu. Logo do uso sacrifica a fêmea e bota-a ilegalmente entre arbustos. O caçador volta polo alvor à casa. Quando tem sorte, aguarda por ele uma esposa de olhos abertos com um café de amor nas mãos. Quando não, diante do caçador há só um televisor ligado que transmite incessantemente feiras de gando numerado, fortes e formosas fêmeas para o comércio mundial. A Lei é boa e justa para os homens que a votam, a Lei é clara: Os meios públicos devem promover a Economia, o Culto, a Ordem. A Lei é coerente.

Até à hora do sol-pôr o caçador come produtos democráticos enquanto contempla as mostras numeradas das feiras. Vê passar muitas fêmeas fortes e formosas polo ecrã. O caçador súa de soidade. Nas pausas comerciais onde se oferecem mais fêmeas, o caçador dá brilho às suas armas: o laço da palavra, o rifle masculino. Ao cair a noite o caçador está de novo preparado. Fecha a sua cabana. Ou sai despedindo-se levemente de uma esposa de amor sem pentear. O caçador prende o camião, e marcha. Mas hoje está confuso. Leva tantos anos a admirar tantos exemplares numerados fortes e formosos que está confuso. Primeiro precisa percorrer a sós estradas solitárias, e pensar. Pensar, pensar. A Lei é boa, a Lei é clara: Toda fêmea que não tem marca é de quem a caçar. Mas o trabalho não é fácil. Ninguém compreende a imensa tristeza dos caçadores solitários. Por algo a maioria dos homens preferem ser proprietários. De quando em vez um proprietário sacrifica uma fêmea que já não era produtiva, ou que fugira por um injusto instinto, desagradecida de tantos anos de ser alimentada e protegida. Mas as fêmeas fugidas polos arrabaldes sempre deixam um rasto de cheiro que o proprietário reconhece e segue. Afinal, o proprietário alcança a fêmea e sacrifica-a com gasolina para que deixe de fazê-lo sofrer com a sua ausência. O caçador pensa que tal desperdício de fêmeas é injusto. O caçador pensa tudo isto enquanto sulca a planície da estrada, o corredor ladeado por um desfile de fêmeas fortes e formosas para a caça. Já é noite fecha.

A última vez o caçador também botou o cadáver da presa à beira-rua. Ocultou-na entre as sebes, deixou que as alimárias aproveitassem o seu corpo. O caçador está preocupado, a Lei é explícita neste sentido: O cuidado do meio-ambiente é imperativo para a Economia. O abandono de cadáveres utilizados está fortemente castigado. O caçador observa uma Patrulha da Moral Ecológica mais adiante. Os patrulheiros fazem sinais com luzes. O caçador diminui a velocidade. Passa devagar junto a eles. O caçador e os patrulheiros saúdam-se, fitam-se serenos nos olhos. É evidente que os três homens são honrados trabalhadores da Economia. As suas olhadas são limpas. Cada um tem a sua função na manutenção da Ordem. Quando uma fêmea marcada escapa e acaba refugiando-se por cansaço nos Locais da Patrulha Ecológica, os patrulheiros devolvem-na ao seu proprietário. É natural. A Lei é explícita neste sentido: A propriedade privada deve estar sempre vigiada. Então os patrulheiros acompanham a fêmea à casa do proprietário. O proprietário abre-lhes a porta, recolhe agradecido a sua pertença, assina algum Recebim necessário. No televisor do fundo vê-se a Mostra Mundial de Gando. Os patrulheiros e o proprietário trocam cúmplices olhadas perante tanto exemplar forte e formoso. A fêmea recuperada lambe docilmente a mão do proprietário. O caçador pensa tudo isto, pensa, pensa. O caçador sabe que os patrulheiros, os proprietários e ele mesmo trabalham por uma única Ordem, polo mesmo Culto e a mesma Economia. Às vezes o caçador quisera ser proprietário. Às vezes um proprietário também se faz caçador, por não perder uma tradição ou por cansaço da rotina. Às vezes um proprietário aluga as suas fêmeas a caçadores ou a outros proprietários. A Lei e a Economia favorecem esta mobilidade social entre os homens, é necessária. A Ordem é precisa, justa, exacta.

A nação das mulheres é um território imenso que não conhece siglas, nem fronteiras, nem bandeiras, nem dinheiro. É a maior nação do mundo, colonizada, sequestrada, invadida, escravizada, mutilada e assassinada diariamente num inenarrável circo de sangue de tal crueldade que fixo a deus suicidar-se há muito tempo. Cada dia os caçadores matam todos os cérebros do mundo, toda a humanidade, e cada dia a vesânia volta a ressuscitar numa notícia de rádio. Eu sei isto porque sou varão e como tal também levo dentro uma indesejada arma de ódio, e também tenho poder, e dia a dia combato contra um cancro na minha mente que me ordena matar a mente da humanidade, matar a nação das mulheres. E estou convencido que eu também, de maneiras diversas, contra a minha própria vontade, dia a dia contribuo para matar essa imensa nação enquanto luto por deixar de matá-la.

Mas a nação das mulheres erguerá-se contra a loucura e contra o ódio. Pouco a pouco, com a firmeza da razão humana, com a justeza da razão humana, e contra a resistência dos varões, dos estados masculinos e dos escravistas da carne, a nação das mulheres imporá a utopia da igualdade, que é o lugar onde nasceu e aonde deve chegar a humanidade. E cairão os ídolos e desaparecerão os caçadores e as presas, e os proprietários, e aqueles homens monstruosos e miseráveis vagarão sem armas num horrível desterro polos caminhos da mente que agora ainda cheiram a sangue e gasolina e não deixam dormir.

A nação das mulheres não é apenas um nome sonoro para descrever o mundo: é o nome da assembleia humana que leva milénios em jogo. Maldigo a história enquanto aguardo esperançado a que se erga dia a dia a voz universal da igualdade, o reconhecimento definitivo de tanta humilhação e crime, a compensação final por este longo genocídio.

Le Pen, a Esquerda e Tu

Enviado a A Nosa Terra; não publicado • Publicado em NON!

Estes comentários sobre a vitória relativa de Le Pen na França soarão tão velhos a alguns como os princípios que sustentam a minha utopia razoada, esse projecto que nos legou Bourdieu para algo mais que conversas de salão (em Bourdieu, a utopia razoada era um sólido ideal político e social; na maioria dos que agora citam Bourdieu, é uma sonora expressão, como o seu nome, para aquilatar medalhas). O fracasso da “esquerda” e o pretenso fracasso da “direita democrática” frente à pretensa vitória relativa da “ultra-direita” são na realidade a consolidação do projecto de dominação a que ambas facções das classes dominantes levam empurrando o mundo nas últimas décadas. O argumento é singelo, e portanto não faz os quinze minutos de televisão, os pseudo-debates democráticos: O argumento é que uma “esquerda” que se dá a mão com o fascismo económico é cúmplice do fascismo, e uma “esquerda” que não apresenta mais do que retórica esvaziada de conteúdo é a peça fundamental que precisa a “direita democrática” para auto-legitimar-se, “contra o fascismo” que nos invade.

Com efeito, quando a análise política se reduz ao bisbilheio anedótico, quando se comentam as subas e baixas de Le Pen e Chirac, Aznar e Zapatero, Fraga e Beiras (ou Beiras e Rodríguez) como se fossem as subas e baixas da popularidade de Operación Triunfo ou Gran Hermano, o efeito não pode ser outro que o efeito brutal da teoria. A teoria é que todos somos iguais, e que em democracia ganha quem pode porque sempre ganha o povo com o voto. O efeito é que desaparece a utopia política, humana, social e histórica que informou tanto pensamento verdadeiramente criativo e revolucionário durante tantas décadas tão ultrapassadas polo novo escravismo de que somos cúmplices. A teoria e o seu efeito são que os “partidos” se definem por pequeníssimas questões que atingem aspectos marginais da existência: a quantidade de um subsídio de desemprego (não a ignomínia do desemprego nem a ignomínia do trabalho assalariado), a quantidade de semanas em baixa laboral por maternidade (não a função dos filhos como possessão do estado para a reprodução do sistema de segurança), a quantidade de papéis necessários para reclamar a “cidadania” (não o direito a mover-se livremente polo planeta, nem o dever dos estados opressores –todos– a garantirem a permanência na própria terra), e assim por diante.

Quando se ignoram os princípios da utopia razoada, Le Pen é apenas um acidente que reforça, como hemos ver, o grande monstro de €uropa. Le Pen ou Haider são o pretexto, não a ameaça. A ameaça está e continuará a estar dentro da partitocracia enquanto as poucas mentes lúcidas das “esquerdas” sigam a renunciar a um ideal que não lhes custa –sejamos sinceros– nada: Os intelectuais de “primeira” ou “segunda geração”, como os chamou Bourdieu, os “intelectuais orgânicos” gramscianos que ocupam a simbólica cimeira da pirâmide das suas classes respectivas, continuariam a exercer o seu sacerdócio (como já fazem periodicamente Chomsky, Said ou Galeano) com a mesma impunidade de consciência ainda se proclamassem esse resto de integridade política que mantêm, mesmo por nostalgia, no fundo de leituras e escritos progressistas. Onde estão os modelos económicos destes intelectuais, além da sua lógica e veemente oposição aos extermínios? Mas o possibilismo é uma serpe que se acosta contra os corpos dormidos na noite, que penetra o cérebro e o sexo e cresce para romper desde dentro a utopia razoada, que é nossa, da história, não dos seus pretensos salvadores.

A utopia razoada consiste em algo tão singelo que toda a maquinaria económica das sociedades de classes leva já mais de cem anos tentando destruir com milionárias videotecas de sorrisos e frases fáceis. A utopia razoada, o lugar nos mapas do socialismo de que falou Oscar Wilde, é simplesmente o convencimento íntimo e consequente de que a matéria e as forças do planeta são de todas as pessoas, e de que qualquer distribuição injusta e desigual dessa matéria atenta contra o próprio carácter da humanidade. Ninguém negaria, desde a razão (não desde o medo ou desde o possibilismo) de que o projecto de igualdade é o único razoável para a espécie humana e as demais. Eis o enorme potencial que tanto as “direitas” como as “esquerdas” institucionais se empenham em destruir constantemente para o seu próprio benefício.

Foram os chamados “governos socialistas” das cidades os que, no Estado, começaram a desmantelar o público e a aumentar a desigualdade com falsos booms económicos há um par de décadas. São os actuais governos das vilas e cidades os que também exercem contra a gente o mandato divino que lhes dá o voto. As palavras igualdade, revolução de classe, socialismo, desapareceram totalmente do discurso público. Na invasiva circulação do discurso legítimo, a menção de “classe” produz na intelectualidade aborregada e na plebe igualmente aborregada uma ladaínha de pseudo-explicações, escusas sobre a “dificuldade actual de definir as classes”, como para negar a evidência da injusta miséria. Agora que morreu Gramsci, que nasceu o pós-modernismo com Bill Gates, que o planeta se faz “tão pequeno” que compramos Kit-Kats com um euro pintado de flores de Finlândia ou águias alemãs, a classe é uma pesada lage conceptual que a esquerdinha não quer levar acima como um molesto resto de ideologia. Tudo se reduz a “direitos democráticos”, a “reconhecimento cultural”, à “integração das minorias”. Neste programado conflito entre conflitos, os interesses económicos confrontam tristes jornaleiras de Polónia contra tristes jornaleiros de Marrocos nos campos sudistas de fresas congeladas, confrontam máfias drogaditas de ucránios com máfias drogaditas de ciganos, moros contra cristãos e dépores contra barças no televisor congénito da mente. Tudo responde ao mesmo esquema infantil que inventou Abraxas e deu tanto fruto no concurso televisivo da política.

Por isso desce dos ceus Le Pen como sintoma, como polícia mau contra Chirac o polícia bom, ambos votados polos próprios torturados do euro. Aqui, dizem os listos, a “ultra-direita” não existe. Claro: está debaixo do uniforme de Jaime Pita, Pérez Varela ou Fraga Iribarne. A “direita democrática” leva o fascismo ideológico por debaixo porque por fora veste menos. E a “esquerda democrática”, o novo “nacionalismo da cidadania” que suplanta a força das múltiplas autodeterminações (o direito humano a ser oprimido como um queira) com um ambíguo direito ao boletim de identidade, dá-se a mão sem ideologia com a hidra reaccionária, que é (sem ironia) o “Pobo Galego” que a vota.

Companheiras e companheiros da “esquerda”: cada vez que matades a utopia razoada, que silenciades a necessidade indómita da total igualdade, aqui e alhures, nasce um Le Pen e ganha um Chirac: duas faces da mesma mo€da, que não deixa de ser a vo$$a. E a minha, que tenho o privilégio de escrevê-lo.