Final de sequestro: Sobre o “Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega”

Publicado no volume O País na Janela. Três anos de independência informativa: Novas da Galiza 2002-2005. Lugo: A Fenda Editora (2005), pp. 23-25

Já há anos que o vocábulo “normalización” da língua foi sequestrado por sectores do poder político e intelectual galego, com bons benefícios. Mas parece que com o Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega (PXNLG) a nau sequestrada da língua entra no seu trajecto terminal, pilotada por planificadores temerários. Nesta crítica do PXNLG foco-me apenas em duas questõezinhas, como veremos totalmente marginais: (1) os próprios objectivos do Plano; e (2) o seu próprio desenho geral. Qualquer centena de medidas que saírem de objectivos e desenhos deficientes só poderá produzir resultados deficientes. Ou, antes, muito úteis para o alvo de enterrar com palavrório o assunto da língua por décadas por vir.

Entre os objectivos do PXNLG figuram garantir os direitos de “quem quiser” a desenvolver a sua vida em galego, e o de promover a expansão do idioma em âmbitos e funções sociais. Dificilmente estes objectivos podem ser considerados “normalizadores”: o direito individual a viver em galego já está reconhecido na legislação de há mais de 20 anos (o Estatuto e a Lei de Normalización). E a expansão de certos (certos) usos do idioma já está recolhida nessa mesma legislação e sustentada na própria dinâmica do país. Naturalizar um idioma não é isso, mas fazê-lo imprescindível e habitual para todos os âmbitos de uso de toda a gente, ou da imensa maioria (não só dos que “queiram”). Em todo o caso, um Plano verdadeiramente “normalizador” deveria estar desenhado para garantir o direito dos cidadãos “que quiserem” a utilizarem também o espanhol. Polo contrário, o PXNLG parte da minoração efectiva do português galego, violando assim o ditado do próprio Estatuto que o institui (descabeçado) como “lingua propia” da Galiza.

Em segundo lugar, o PXNLG ignora importantes bases sociolinguísticas que explicam o funcionamento das línguas em qualquer sociedade de classes burocratizada moderna. O Plano segmenta os usos linguísticos sociais praticamente em Sectores “verticais” por Conselharias, sobre os quais a Xunta vai intervir com inúmeras medidas. Mas a gente real não fala por sectores verticais: fala e escreve consoante o que se chamam domínios de uso com características comuns. E distinguem-se comumente dous tipos de domínios principais: o coloquial-informal, e o institucional-formal. Quer dizer: os indivíduos relacionam-se ou entre eles, ou com representantes das instâncias formais e institucionais (como clientes, administrados, pacientes ou discentes).

No seu anti-sociolinguístico zelo tecnocrático, o PXNLG reúne aberrantemente por exemplo os âmbitos institucional do ensino e informais da família e das redes de amizade entre jovens, no Sector Educación, Familia e Mocidade. Um calculado subproduto deste desenho é minimizar a questão central a qualquer plano de normalização: a transmissão intergeracional da língua na família, e a sua consequente manutenção nas redes de amigos. Um desenho realmente comprometido com o idioma teria priorizado este campo, em torno do qual se articulariam os demais. Porém, a área Família só contempla 9 medidas, das quais apenas 3 são específicas à intervenção no próprio grupo familiar. Não surpreende então que os “pontos fortes” e “pontos débeis” (“puntos débiles”) da situação actual do idioma no seio da família (pp. 70 e 71) sejam uma réstia de inconsistências. Entre os “pontos fortes” conta-se, por exemplo, que “O galego aumentou considerablemente o seu prestixio social nos últimos 25 anos” (?), enquanto um dos “pontos débeis” é a “Escasa valoración da lingua galega no seo familiar en termos de identidade, de utilidade e de prestixio social”! Quer dizer: o galego tem mais prestígio social, mas as famílias (a gente) pensam que não. Uma lógica conclusão possível é que o galego tem grande prestígio social entre as pessoas solteiras e os eremitas. Além, a concepção da utilidade da transmissão da língua na família é puramente instrumental, como veículo vagamente identitário e/ou cultural, não como recurso económico para o avanço social. Assim, um dos objectivos é “sensibilizar” as famílias para os filhos se instalarem no galego e que assim “poidan acceder despois a outros idiomas”. De forma semelhante, o Sector “Sociedade” reúne também âmbitos de uso pertencentes ao domínio informal, e outros ao domínio formal.

Um comentário do rosário de medidas propostas levar-nos-ia muito longe. Algumas são tão peculiares que dariam para uma dessas mensagens de humor que circulam pola Internet. Tomemos como amostra esta, dirigida aos turistas: “Editar uns folletos cuns mínimos rudimentos da lingua galega (conversación) e da súa historia. E incorporalos á cadea de promoción turística”. Minha cunhada trouxe-me um dia da ilha de Curação uma camisola azul barata com frases em papiamentu, como Bon tardi, Bon bini ‘bem-vindo’, ou Mi ta stimabo ‘eu te amo’. Por isso o papiamentu é língua nacional.

Em resumo: a atomização “vertical” na concepção dos usos linguísticos, e a falta de priorização de Sectores e medidas pretensamente apropriadas fazem do PXNLG um produto confuso e irrealizável. Como em todos os projectos incontinentes, algumas medidas se cumprirão, outras não. Por exemplo, pode-se dar o caso de que se cumpra a medida final para a Proxección Exterior da Lingua, “Facer do ballet galego Rey de Viana un embaixador da lingua galega en todos os seus espectáculos” (sic), enquanto fiquem sem ser cumpridas as orientadas a impedir a perda intergeracional do idioma. A concepção directora do Plano é que o português galego não é nem pode ser língua nacional, mas um direito voluntário. De facto, em muitos aspectos o PXNLG é o mais antitético imaginável a um projecto de “normalização”.

Polo contrário, haveria que olhar para aquelas sociedades onde a língua cumpre com efeito as três funções básicas: recurso económico para o avanço social nas sociedades de classes, recurso comunicativo para a coesão social, e recurso simbólico para a identificação colectiva. Neste sentido, o modelo mais próximo para a Galiza é sem dúvida aquele onde a língua é normal, natural e nacional: Portugal. Não pareceria tão difícil mudar o chip, se não fosse porque o chip espanhol da elite galega é muito forte. Quando se sequestra uma nau durante muito tempo, depois todo mundo esquece aonde se dirigia inicialmente. Às vezes os aviões sequestrados sobrevoam países até que se lhes acaba o combustível e aterram em qualquer lugar remoto. Este Plano está desenhado para aterrar em qualquer lugar, esfarelado, e ficar nos hangares para sempre.

Não penses no NH

Na essencialização da luta jurídica e social sobre o sentido dum famoso pseudo-topónimo, La Coruña, esquece-se (intereseiramente?) o outro aspecto crucial da questão que nos deveria ocupar: Coruña ou Corunha? Ou Crunha? Ou Acrunha? O poliglóssico nominho debate-se assim entre duas fontes de conflito semiótico interno, ambos símbolos de Língua e Nação, ambos susceptíveis de serem ré-significados tacticamente: um artigo espanhol, La, frente a uma letra também espanhola, ñ. Ao priorizar um símbolo morfológico sobre outro gráfico, o Discurso (inerentemente espanhol) mascara eficazmente o significado do símbolo adversário. De maneira crucial, a questão do ñ nem é mencionada por reivindicadores galeguistas de todo tipo, como se tudo se reduzisse à imposição dum articulado topónimo espanhol sobre o direito essencial a existir dum articulado topónimo Agalego@, isto é, espanholizado.

A táctica é sem dúvida efectiva: A fórmula duplamente espanholizada A Coruña galvaniza a pretensa resistência dos agravados, todos (quer dizer: todos os Agalegos que se prezem@). Ninguém ousa abrir a boca para dizer que tanto monta monta tanto, porque o que subjaz ao império toponímico da Xunta é a concepção espanhola e espanholizada da língua portuguesa. Pretender dizer publicamente, então, que a questão não é A Coruña frente a La Coruña, mas Corunha frente a Crunha, significa situar-se fora do âmbito legítimo onde se coze a aparente Acontradição fundamental@: vazquismo versus galeguismo genuíno. Desde o galeguismo oficial e para-oficial, falar no assunto Corunha vs. Crunha pode interpretar-se como fazer filibusteirismo sociolinguístico, isto é: preterir a solução final que consagra o ñ galego frente a… frente ao ñ espanhol, claro, porque é sabido que se o ñ aparece numa palavra galega é um ñ galego, não espanhol.

Portanto, no debate entre La e A, o que está em jogo é o ñ. É precisamente para quebrar este jogo, para a necessária ruptura do quadro dominante, que devemos situar no debate social a questão crucial: Como vamos chamar definitivamente a segunda cidade da Galiza, Corunha ou Crunha? As condições para este são filibusteirismo estão dadas: A caixa de Pandora está (na verdade, leva anos) muito aberta. E os razoamentos para defender uma ou outra opção (que são, verdadeiramente, inconsequentes: outro tanto monta monta tanto) são tão transparentes que só um nacionalista espanhol poderia negá-los: que nos mapas internacionais da nossa língua o artigo não se emprega; e que os mapas internacionais da toponímia da nossa língua o ñ não existe.

Claro que então defender discursivamente Aa nossa língua@ é a questão central. Aos espanholistas manifestos, pode-se-lhes dizer: AOlha, na vossa língua, escrevei La Coruña se queredes. Mas Corunha é uma cidade da nossa língua@. E aos galeguistas manifestos (isto é, espanholistas implícitos), pode-se-lhes dizer: AOlha, que A Coruña está escrito com letras da sua língua. Não quererás que seja a tua língua também! Ao que íamos: Tu pensas que esse o de Corunha deve estar aí, ou é um invento?@.

Não confio em que estas verdades e perguntas de manual entrem lóstregamente nos miolos dos cépticos galeguistas, que são os que nos interessam. Mas descolocar o debate para colocá-lo bem tem o seu atractivo.

E a táctica específica para fazer isto pode vir da mão do linguista cognitivista estado-unidense George Lakoff. Num livro recente por outra parte esquecível, Don=t think of an elephant!, Lakoff aponta atinadamente que a simples menção de um conceito, inclusive para negá-lo, evoca o quadro de referência associado: Não penses num elefante! E automaticamente imaginamos a sua trompa, a cola delgada, as orelhas a abanar o ar, a estepe ou o circo… Por isso, diz Lakoff, tanto defender algo como atacá-lo com as palavras dos que o defendem acarreta evocá-lo e, portanto, reforçar o seu quadro associado na mente.

Mas quando um conceito não é socialmente dominante (aventuro eu, não Lakoff), defendê-lo talvez não adiante nada. É melhor, simplesmente, lembrar que existe: activar a pressuposição de que existe, evocando-o. O elefante, no nosso caso, é o dígrafo próprio, NH, que é um conceito, um forte conceito que evoca o quadro de uma (de outra) Língua Nacional. É isso o que devemos mencionar… sem defendê-lo. Como? Por exemplo, dizendo aos amigos e amigas galeguistas que assinam Recursos contra as leis ilegais do Reino: Não, não penses no NH do topónimo, não é essa a questão crucial. Não penses no reintegracionismo. A questão crucial é como deve ser o nome escrito: Corunha ou Crunha?

España, S.L.

Publicado em Vieiros

O problema que tivo o Conselho de Administração de Euskadi Ltd. é que a legislação comercial do cartel España S.L. não permite a separação unilateral dum dos sectores de produção, sobretudo quando este é tão importante que sem ele a empresa ficaria praticamente descabeçada. Ontem, na Junta geral de proprietários de España S.L., ficou claro que comercialmente teria sido melhor para Euskadi Ltd. a estratégia, praticada profusamente há anos durante a época de venture capitalism em USA & Co, Europe Inc. e a própria España S.L., de descolar-se da empresa mãe fugindo simplesmente de noite com a principal carteira de clientes. Afinal, se Euskadi Ltd. fosse capaz de evadir os serviços de segurança por terra, mar e ar contratados consoante o artigo 8 da Constituição Comercial, que garante a integridade da empresa, e fosse reconhecido como partner potencial polas outras empresas mundiais, pouco poderia fazer o resto de proprietários de España S.L. Catalunya Inc. e Irmáns Galicia talvez contemplassem com inveja e preocupação a aventura, enquanto o resto de España S.L. deveria, sem dúvida, aggiornar-se a um novo panorama comercial menos favorável.

Nominalmente, a reunião de ontem foi mais um desses trâmites polos que as Juntas de Proprietários devem passar para aprovarem as cousas mais triviais. Euskadi Ltd. mostrou os dentes, Catalunya Inc. confirmou a sua lealdade ao cartel, um quadro médio de Irmáns Galicia queixou-se de novo do lamentável estado das suas instalações, e a aliança entre os dous maiores sectores proprietários de España S.L., sentados a direita e esquerda da longa mesa de trabalho, continuou a funcionar como desde há décadas, na aparência de confrontação, mas sempre protegida sob o solene retrato do Presidente Vitalício de Honra, Sua Majestade Real, e os de todos os antepassados que possuem o consórcio desde há séculos (fora de temporárias ocupações civis que sempre acabaram desalojados pola polícia). O Presidente do Conselho de Administração, o Sr. Talante, demonstrou que é capaz de dialogar com um presidente territorial sem humilhá-lo. Por contra, o Sr. Mire Uszté, cujo sector é maioria em tantos Conselhos de Administração territoriais, rejeitou veementemente qualquer cissão no cartel (mesmo com posterior aliança comercial), e até ameaçou com uma possível OPA agressiva sobre Euskadi Ltd., contemplada no artigo 155 da Constituição Comercial como tábua salvadora para unificar a política de empresa. E apenas vozes tímidas (como a do Sr. Nosotros Creemos) se alçaram na Junta de Proprietários em favor duma restruturação horizontal do organigrama e duma questionável oferta pública de acções que corresponsabilizasse os próprios consumidores da instabilidade estrutural da empresa.

Contudo, é evidente que algo se move dentro de España S.L. Sofre simultaneamente pressões centrípetas pola sua futura absorção por Europe Inc., fendas centrífugas pola necessidade de expansão dos seus sectores periféricos, que já não respiram com as quotas de mercado cedidas por Madrid, e desconcerto pola recente mudança de sede executiva da rua Génova a Ferraz. España S.L. tem demasiadas filiais com demasiados interesses sectoriais. Por exemplo, o Conselho de Administração de Irmáns Galicia (quer dizer, os quatro irmãos, mais o púdico Presidente eleito, braço direito da Capital antes da modernização de España S.L.) levam anos demonstrando estarem dispostos a mudar radicalmente o seu sector de produção se assim podem manter a titularidade da empresa a qualquer preço. Producsioneh Canariah, por sua parte, é favorável a colaborar no cartel España S.L. com a única condição de preservar a sua imagem corporativa exterior. Facções em alça de Catalunya Inc. continuam a manifestar a sua intenção de absorver as contíguas Distribuidora Valencia e Servicis Illes. E enquanto concessionárias como Andalu & Cía. reclamam também periodicamente parte da torta, outras como Mur Cia. levam anos sem abrirem a boca na Junta de Proprietários. E assim por diante.

Em resumo, tudo isto dificulta o desempenho de España S.L. nos mercados, e coloca a empresa numa situação difícil de administrar com lucidez comercial. Por isso, a campanha de mercado em andamento de España S.L., que culminará com o maciço inquérito de consumo do 20 de Fevereiro, está só desenhada para desviar a atenção dos problemas internos e para preparar a sua absorção por Europe Inc. perante o temor de queda de confiança dos consumidores. España S.L. debate-se assim entre a perda de capacidade de gestão que a sua integração em Europe Inc. acarreta, e as demandas de subsectores altamente especializados que não parecem achar equilíbrio no actual organigrama do conglomerado. O resultado só pode ser ralentização do processo produtivo, custos produtivos crescentes, possível ajuste brutal de planteis, e desconfiança do mercado. Perante esta salada, só algumas vozes críticas sugerem que o mais prudente para a empresa seria rejeitar a fusão com Deutschland Internationale, France Totale e outros cartéis semelhantes, a independização das filiais territoriais, e começar de novo a capitalização desde abaixo. Algumas ousadas organizações de usuários até propõem fórmulas distintas de capitalização. Seja como for, a crise está servida, e quem sofreremos, de novo, seremos os consumidores. Haverá que ir viver a outras empresas. Ou montar um país próprio, sem Capital.

Devastação do corpo

Publicado em Novas da Galiza 26, Janeiro 2005, p. 2

Confesso-o: há semanas começara a escrever para esta publicação um ordenado texto sobre a nação, sobre as nações, quando uma súbita doença de uma pessoa da família e um confinamento quase diário em hospitais fez-me pensar na dura evidência do corpo. Da fragilidade do corpo. Da sua essencialidade. Da sua inapelável realidade. E agora, poucas horas antes do prazo para este artigo, dias depois de corredores de hospital, de contemplar em quartos carentes infinitas tosses de anciãos, inacabáveis laios nocturnos, rostos decaídos, enormes soidades dentro da casca seca da velhice, compreendim que tudo revolve em torno do corpo, que contém a mente, que contém aquele falido artigo sobre as nações que felizmente nunca existirá. E compreendo que a política é a expressão do corpo, que a clara ligação entre um tsunami assassino e a miséria dum trabalho nos sujos arrabaldes da cidade reside na dimensão incombustível do corpo, a nossa única propriedade: a que nos forçam a oferecer como escravos, a que lanceiam os doutores e modernos druidas, a que é matada nas guerras, a que decai nas minas de carvão, nos prostíbulos onde jovens injectadas de morte são penetradas por armas de carne e depois sangram pequenos corpos clandestinos nas lixeiras. Tudo (o amor, a raiva, o trabalho, o sexo, o fruto que chamam a poesia) é a mesma massa de corpo, a mais elementar matéria que possuímos, a que eu alimento para ela alimentar os meus escritos. A humanidade é a matéria universal que é violada a diário por si própria. O corpo, casa do ser, cárcere e campo simultâneos, o corpo que limita.

Por isso, observar desde a mente do corpo o que acontece hoje no mundo só pode entristecer-nos. Algo está profundamente errado quando a mente se cega à miséria do mundo, que é simplesmente a miséria de milhares de milhões de corpos: quando a mente se nega a ver o roubo de uns corpos por outros, o tráfico de cadáveres em vida em que consiste o mundo. Alguma horrível cegueira nos invade quando não compreendemos em que consiste o espólio da força de trabalho, a soidade da pele da velhice que cheira a leite azedo, a penumbrosa prostituição como método, o brutal assassínio nas cozinhas de azeites requeimados e monótonas sopas amarelas. Dia após dia matando-nos o corpo e a mente da humanidade. Dia após dia renunciando à utopia, ferindo a massa orgânica do mundo. Eis a doença inacabável, eis o terror. E nós, cegos, silenciosos.

O Capital, fera imortal como todos os tumores, compra em grandes saldos os corpos, devora-os, devolve-os com outras formas no fumegante caldeiro das usinas, dos talheres clandestinos de lâmpadas poeirentas, no patamar de pensões esfregadas de joelhos com ressessa lixívia. O Capital compra corpos de escravos nas filas do desemprego, nas sonoras praças públicas, nas canteiras onde meninhos de raças magras batem pedras por centavos, nos gabinetes povoados de máquinas plásticas, nos campos arados por antiquíssimo ferro, nos bous que soçobram pálidos cadáveres de olhos muito abertos entre um mar de água e outro de ar. O Capital abre-nos diariamente a mente do corpo e inocula vírus como ideias. E pouco a pouco vamos pensando como Ele. E julgamos que sobrevivermos décadas assim é suficiente para chegarmos vivos até à morte. E assim ao longo da vida o corpo que nos contém vai supurando imperceptivelmente a sua dignidade, e vamos arrojando membros em cada trabalho provisório, e a nossa mente vai ficando em esqueleto de si própria. E o Capital cresce e impõe com a nossa conivência novas cirurgias. E um dia inesperado somos velhos, e nenhum humano lembra já que esse frágil resíduo de nós também faz parte do seu corpo, do corpo e da mente histórica da humanidade.

Por tudo isso, e por muito mais, é obsceno e cínico falar política sem pensarmos no corpo. Sem repararmos no diário latrocínio. Mas não resta muito tempo para ressuscitarmos. Estão a envelhecer todas as utopias. Se não resgatamos o valor do corpo e da mente que contém, se o mundo não reclama com unhas essa mínima dignidade de habitarmo-nos a nós próprios, então por favor não pidamos contas a ninguém, a nenhum dos nossos profetas de artifício. Não protestemos qualquer política, não nos sintamos legitimados a qualquer combate. Pois, se continuarmos assim, com tal docilidade, estaremos comendo-nos a nós próprios mas engrossando apenas a monstruosa anatomia do Capital. A nossa força de trabalho vive só no corpo e na mente que temos, que é um só, que é unicamente uma: provavelmente seja mais digno morrer que malvendê-los. Por isso sempre contra Espanha. Contra a ávida Europa que já espreita. E sempre contra esta forma de Galiza.

Unidade, unidade, unidade

Publicado em Vieiros

“Por qué construir e defender desde o poder autonómico e desde a Real Academia Galega un galego diverxente das variantes faladas por 200 millóns de persoas en catro continentes entanto que se celebra en Rosario a universalidade e a unidade dun castelán calificado como infinitamente diverso?. Que razóns linguísticas poden xustificar este diferente critério político?. Por qué no castelán sí e no galego non?”

Camilo Nogueira, “Infinita variedade”, em Vieiros, 29-11-2004

Precisamente: Por que no castelhano/espanhol sim, e no galego/português não? Por que não praticam todos os defensores e defensoras da unidade linguística galego-portuguesa o que defendem? Por que é tão distinto o galego do argentino, ou do neo-zelandês, ou do quebequense, ou do valenciano, ou de tantas outras variedades que compartilham uma norma culta com outras variedades da língua comum? Que tem de especial o galego? Que têm de especial os galegos para não poderem aprender e praticar a sua língua, a segunda língua da România?

“Por qué o castelán pode ser nacional e internacional e o galego non?” (Camilo Nogueira, “Infinita variedade”).

Precisamente: Que se interpõe, na Galiza, entre o desejo e a realidade da língua comum, entre a ideologia e a prática da língua comum, na sua ampla variedade? E por que isto se interpõe só para algumas pessoas? Por que um galego não pode ser simultaneamente nacional e internacional na sua língua galega, portuguesa, como um castelhano é simultaneamente nacional e internacional na sua língua castelhana, espanhola?

Por que o galego-português não pode desfrutar da “diversidade como virtude, sen necesidade de gramáticas diverxentes, nen siquer de ortografías diferenciadas”? (Camilo Nogueira, “Infinita variedade”).

Precisamente: Por que centenas de pessoas que defendemos a unidade da segunda língua da România já escrevemos como escrevemos, enquanto outras pessoas que dizem cousas muito semelhantes não?

Até quando, até onde, deveremos ocupar-nos em decifrar a contradição? Até quando, até onde, deveremos continuar sem o valioso apoio e exemplo de algumas pessoas para o projecto da língua comum para a Galiza? Até quando vamos manter sequestrado o projecto da unidade, enquanto a língua de España cresce casa adentro?

Eucaristia

Publicado em Vieiros • No Blogue de Esquerda

O fedor dos corpos apodrecendo começou a fazer-se insuportável quando não havia ninguém para os enterrar. Nos pequenos jardins dos pátios interiores, os débeis sobreviventes cavaram fossas orientadas para Meca até que nem os seus braços aguentavam o trabalho. Por fim, a última pessoa viva da família aguardava num canto escuro da casa a entrada dos soldados estrangeiros com enormes botas, berros e palavrões de salvação cristã. Meninhos magros bebiam água suja dos esgotos, comiam farinha crua, descompunham os seus ventres em qualquer lugar enquanto enxames de helicópteros sobrevoavam as ruínas da cidade. Extramuros, polindo fuzis e tanques, grupos de cruzados entoavam canções ao Salvador, oravam força para o combate. Dentro dos muros, abraçados a fuzis e lança-granadas, mujahedins entoavam canções ao Salvador, oravam força para o combate. Alá era grande e Deus era grande, e polo Leste, polo Oeste, exércitos de esfarrapados que comiam farinha nas ruas furadas da cidade deixavam as famílias para se unirem aos exércitos de suicidas. Porque não havia nada que perder. Nem que ganhar.

Fallujah é apenas um dos nomes actuais que compõem o rosário de massacres em que consiste o latrocínio. Fallujah são três sílabas metafóricas. Anos mais tarde, quando continuemos a redigir estas crónicas desde a velhice que se impõe como uma cobra (depois de décadas de perceber o fracasso, depois de décadas de não querer termos nascido aqui para, simplesmente, ficarmos em frente do ecrã e gritarmos contra todo tipo de mortes), Fallujah lembrará-se clandestinamente entre as poucas pessoas videntes que ainda existam. Mas Fallujah já nunca se poderá conjurar. Como tantos outros lugares na Palestina, nas Américas, no Camboja. Em Mauthausen. Em Cabul. Em Burundi. No Kosovo. Em Sarajevo. No colapso das torres de Nova Iorque. Num comboio de Madrid ou Moscovo. Numa escola da Ossétia. Em todo Nagasáqui. Não há possível comparança para estes nomes. Não se trata dum cômputo de cadáveres: nego-me a justificar rios de sangue com oceanos de sangue, ou o contrário. A quem agora esteja a fazer o cômputo das mortes de um e outro lado, que são o mesmo lado, lembro-lhes o procedimento da metralha nas entranhas: entra tão feroz e tão ardente que a dor não se nota. Em poucos segundos o sangue detém-se nas artérias, o coração pára. Alguém pode contar o que é sentir o próprio coração parado? Provavelmente nuns instantes transcorre toda a vida desgraçada de uma pessoa perante a olhada agonizante. Nesse momento a mente pensará no porquê de tudo isso. Verão-se mitologias salvadoras, túneis de luz ou paraísos. Verá-se um outro inferno, tão semelhante ao quotidiano. E depois mais nada: só uma outra cavidade na consciência dos restantes. Multipliquemos a morte, e multipliquemos assim a vesânia. Mas cada cadáver é idêntico: a maior aberração de que a espécie humana pode ser agente. Cada cadáver morre exactamente no último segundo. E depois absolutamente nada.

Porque os cadáveres de um lado e os cadáveres do outro lado apodrecem exactamente no mesmo lado: no lado escuro da História. São os assassinados por Deus, o carrasco intraduzível. O cadáver de Fallujah é produto do deus imperial que o mundo leva dentro. Acabar com deus consiste em recuperar, íntima e definitivamente, o lugar da espécie humana no planeta. Não um destino transcendente, não um alvo pré-escrito: sim uma utopia contingente mas de todo necessária, a revolta quotidiana que só pode ser fruto do mais elementar raciocínio. E Fallujah é um pesadelo. Ainda um outro pesadelo. Ou acordamos, ou os próximos cadáveres cairão cada vez mais perto, nos portais das nossas casas esfregados por umas moedas com semanal lixívia, dentro dos frigoríficos onde coabitam os nomes de alheias beberagens, nas nossas estantes rescendentes a madeira onde repousam as veneradas sentenças dos poetas. E os mortos petarão à nossa porta e colunas de sangue salpicarão o nosso limpo ecrã e não poderemos nem escrever esta raiva. E então, de joelhos, prepararemos água de esgoto para beber e farinha crua para comer, sangue e corpo de profeta armado, em obscena eucaristia.

Polo menos perdeu Kerry

Publicado em Vieiros

Estou meio contente com o resultado das eleições presidenciais dos EUA: Polo menos perdeu Kerry! Confesso que estaria algo mais de meio contente (por exemplo, 51%) se tivesse perdido Bush. Mas, sinceramente, é um prazer contemplar a derrota dos poderosos, embora esta signifique a vitória de outros poderosos.

Roubo a ideia de uma entrevista com um politólogo árabe, cuja referência na Internet já não sou capaz de encontrar. Quando entrevistado sobre a percepção das eleições EUA no mundo árabe, ele disse mais ou menos: “Nós gostaríamos é de que perdessem os dous, Bush e Kerry. Infelizmente, isso não pode ser. Polo menos temos a certeza de que ambos não vão ser presidente”. Ainda bem! Imaginemos por um momento um matrimónio (bom, uma “união civil”) entre o messianismo evangélico dos oleogarcas suleiros de Bush e o catolicismo dominical dos industriais “liberais” costeiros de Kerry, a governarem em sanguento tandem os destinos do mundo. Agora, polo menos perdeu um deles! E o outro, asseguro-vos, a nós não nos vai matar. Vai matar iraquis. Vai matar sírios e sírias. Vai matar iranianos. Vai matar soldados norte-americanos. Assim nós continuaremos a ter gasofa para ir celebrar a outra cidade a ponte da Imaculada Constituição, ou o Dia da Pátria do Apóstolo de Espanha.

Contemplar a derrota dos poderosos, confesso-o cristãmente, é uma sensação reconfortante. Calculemos quantos milhões de dólares caíram em ilusões eleitorais perdidas. Quanta lágrima genuína dos ingénuos que colavam cartazes eleitorais, quanta lágrima de crocodilo dos engana-bobos que ordenavam colar esses cartazes conhecendo perfeitamente o jogo. Dá vontade de dizer-lhes, com vedranha retranca: “Picaches, laraches, que tunda levaches”. Porque a derrota dos poderosos não pode ser nunca a nossa derrota. E, embora a derrota dos outros poderosos nos pudesse fazer um chisquinho mais contentes, sinceramente jogar o jogo não adianta nada. Nada.

A realidade é muito mais cruel, mais crua, como o cru: A realidade é que o grande capital tem agora a oportunidade de ré-iniciar o Experimento do mal chamado “neo”-liberalismo selvagem (não há nada “neo” sob o sol do capital: é, em todo o caso, um regresso às suas origens, que nunca faleceram) no Iraque e talvez Síria, e talvez o Irão. O politólogo As’ad AbuKhalil informa hoje mesmo (3/11/04) no seu blogThe Angry Arab News Service” que representantes do governo dos EUA solicitaram da Fundação Getty de Nova Iorque “indicar com precisão onde se encontram todos os principais jazimentos arqueológicos do Irão”. Será para salvá-los das próximas bombas?

A jornalista Naomi Klein explica lucidamente no seu artigo “Bagdade Ano Zero” (Harper’s Magazine, 24 Setembro 2004) os detalhes deste plano de conquista económica no destruído Iraque: a venda literal e ao cento por cento das velhas indústrias estatais do país a qualquer fonte de capital estrangeiro, e a instauração dum verdadeiro paraíso liberal. Por exemplo, no Iraque actual, até o concreto para a (escassíssima) reconstrução (sobretudo da “zona verde”) chega do estrangeiro, quando sairia dez vezes mais barato produzi-lo no país. As brigadas da “resistência” e da “insurgência” iraquiana estão compostas em grande parte de desempregados, desfarrapados, desapossados depois da gigantesca “redução de plantel” que significou a guerra e invasão do Iraque: centenas de milhares de pessoas sem mais oferta de trabalho que unir-se à polícia ou ao novo exército. E, para um exército, outro exército, que raios. A gente não é toda fanática, nem acha de menos Saddam, nem farrapo de gaitas: querem é ter um trabalho numa economia “estável”, como é sempre o inferno des-reconhecido do Capital.

Por isso veremos ainda mais guerras, mais experimentos. Choraremos genuinamente o sangue que não cessa, e choraremos com lágrimas hipócritas toda a cultura que será destruída. Haverá alti-baixos na conquista ocidental do petróleo. Mas, da minha modesta ignorância, sugiro: não se engane ninguém. Ontem saiu derrotada nos EUA apenas uma versão menos selvagem do capitalismo, como na Espanha (aparentemente) saíu derrotada em Março a mais feroz. (Neo)liberais contra intervencionistas, Esperanzas Aguirres contra Gallardóns, Núñez Feijóos contra Palmous, e Solbes com todos: esse é jogo das vitórias e as derrotas.

Pola nossa parte (das pessoas que, espero, ainda pensamos) não há maior derrota do que acreditarmos que é nessas batalhas que se deve dirimir o mundo, que é a política, que é a utopia razoada de que falou Bourdieu. Estaremos vencidos se nos alegramos das suas vitórias eleitorais, não dos seus fracassos. Eu só exijo, minimamente, que deixem de roubar também a minha força de trabalho para os seus votos: que me dêem de vez o mais-valor roubado, que caralho, que quero um computador mais rápido, uma outra caixa de plástico feita do seu petróleo.

Língua: Em favor do suicídio

Todo o pragmatismo, toda a lenteza, todo o possibilismo, todos os atrancos, todos os pactos, todas as liortas, todas as medalhas, todas as demonizações, todos os roubos, todos os insultos, todas as prebendas, todos os populismos, todas as marginações, toda a mediocridade, todas as repressões, todas as exclusões, todas as louvanças, todas as hagiografias, todos os rituais, todas as mentiras, todos os protestos, todos os segredos, todas as pintadas, todos os congressos, todas as discussões, todas as olhadas, todos os esquecimentos, todos os prémios, todas as campanhas, todos os manifestos durante décadas de concorrência entre iluminados pola administração dos resíduos da língua portuguesa na Galiza são profundíssimamente cansativos. Profundíssimamente reiterativos, circulares, endogâmicos, inférteis, aborrecidos, virais, masculinos, diletantes. Já avonda. Já basta. Já está. Morre o mundo e aqui a semearmos letras em campos reduzidos para que paçam vacas de pasta de papel. Deliberadamente lentos perante o abismo. Lentos e deliberadamente anacionais para que nos deglutam as letras doutra monstruosa Patria, sem acento. Pactando a morte em lugar de abraçá-la, obedecê-la. Fingindo resistirmos, uns e outros, que somos os mesmos. Fingindo as palavras, os argumentos, os escritos, os achados, os manuscritos, os provérbios, as partes do carro, os neologismos que ninguém nunca utilizará. Pactando os acentos, os morfemas, as proibições, as contra-senhas. Adorando os adjectivos, os versos, a tinta, os abraços. Contemplando o abismo, a queda iminente, o equilíbrio.      Pois: Nada há mais real do que o abismo antes do suicídio. E nada mais doloroso do que a morte lenta. Se afinal vai desaparecer todo germolo de uma monstruosa Pátria, não nos neguemos a um final glorioso, como nos filmes de suicídio. Só há dous caminhos para a Unidade. Um mantém-nos, como hoje, como até agora, no purgatório de uma semi-língua. O outro é acatarmos a Língua plenamente, como esta, adoptá-la, e saltarmos de pés juntos polo abismo. E, enquanto caímos, ao melhor formamos essa monstruosa Pátria que tanta náusea dá e que tanto nos faz combater contra nós mesmos. E ao melhor a queda polo abismo dura mais do que pensávamos e até, enquanto morremos, desfrutamos.

O Meu Teclado Português

Sinto-me como meninho com sapatos novos. Ou polo menos assim se dizia antes, quando éramos espanhóis, não apátridas. Este é o primeiro texto que escrevo com o meu novo teclado português. Sim, um teclado de computador desenhado para escrever a minha língua. Não tem Ñ. ESTE TECLADO NÃO TEM Ñ. Não vejo um Ñ diante dos meus olhos. No lugar onde estava o Ñ, agora está o Ç. Neste teclado, o Ñ escreve-se como deve escrever-se: como um til nasal ~ seguido dum N. É assim como surgiu historicamente, e é assim como o meu teclado português o representa. A tecnologia informática sabe filologia. O Ñ espanhol procede em geral do NN latino (ANNU => año). Os listos medievais, que queriam poupar papel como eu largo de banda, punham um <n> pequeno acima de outro <n> (ou de outra letra), e isso deu em ñ. Mas no português não. No português não há Ñ, e, quando há, é português escrito à espanhola, como na Galiza espanhola, que é espaÑola. Porque o nosso som Ñ não procede dum NN latino. E a tecnologia informática sabe isto, como muitos escritores souberam e sabem isto. Sabem que Ñ é simplesmente um til nasal ~ acima dum N normal e corrente, vulgar, ordinário, que existe em muitíssimos idiomas. E a tecnologia informática, na minha língua, elimina-me portanto o supérfluo Ñ, substitui-o polo fantástico Ç que é como produto da aberrante engenharia genética do C, e faz-me trabalhar mais para escrever um Ñ: sempre deve haver esforço para escrever as letras estrangeiras. Eis a diferença: o Ç é uma letra nossa, enquanto o Ñ é um N com uma cousa rara acima.

O meu teclado português foi-me trazido de Portugal por um amigo. Eu pouco vou a Portugal, e quando vou, não vou lembrar comprar um teclado português numa tarde de sol e cafezinho junto ao Douro. Mas este amigo ia de viagem vários dias, e lembrou que uma vez eu comentara que vender teclados portugueses na Galiza deveria ser um NEGÓCIO. E ele pensou em mim (não no negócio) e ofereceu trazer-me um teclado português. O meu amigo trouxo um par de teclados portugueses para outros amigos, como antes entravam na Galiza as cousas proibidas, e como continuam a entrar agora. O meu teclado português entrou cruzando o Minho, pola mesma via do contrabando de tetraciclina nos anos 1950 que salvou a minha mãe de morrer de tifo, do contrabando de livros proibidos que tinha meu pai na sua livraria de velho em Vigo. É a mesma via dos filmes em DVD que aqui não podemos ver em português, nem legendados em português, a via das cousas próprias que o Ñ de EspaÑa nos impide ter e que entram por Internet cruzando o Minho. O meu teclado português é um produto de contrabando: sem alfândegas, com um euro comum, sem guardinhas nem guardiaciviles às portas dos dous quartos desta casa, mas contrabando ideológico igualmente. Mas não é o objecto de plástico o que entra de contrabando: é a língua. As teclas dos meus teclados serão feitas em Taiwan, mas a língua ainda não. O meu teclado português é o veículo da língua que reside nos meus dedos. E por primeira vez na minha vida não tenho que enviar esta língua aos meus poucos leitores a meio dum teclado espanhol ou inglês. Quem na Galiza acredite que pode escrever a língua da Galiza com o Ñ dos teclados espanhóis, continuará a estar errado: um teclado contém toda a Língua, toda la Lengua ou the entire Language, e não existe qualquer língua nem teclado intermédios.

Já sei que alguns me chamarão lusista. Mas a ver se se inteiram de vez que eu não sou lusista não: é a língua da Galiza que é lusista. E eu, simplesmente, obedeço-a. Tento obedecê-la como durante anos obedecim o espanhol e continuo a obedecê-lo quando o falo e o escrevo. Eu obedeço a língua galego-portuguesa que saíu e entra na Galiza quase tanto como obedeço o inglês quando o falo e o escrevo. Porque é a língua da Galiza que é lusista, como a da EspaÑa é espaÑolista, e a inglesa é lógica e legitimamente anglófila. Não se pode fazer cultura própria com os instrumentos dos outros. E o Ñ galego, o dos manuscritos, que existiam, morreu há muitos séculos, exatamente quando coincidiu por dominação com o único Ñ espaÑol, e só houvo no país um enorme Ñ espaÑol que representava outra língua. E quando a nossa fala foi língua sul do Minho, o antigo Ñ galego cindiu-se em NH, meioticamente, como uma célula, quando a nossa fala foi língua. E aí continuou durante séculos. Há um formoso jogo de caracteres para computador, chamado Tipo Castelao, feito por J. H. Peres Rodrigues, onde se pulsares o Ñ sai automaticamente o dígrafo NH. Com estes caracteres não se pode escrever Ñ, e isso é uma sã proibição mental. É são que para escrever o Ñ se precise mentalmente dum esforço, o de escrever um idioma estrangeiro.

Ter um teclado português é um exercício de higiene, recomendo-o. Até o teclado é mais limpo, cândido, fulgente. De pouco a pouco, nas práticas diárias, o nosso corpo, que é simultaneamente biológico, histórico e social, deve habituar-se a esta limpeza de pessoa conversa, recém comungada perante um deus escrito, que dá outro sentido à resistência da língua. O outro dia, num telefonema por uma consulta informática, um trabalhador de Madrid do meu programa de anti-virus, que só tem versões em espanhol e inglês, não compreendia que a que eu instalara fosse a versão inglesa. Por que vou ver as letras de EspaÑa no meu constante ecrã se não posso ver as letras da Língua que obedeço? Prefiro obedecer a língua inglesa que a espanhola. Mas, de pouco a pouco, o que prefiro é obedecer à língua-que-carece-de-Ñ, felizmente eunuca, desprovida, onde um livre til nasal pode sobrevoar qualquer letra: Ã, Õ…. E procuro, então, que as minhas práticas diárias sejam naturais: que os meus dedos, que amiúde transportam até o mundo exterior a consciência da língua que escrevo, pulsem os signos da língua que obedeço. A vida diária é uma arquitetura de peças miúdas e simbólicas, e por isso o meu teclado português dá a ilusão, infantil, lusista como a própria língua, de estar no meu país, de não estar ligado por um cabo elétrico ao unitário coração da Besta. Não obedeço ao Povo não, porque não é esse Povo cheio de EÑES quem mais ordena: é a Língua da Galiza quem mais ordena. E, que se lhe vai fazer, é reintegracionista: é lusista.

Masculino genérico: O homem

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     O homem é um animal racional.

     O homem é um mamífero.

     O homem é um mamífero bípede que menstrua, fica grávido, pare e amamenta os filhos.

     Mas o homem é um animal que submete a metade de si próprio. O homem que não amamenta os filhos submete o homem que amamenta. O homem que não fica grávido impede que o homem grávido deixe livremente de estar grávido. O homem sem hímen valora muito o hímen do homem com hímen.

     Em muitas sociedades o homem só deixa que casem dous homens quando um dos homens é homem e o outro não é homem. Mas o homem não deixa dous homens que são homens casarem, nem dous homens que não são homens.

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