O Paradoxo de Grande-Marlaska

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Os paradoxos lógicos, semânticos ou pragmáticos (linguísticos em geral) têm grande tradição em filosofia da linguagem e até na vida diária. São contradições contidas em expressões do tipo “Isto não é uma oração”, ou “Este enunciado não é verdade”. De meninho brincávamos ao jogo dos pronomes com trocas regueifeiras do tipo: “Eu sou eu, tu és tu, quem é mais parvo dos dous?” “Tu”. “Por isso, TU”, “Não, TU. TU és TU, EU sou EU”. Agora uma actuação do Juiz da Audiência Nacional de Espanha Fernando Grande-Marlaska dá pé a um novo paradoxo pragmático-jurídico, o Paradoxo da Ameaça, ou Paradoxo de Grande-Marlaska. Consiste em que, entre as imputações acrescentadas a líderes de Batasuna por “ameaça terrorista”, incluem-se as declarações de Joseba Permach de que um encarceramento dos líderes independentistas poderia acarretar um “bloqueio” ao chamado “processo de paz” em Euskadi.

No Paradoxo de Grande-Marlaska entra em jogo uma interpretação peculiar do que constitui uma ameaça. Se eu digo: “Vou-te matar”, isso é uma ameaça. Se eu digo “Se te topo pola rua, mato-te”, isso também é uma ameaça, porque tu não podes (nem tens qualquer obriga moral) evitar ser encontrado casualmente. Também é uma ameaça “Se continuas a vestir de laranja, mato-te”. Porém, se eu digo: “Se continuas a bater em mim para matar-me, mato-te eu”, isso não é uma ameaça: é uma advertência, que inclui uma condição. O meu interlocutor é responsável de cumprir ou não a condição, e eu, de cumprir ou não o acto negativo futuro. Também é uma advertência: “Se continuas a bater em mim para matar-me, os meus amigos vão matar-te, queira eu ou não”. Por fim, se eu digo: “Se continuas a caminhar polo abismo, vás matar-te”, isso é um aviso: eu não sou responsável de nada. No triplete ameaça-advertência-aviso, a questão crucial, portanto, é a da capacidade e a responsabilidade de cumprir os actos presentes e futuros: os meus e os teus. A violência de género, por exemplo, é um ciclo crescente de ameaças disfarçadas de pretensas advertências: “Matei-na, sim; já lhe advertira que não saísse com outro”.

No terreno político do Estado, a manipulação do sentido da “ameaça” não é nova. O Estado Espanhol e os meios de comunicação têm feito interpretações singulares de certos actos de fala políticos como ameaças. Em 1996, EL PAÍS intitulava uma notícia sobre um grande rebúmbio do momento desta ilógica maneira: “Anguita amenaza con pedir la república, el federalismo y la autodeterminación” (EL PAÍS, 15 Setembro 1996, p. 17). O contexto eram as declarações de Julio Anguita, então Secretário Geral do PCE e de Izquierda Unida, no sentido de que o seu grupo reclamaria a República para Espanha se a Constitución monárquica continuava a incumprir-se em termos de direitos básicos como a vivenda e o trabalho. Argumentava Anguita que a aceitação da monarquia fora uma concessão subordinada ao desenvolvimento (ainda hoje inexistente) destas políticas sociais de rango constitucional. Nesse contexto, a expressão “ameaçar com pedir” de EL PAÍS não é só manipuladora e absurda, mas risível. Isso significa que o Estado é tão débil e o ameaçante peticionário tão forte que, por exemplo, com só reclamar que Juan Carlos de Borbón marchasse a viver a um piso da Castellana como cidadão comum isto já se daria conseguido. Oxalá ameaçar consistisse nisso: Pola presente eu ameaço agora, como George Brassens nos dourados 1960: “Je déclare l’état de bonheur permanent”.

No Paradoxo de Grande-Marlaska, a peculiar visão do acto da “ameaça” reflecte-se na interpretação das palavras de Joseba Permach: Se os líderes independentistas são encarcerados, o chamado “processo de paz” em Euskadi poderia bloquear-se. Permach teria advertido contra as “interferências” do poder judicial a este processo. É curioso que estas palavras (que expressam uma possibilidade real, de sentido comum) contenham uma ameaça imputável judicialmente, e outras opiniões políticas não. Declarações semelhantes, que podem ser vistas no terreno da argumentação como tentativas de coacção política à “independência do poder judicial”, foram feitas por Conde-Pumpido, acho, quando instou os juízes a interpretarem a lei à luz do novo contexto político do Estado. Também são feitas a diário polo PP quando urge que o poder judicial não leve em conta o novo contexto político, o qual (dizem os que sabem) iria contra o próprio espírito da função judicial.

Mas o passado continua. Seguindo o Paradoxo da Ameaça de Grande-Marlaska, talvez o então vice-presidente Mariano Rajoy ameaçasse com bloquear o processo eleitoral na noite do 13 de Março de 2004, quando declarou por televisão sobre as manifestações contra as sedes do PP: “El Partido Popular ha denunciado estos hechos ante la Junta Electoral Central, que es la autoridad competente en garantizar la pureza del proceso electoral. Estamos esperando a que se tomen las medidas pertinentes que aseguren que el proceso electoral se pueda celebrar en el día de mañana en libertad y sin coacciones” . O conjuntivo é um modo verbal muito interessante. Eu interpretei a advertência como um anúncio eleitoral da rebeldia activa contra o governo espanhol (o facto é que, até então, meia Espanha nem estava informada das concentrações; depois da intervenção de Rajoy, muita mais gente saiu à rua); interpretei que esses factos poderiam chegar a ser uma escusa por parte do PP para deter temporariamente umas eleições perdidas. Precisamente por isso, refusei sair à rua a pedir explicações a um governo por outra parte alheio. Dias depois, Almodóvar declarou que essa noite o PP estivera a ponto de dar “um golpe de estado”; mais adiante retractou-se da sua intuição incomprovada. Do processo aberto polo PP contra Almodóvar pola sua pretensa acusação, nada se sabe.

Numa aplicação psicótica do Paradoxo de Grande-Marlaska, também 10 milhões de pessoas em Espanha teriam ameaçado o governo de Aznar quando clamavam que, se as tropas espanholas continuassem no Iraque, o terrorismo islamista poderia agir em Espanha, como fez. Por último, polo Paradoxo de Grande-Marlaska, pergunto-me se será ou não uma “ameaça para bloquear o processo de paz” a manifestação convocada no 10 de Junho pola Asociación de Víctimas del Terrorismo contra o diálogo de paz entre o Estado e a ETA. Será ameaça a Espanha a “realidade nacional” andaluza, mas não ameaça à Galiza a “Nación indivisible” espanhola? Em definitivo, desde as suas origens, a España monolítica apresenta-se a si própria como uma sociedade constantemente ameaçada, desde fora e, sobretudo, desde dentro: maçons, judeus, “moros”, “rojos”, operários, grevistas, “separatistas”, bascos, “terroristas”, comunistas, feministas, anarquistas, homossexuais, “afrancesados”, “lusistas”, ciganos, ateus, “islamistas”… You name it!, como se diz em espanhol. Será, pergunto eu, que essa perene sensação de ameaça às essências pátrias surge da falta de legitimidade histórica do Conjunto Booleano España?

Mas, enfim, por que algumas admonições sobre actos negativos futuros são ameaças e outras não? A natureza chave da ameaça reside na capacidade do ameaçador de fazer ou não o acto futuro. Portanto, é capaz Batasuna de cumprir a “ameaça” de “bloquear o processo de paz”? Para Grande-Marlaska, calculo, Permach ameaça porque ele ou o seu “contorno” são capazes de “bloquear o processo de paz” com actos de violência. Suponho que só isto tem em mente Grande-Marlaska, porque se “bloquear o processo de paz” significa não negociar politicamente, isso já o está a fazer o Estado Espanhol: a disposição visível por parte do executivo espanhol é negociar com ETA antes que com Batasuna; pode-se negociar com ETA, que é ilegal, mas não com Batasuna, que é ilegal. Se Grande-Marlaska já decidiu que Batasuna é ETA, o que não compreendo é que não encarcere os seus líderes de vez, porque qualquer opinião de Batasuna-ETA contra o Estado vai ser sempre um delito de ameaça terrorista: como o “delito de opinião” não existe em Espanha, haverá que chamá-lo “injúrias ao Rei” ou “ameaça terrorista”. Polo contrário, se Batasuna não é ETA, vaiam ou não à cadeia os líderes independentistas, não por isto haverá “bloqueio ao processo de paz”. A minha impressão é que, se ETA já decidiu deixar de matar, e o Estado já decidiu que ETA deixasse de matar, continuarão a negociar-se as condições da rendição militar, o último capítulo desta longa Guerra Civil Espanhola de 70 anos (os espanhóis amam as efemérides). Como a questão basca sempre foi tratada militarmente polo Estado, haverá mesa de partidos bascos também, mas não haverá nem reconhecimento do direito de autodeterminação, nem da “integridade territorial” de Euskal Herria, esses dous monstros que o espanholismo aduz sempre como as bases inamovíveis da estratégia do terror. Porque, afinal, trata-se de que as palavras dos manifestos e acordos do “processo” forneçam as escusas suficientes para ilusões a duas bandas. E já há passos nesse sentido: o comunicado da ETA do Março passado (Gara, 22 Março 2006, p. 3) repete a ambígua expressão “cidadãos [e cidadãs] bascos” como o agente principal do “processo”. Idos são, portanto, os tempos do nacionalismo étnico: todos sabemos que o cidadão é o sujeito político de um Estado. Mas, como o Estado basco não existe, quem serão para ETA esses “cidadãos bascos”? São “cidadãos bascos” os cidadãos de um inexistente estado basco? Ou os cidadãos dos estados espanhol e francês que são bascos? Eu intuo que o segundo, o qual implica um inconfessável reconhecimento por ETA do estatuto de cidadania dos bascos nos dous estados. Enfim, ETA saberá o que pensa dos seus “cidadãos bascos”, se é que pensa. Afinal, se tudo isto acaba em derrota da ETA sem direito de autodeterminação, terá-se demonstrado mais uma vez que ETA sempre foi uma cousa (um exército) e o independentismo basco outra.

Mas, voltando à responsabilidade nas ameaças, o Paradoxo de Grande-Marlaska consiste num estiramento vertical dos hilillos como de plastilina do sentido, pola zona onde “ameaça”, “advertência” e “aviso” mais se confundem. O Paradoxo de Grande-Marlaska, de inspiração preventiva, quer significar: “Para previr a violência, eu encarcero-te pola ameaça de dizeres que se te encarcerasse poderia haver violência”. O Paradoxo é paradoxal porque contém a impossibilidade da sua auto-comprovação, a impossibilidade de provar as relações entre a condição de advertência (“se somos encarcerados”) e os hipotéticos actos futuros de violência. Vejamos as possibilidades, supondo que o motivo alegado para o encarceramento de Permach fossem exclusivamente as suas palavras.

Primeiro, (1) suponhamos que Permach não fosse encarcerado polas suas palavras. Se depois (a) houver violência de ETA, esta não seria logicamente imputável às palavras de Permach, que condicionam o “bloqueio do processo” ao encarceramento. Contudo, temo que o PP argumentaria que apesar da cedência do Estado, a “ameaça” cumprira-se. E (b), se não houver violência da ETA, nunca se poderia demonstrar que as palavras de Permach foram uma ameaça incumprida. Contudo, temo que o PP argumentaria que o Estado cedera perante a “ameaça”. Conhecemos essa ladainha circular desse espanholismo.

Agora, (2) suponhamos que Permach sim que é encarcerado. Se nalguma altura depois (a) houver violência da ETA, alguns veriam uma relação causa-efeito. De qualquer modo, o Paradoxo de Grande-Marlaska seria a self-fullfilled prophecy, uma profecia auto-cumprida. Mas ficaria a dúvida razoável se a melhor maneira de previr o cumprimento duma “ameaça” é levar a cabo as condições para o seu cumprimento, sob uma interpretação particular das opiniões políticas como ameaças. Polo contrário, (b) se não houver violência da ETA, teria que admitir-se que não houvera antes qualquer ameaça nas palavras de Permach. E ele deveria ser excarcerado como imputado de uma ameaça inexistente. Mas, quando? Quando rompe internamente por ilógico o Paradoxo de Grande-Marlaska? Quando exactamente deixa uma ameaça incumprida de ser portanto uma ameaça?

Em resumo, na minha opinião, em nenhuma destas quatro soluções possíveis do Paradoxo de Grande-Marlaska, fundamentada no sofisma de que Batasuna é ETA, a identidade entre elas ficaria demonstrada fora de toda dúvida razoável. E a relação entre pretensa causa (“ameaça”) e efeito (“bloqueio do processo de paz”) ficaria também sem demonstrar. O problema é que, em política e nas ciências sociais, o tipo de relações a várias bandas entre palavras e actos é-che uma cousa muito rabuda de estabelecer. Uma cousa são as opiniões (como este texto), e outra os factos. A historiografia está cheia de “análises” que concebem estas relações como se falar e agir fosse comparável ao acto físico de atirar uma bola contra o chão e que ela rebote. Temos palavras e temos actos, coocorrentes ou em sequência; às vezes ambos procuram coaccionar aspectos da vida social; às vezes há ligações causais, às vezes não. E temos sangue ou não temos sangue, trágico sangue, bombas, disparos, cárceres e metralha, e muitas outras formas de violência. Sobretudo isso é o que temos ou não temos. A mim nunca uma palavra, nem as de um Rei, me feriu a pele.

Reflectir cuidadosamente sobre estas questões não só é um exercício de saúde: deveria ser um requerimento para juízes e políticos. Os meus alunos e alunas e mais eu debatemo-las nas aulas, sem acreditarmos na Verdade, e aprendemos como os humanos procuramos encarcerar-nos com a linguagem e sob a escusa da linguagem.

Da Nación à nació, e tiro porque me toca

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O discurso referido consiste em reproduzir literal ou indirectamente palavras emitidas ou escritas por outra pessoa ou pessoas. Nalguns dos seus tipos, a citação é introduzida com um dos verbos de dição, ou verba dicendi, do tipo dizer, comentar, perguntar, etc. A fórmula pactada entre o PSOE e CiU para o preâmbulo do novo estatuto catalão é um destes casos de discurso referido:

“El Parlamento de Cataluña, recogiendo el sentimiento y la voluntad de los ciudadanos, ha definido de manera ampliamente mayoritaria a Cataluña como nación. Esta realidad nacional tiene su traducción en el artículo 2 de la Constitución Española, que define a Cataluña como nacionalidad”.

A formulação contrasta com a aprovada polo parlamento catalão na proposta de Estatut, que incluía as expressões “La nació catalana…” e “Catalunya es una nació”. Vale a pena comentar brevemente as implicações e significados da nova fórmula pactada. Por que esta citação dos actos linguísticos do parlamento catalão?

O novo estatuto catalão deve ser aprovado agora polas Cortes espanholas, quer dizer, por “España”, não polo próprio sujeito catalão que redigira a primeira proposta. O acordo PSOE-CiU significa que “España”, como conjunto da cidadania do Estado, não se compromete com a auto-definição de Catalunha (conjunto da cidadania catalã) como nação. “España” só pode definir-se a si própria, como “Nación”, com maiúsculas (preâmbulo e artigo 2 da Constitución), e, como entidade indivisível, pode também definir os territórios que a compõem, como “nacionalidades y regiones” (dum ponto de vista social e histórico) ou “comunidades autónomas” (dum ponto de vista administrativo e jurídico). “España” sim que pode, porém, fazer constar (declarar) como se define uma parte da sua cidadania. Eis o sentido discursivo do acordo entre as partes.

Com efeito, a atribuição da definição de Catalunha como nação ao seu parlamento, não às cortes do reino, situa-se no polo “descrição” da dicotomia “descrição / definição”, como argumentou o governo espanhol. Por outras palavras: o preâmbulo descreve uma definição nacional. Reparemos que descreve também esta auto-definição de Catalunha como “real”, na expressão “Esta realidad nacional”.

Mas, o que acontece, por sua parte, com a caracterização nacional de “España” na Constitución Española? Talvez surpreenda saber que o vocábulo “Nación” só aparece duas vezes, e que o adjectivo “nacional” aparece apenas 5 vezes em 169 artigos: nas expressões “soberanía nacional” (art. 1.2, soberania que recai no “Pueblo Español”), “territorio nacional” (art. 19), “Patrimonio Nacional” (art. 132.3), “interés nacional” (art. 144) e “política económica nacional” (art. 148.13). Por sua parte, o adjectivo “estatal” aparece 13 vezes. Evidentemente, todos os usos de “nacionalidad” se referem ao estatuto jurídico dos cidadãos espanhóis, e “internacional” às relações entre o Estado Espanhol e outros estados. Por outras palavras: na Constitución Española, “nacional” parece ser sinónimo de “estatal”. A força jurídica de ser “Nación” deriva das competências auto-atribuídas ao Estado, não da palavra em si, nem na auto-definição.

Quanto ao jogo discursivo “descrição / definição” da “Nación Española”, também o preâmbulo da Constitución é descritivo, e também é um exemplo de discurso referido. O Título Preliminar começa, imediatamente antes do preâmbulo:

“DON JUAN CARLOS I, REY DE ESPAÑA,
A todos los que la presente vieren y entendieren, sabed:
Que las Cortes han aprobado y el Pueblo Español ratificado la siguiente Constitución.”

Quer dizer, o chefe do estado constata e faz saber que o parlamento e senado espanhóis aprovaram que “La Nación Española, deseando establecer la justicia, la libertad y la seguridad…”. Como no caso do Estatut, é o parlamento correspondente que define o país como uma nação, e o “povo” que o ratifica. A Constitución descreve estes factos.

Pragmaticamente (e argumentativamente) o procedimento para definir “España” como uma nação na Constitución é o que se chama uma pressuposição existencial: não se afirma que “España es una nación”, mas pressupõe-se (dá-se por certo) este facto “real” a meio do artigo definido “La”, que abre o que se chama uma expressão referencial definida. Quer dizer, “La Nación Española” faz-se existir no mundo real polo simples facto de mencioná-la como uma entidade singular identificável e distinta de outras. Da mesma maneira, na proposta inicial de Estatut, “Catalunya” faz-se existir como nação polo sua menção na expressão “La nació catalana…”. Este procedimento eliminado, de facto, era mais forte argumentativamente do que a definição ‘X é Z’ (‘Catalunya es una nació’), pois uma aseveração pode ser questionada explicitamente como verdadeira ou falsa. Finalmente, uma diferença entre Constitución e Estatut é que, no acordo PSOE-CiU, há uma exenção de responsabilidade, por parte de “España”, da definição da “realidad nacional” de Catalunha, tenha esta auto-definição a força veritativa que tiver (seja “verdadeira” ou “falsa”) e a força jurídica que eventualmente poderá ter.

Em conclusão, se o acordo PSOE-CiU prosperar, a diferença entre Estatut e Constitución não residirá na questão da descrição/definição nos respectivos preâmbulos, como às vezes se argumenta. Sim que o vocábulo “nació” desaparece do articulado, o qual parece coerente com a identificação “nación=estado” que se dá na Constitución, visto que, segundo a fórmula pactada, a única identificação possível do vocábulo catalão “nació” é o vocábulo espanhol “nacionalidad”. Contra o que declarou Zapatero, não parece, portanto, que esta “España” possa chegar a ser juridicamente uma “nación de naciones”, em espanhol, mas só uma “Nación de nacions/nacións/nazioak/etc.”, em todas as “lenguas españolas”: um Estado Nacional composto de “nacionalidades”. Cada cidadão poderá dizê-lo livremente na sua língua, mas a semântica política dominante é a da língua espanhola.

Em termos discursivos, o acordo PSOE-CiU sobre esta questão é uma solução inteligente. E em termos políticos, parlamentares e de propaganda pública (permito-me opinar), ainda mais: representa uma derrota do nominalismo efectista (aquele que só aspira a um “reconhecimento” abstracto da “realidade nacional” na língua doutrem), um reforçamento da forma unitária do estado monárquico (que impede a autodeterminação), e uma tentativa de caneio total a ERC. Nunca se deve infraestimar a inteligência de parte do nacionalismo espanhol. Talvez no novo Estatuto galego se pudesse obter a mesma fórmula fantasmal (e os três partidos parlamentares tão contentes, que o jogo continua), se não for porque não está comprovado que o PP seja inteligente. Como outras vezes, talvez a compensação da previsível derrota do PP no parlamento de “España” seja a sua vitória na Galiza, impedindo o acordo. Se for assim, neste jogo da oca, “Galicia” não chegará a ser ambiguamente “nación” (que, além, não se sabe se está em galego ou em espanhol), embora todos saibamos que em Panlíngua Trescientos Millones “a nación galega” só deveria ser sinónimo de “una nacionalidad administrativa de la España indivisible”. Mas é que, por não acatar, o PP nem acata a peculiar língua espanhola.

Bilinguismo Matrix

Em Matrix (a original, a boa) nunca se sabia o que era verdadeira ficção ou falsa realidade. Agora a Xunta e a MNL, a replicarem uma lúdica campanha dos reintegratas picheleiros NEO-falantes, convidam a galeguizar a vida: “Atrévete a / descubrir / a túa / verdadeira / identidade”.

O problema do lema, com tipografia de Matrix, é que é Matrix:

ATRÉVETE A
DESCUBRIR
a TUa

VERDADEiRA
IDENTIDAD
e

Misteriosa aparição de letras, propaganda subliminal, rostos de Bélmez. Psicofonia Matrix. Na Galiza galeguizar-se na escrita (o mundo real) reside em quatro letras e um acento. E portuguesizar-se, esse excesso, consistiria em cinco letras, um hífen e dous acentos. Nunca tão poucos traços significaram tanto e tão pouco. Significam a verdadeira identidade falsa de Galicia, não a falsa identidade verdadeira da Galiza, essa forma exacta de dizer Galicia mas escrever Galiza. A MESA POrLA NORMALIZACIÓN LINGÜÍSTICA sabe que dentro de uma pessoa espanhol-falante habita uma pessoa galega onde habita uma espanhola onde habita uma galega que é uma infinita boneca russa, de letras de quita y pon. Tal é o portento do Bilinguismo Matrix, fruto não de nós, os corpos conectados à mákina, mas da História, que somos nós, a mákina.

Não culpo a MNL. A última hora, a sua é só uma pequena campanha propagandística dentro da outra. Galicia leva dentro Matrix como uma España. Mental, quer dizer, real, como a inexistência. Como La Muerte Misma.

Quem isto escreve está a ser escrito polas letras. Não me atrevo a descobrir a minha falsa identidade. Acredito ser um à e ao pior sou um Ñ. Ou ñao- digooo não, que desliz de til.

Matar mulheres pobres com palavras

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Vi várias vezes o vídeo do assassínio de María Rosario Endrinal Petit a mãos de Ricard Pinilla, Oriol Plana e Juan José M. em 16 Dezembro 2005 em Barcelona, para procurar compreender melhor os signos da barbárie. No acto, paradigmático de uma vesânia diária assumida polos mentecaptos como “incidentes isolados”, concentram-se três contrastes básicos de sentidos que articulam a dominação na sociedade do Capital (polo menos nesta; talvez noutras também, dirão os ultraliberais; mas eu não vivo noutras, e outras barbáries não exculpam esta). Um cabeçalho assim resumiria os eventos: Três homens jovens de classe meia-alta assassinam uma mulher maior pobre. Três contra uma, homens contra mulher, juventude contra madurez, mais ricos contra mais pobre. Maiorias, guerra de género, guerra de classe, guerra de corpos. Números, testosterona, força, armas: tudo encaixa. Só falta o elemento étnico, presente noutros ataques nas ruas das metrópoles do Reino.

Dous jovens entram num caixeiro automático de La Caixa, baluarte do capital nacional catalão, onde a mulher se dispunha a dormir. Insultam-na, agridem-na, um terceiro mercenário incorpora-se ao ataque, e finalmente os três matam-na prendendo-lhe lume com dissolvente. A câmara de “segurança” vigia que ninguém roube euros: está desenhada para proteger a propriedade. A vítima, sem dúvida, cometera muitos delitos: Era mulher, era desapossada, não ia limpa, e okupara com o seu corpo o recinto sagrado do caixeiro automático. Durante um tempo, ela conseguiu refugiar-se dos atacantes fechando-se por dentro. Mas enganaram-na, fingindo que um terceiro jovem queria entrar para levantar dinheiro. Cash, recendente cash. Ela acedeu ao inviolável direito (era, também, ex-trabalhadora de La Caixa) e abriu. Isso foi a sua tumba. As imagens revelam o rosto mirrado da assassinada, os rostos límpidos e penteados de dous dos homens. O terceiro rosto, de 16 anos, é mantido oculto informaticamente. Será por “respeito à imagem do menor”, é lógico: O pretenso assassino tem pretenso rosto. Os verdadeiros terroristas, de rosto em cartaz, são sempre estrangeiros, bascos e “moros” infiltrados no corpo nacional. E, além, aos 16 anos não se mata: brinca-se. Mostrar o rosto do assassino seria vulnerar os seus direitos. O cadáver, porém, já não os tem.

Os cépticos dirão que, mais uma vez, leio demais nos actos sociais. O assassínio poderia ter acontecido noutro lugar. O morto poderia ter sido um homem. Os assassinos poderiam ter sido também esfarrapados. A vítima poderia ter sido rica. Isto também acontece. Certo. E esses actos também significam. Mas há neste crime uma sobredose de sentidos sociais que o singulariza. Ele materializa com cheiro a carne queimada as palavras que amiúde escutamos e lemos, em distendidas conversas de café no trabalho, em jocosos comentários jornalísticos que se permitem dar a volta aos discursos progressistas como se estes já estivessem superados pola história, ou em nojentas mensagens nos foros de grilos da Internet, incluído este portal. Embora as palavras não causem o mundo, há quem diga, de ópticas diversas (Teun Van Dijk, , Ruth Wodak, Noam Chomsky, George Lakoff, Naomi Klein), que elas abrem as portas aos actos mais brutais. Ou que, polo menos, a relação entre actos, ideias e palavras é densa, e merece ser examinada. Localizemos onde localizarmos a fonte do assassínio (na cognição, nos discursos, nas relações materiais, em todos estes lugares), o facto é que a misoginia violenta, o classismo e o racismo proliferam cá e lá disfarçados de crítica pós-crítica, como se hoje em dia ser inteligente consistisse em, torpemente, esforçar-se por ir além dos discursos da igualdade. E os ultradireitistas do sociodarwinismo liberal esgrimem estúpidas etiquetas acusatórias, como a de “buenismo”, com que pretendem conjurar o seu monstruoso modelo económico e social, recriminando às vozes críticas de que estão a lamentar-se inutilmente. De que não vale a pena gritar. De que colocar-se eticamente apenas de um lado da geometria da dominação social é outra forma de paternalismo, porque (supõem os liberais) a glória da sofisticação na análise é mais importante. Já sabemos: para eles, é a pretensa sofisticação, não a crítica ética, que confere esse triste brilho fálico que procuram. Porque, afinal, sempre haverá mulheres pobres, e sempre haverá quem as mate. Afinal, algo teria feito a vítima. Afinal, os homens também são vítimas. Afinal, as mortas também são culpáveis.

Esse falso cepticismo, esse cinismo, é nazismo em estado puro. Ele proclama a supremacia dos corpos (masculino contra feminino, rico contra pobre, “branco” contra “preto”, “guapo” contra “feio”, “macho” contra “afeminado”), distorce o sentido da diferença, e glorifica a desigualdade económica e social a apresentá-la como uma insuperável evidência histórica. Também os três assassinos de Barcelona faziam piadas xenófobas, classistas, misóginas e homófobas nas suas conversas quotidianas. Faziam-nas como se aqui não se passasse nada, como se houvesse que rir sempre as graças dos nazis de qualquer origem, as que lemos amiúde cá e lá. Daí a assassinatos como o de Rosario Endrinal só há um par de passos. Hitler começou com palavras deglutíveis para a sua sociedade. Ser nazi não é só levar uma esvástica tatuada no peito: é também não ter mais nação nem mais língua do que um ódio de macho amargurado contra o poder da diferença, um projecto de extermínio. Nazis fora da História, já.

Hospital do Reino

Cheira a hospital. Nos arrabaldes da Espanha cheira a hospital sujo, barato, de corredores onde sobrevivem durante décadas os mesmos eivados. A luz dos hospitais de urgências é sempre cansa, mais amarela, incapaz de chegar até ao final do percorrido. As ruas da Espanha são os corredores deste hospital barato: vencidos prédios provisórios onde ardem de frio os refugiados. No último dia do ano cheira a esse formol usado dos hospitais de campanha, que são sempre os desta guerra. E os cirurgiãos percorrem rápido os corredores a amputarem velhas mãos que já não trabalham, a alimentarem com elas os distantes cemitérios, sempre distantes da terra onde nascera o corpo. Os uniformes dos cirurgiãos e os dos soldados, e os dos capatazes, e os dos catedráticos, e os dos financeiros, e os dos generais, são todos iguais sob a luz negra da pobreza. E os uniformes correm entre as salas de urgência deste hospital que é um reino em sombras. A luz da Espanha é um mito. Os eivados e idosos aguardam nas beirarruas da metrópole, e os soldados baixam das ambulâncias e amputam as mãos e a língua, como então, como sempre, como sempre que existe um antigo hospital de campanha que é um estado em ruínas. E os cirurgiãos botam os restos amputados no calabouço ou no fundo das usinas, dia e noite, noite sem dia nos camarotes de urgência. E os velhos pervagam polas ruas do hospital com a esmola de poucas moedas enrugadas, em irregulares batas sem lavar, e as mães solitárias prematuramente mirradas rebuscam no lixo urbano restos de órgãos para comerem na última noite do ano, como se acabasse o mundo entre as bombas que continuam a cair. Cheira a hospital em guerra, e é difícil afastar esta tenra náusea constante da consciência. De olhos estranhamente abertos polo sono, nos corredores deste hospital que é a Espanha procuramos com ânsia sempre os corpos familiares, os eivados nossos, a quem levarmos da mão fria respirando a sua pele que cheira a leite azedo até a uma tumba designada para deixarmos lugar a mais doentes, a mais velhos eivados, com uma miserável moeda do reino na algibeira da lenta bata sem lavar. E cada ano recomeça o ciclo, cada ano refornecem-se cárceres e obscuras usinas e hospitais do reino, tanta carne, tanta devoração oculta por proclamas. Cheira infinitamente a Espanha, a matadouro.

A rapidez do Discurso

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Em 48 horas, a Guardia Civil espanhola deteve dez membros da Assembleia da Mocidade Independentista vulnerando locais sociais de base, os detidos e detidas foram acusados de figuras estranhas, os jornais publicaram nomes e fotografias, as rádios arejaram análises e entrevistas, os políticos fizeram declarações das quais não se arrependerão, a web da AMI foi sequestrada pola Guardia Civil, outras foram obstaculizadas (como fechar o microfone a um orador; como faz a Radio Martí dos EUA interferindo as emissoras cubanas), a Internet e os correios electrónicos encheram-se de notícias, comunicados e protestos, houve concentrações, cartazes, panfletos, os dez detidos foram libertados provisoriamente, as rádios anunciaram-no sucintamente, e hoje é Quarta-Feira e continuam as nuvens. A rapidez do Discurso, que é também acção, ultrapassa a medida humana do tempo necessário para reflectir sobre os significados. Campanha político-policial-mediática, cortina de fumo diante do processo 18/98 do juiz Garzón, criminalização do nacionalismo, interferência nos processos de reforma estatutária, criação de fissuras no crescente soberanismo galego, em definitivo alti-baixos emocionais nesta versão distorcida da Política a que o Reino e ocidente nos têm habituados. Táctica deliberada, improvisação ou erro, já ninguém o sabe. Há tempo que o determinismo histórico morreu. Mas os factos e os efeitos estão aí, e não deveriam minimizar-se nem, muito menos, ridiculizar-se. Seria tentação qualificar a “Operación Castiñeira”, com Ñ espanhol, de absurdo fiasco. Se assim fizermos, estaríamos absorvendo (mais uma vez) o discurso hegemónico sobre a necessária Seriedade das forças da ordem: Olha aí, a polícia espanhola nem deter sabe, e são os salvadores juízes os que por fim situam as cousas no seu ponto, pois não há tais indícios de “terrorismo”, que alívio. Até Nós-UP se congratula da libertação dos detidos, como se esta libertação indicasse liberdade. Calculo que ré-encontrar companheiros é sempre gratificante, mas Madrid não é o único exílio. Esta ré-legitimação do sistema judicial espanhol pode ser calculada, pode não sê-lo. Em todo o caso, a arbitrariedade no disciplinamento foi sempre uma das características políticas do fascismo. Literalmente, do fascismo. Com Franco nunca se sabia quem podia ser detido ou não, nem por quê. Guantánamo não é apenas um reino remoto, mas uma ordem mental. O meu telemóvel pode estar em lista negra ou intervido, e eu sei por que facto trivial. O teu também. Não me preocupo grandemente, mas não estou habituado a dar as chaves das minhas gavetas a um estranho de uniforme. A imunidade do corpo, que é a nossa mente, onde reside a gloriosa Liberdade de Expressão, é já assunto do passado. E nós, a vê-las vir, porque os números eleitorais já nos cegam a necessária lucidez visionária. Sim, visionária (espero pacientemente os insultos), porque, chegados a este nível de cegueira, sermos visionários consiste simplesmente em vermos exactamente o que existe: uns empregados do Estado com passa-montanhas irrompem na sagrada propriedade privada a roubarem papéis, computadores e dinheiro. Levam dez pessoas para Madrid sem o seu consentimento. Acusam-nas de fazer cousas, em linguagens que os detidos talvez nem compreendam: a noção de “delito” remete para uma ordem total compartilhada, e assumir a noção pressupõe inscrever-se voluntariamente nessa ordem. Não se pode exigir que a mente do Reino entre na mente da AMI, é excessivo. Até os ultraliberais sabem intimamente isto, embora amiúde ajam como polícias. O que se pode exigir, sim, é que a arma do polícia não me mate, porque eu não pedi ingresso nesta guerra, neste tipo de guerra. Nem que a bomba de gasolina estoure no teu nariz, porque tu não pediste entrar neste tipo de guerra. Claro que somos também culpados, mas este tipo de guerra não se merece. Mas, que fazer, se o terror é semeado ocultamente, polos bispos, contra uma infância forçosa em cárceres educativos teocráticos. Que fazer se o terror adquire mais tarde a máscara de uma bomba de fósforo branco que monstruosamente abrasou corpos, de outra bomba que felizmente não cortou a carne, ou de um sequestro legal na manhã cinzenta de Compostela. Tudo é o mesmo terror, senhores polícias: não foram as vítimas quem inventaram as bombas. O Modelo foi criado por vós, e ainda vos funciona. Parabéns, tristes parabéns: bem sabedes que isto não é só um telefilme. Por isso, desde a distância do Discurso, eu creio compreender o que é um ataque físico de terror, deixar de respirar, e intuo que Maria A. nunca o perdoará. Porque ainda resta futuro, e exércitos de vários lados quererão forjar mais cicatrizes para medalhas. E a gente continuará a sofrer um excesso de abnegados funcionários da bala, heróis, salvapátrias. Saber isto não ajuda a compreender-nos politicamente, mas é quase o único que podemos constatar. Em toda lógica, daí à soberania da mente deveria restar pouco. Mas, alguém confia nesta frase?

Monarquia e racismo

Publicado em Novas da Galiza 36 (15 Nov. – 15 Dez. 2005), p. 15

Como pode uma pessoa chamar-se socialista ou simplesmente progressista e defender ou simplesmente aceitar a monarquia? Como pode alguém justificar com critérios democráticos que a máxima representação e poder de um Estado descansem sobre alguém que os obtém ou herda em virtude dos genes, da família, da classe social e do sexo? Digam os democratas, progressistas, socialistas e até comunistas todos que ainda há medo, sim, medo de falar, medo do exército (por exemplo), e compreenderei a sua posição. Mas não se justifiquem alegando que “o povo” apoia a aberração monárquica, porque, segundo isto, o “apoio do povo” também estaria por detrás do regime de Franco, do nazismo, de tantas aberrações como a clitorictomia, a amputação das mãos, a pena de morte, o escravismo, a invasão de Afeganistão, o massacre das Torres Gémeas, a lapidação das adúlteras e o encarceramento de homossexuais. E o próprio capitalismo.

A realidade é que a monarquia espanhola actual se sustenta em princípios literalmente racistas que não deveriam ter lugar em nenhuma sociedade chamada democrática. Quando a ciência genética quer destacar a essencial igualdade dos seres humanos, quando categorias como “raça” vão caindo nas fundas gavetas da história, numerosos territórios do mundo, entre eles a frágil amálgama chamada “Reino de España”, ainda conservam formas de estado intrinsecamente racistas, quer dizer, fundamentadas na diferença genética. Porque o racismo não consiste só na discriminação por razão das características morfológicas das pessoas: o racismo consiste na classificação social da gente por critérios genéticos. Como o sexismo, o racismo não é uma ideologia só discriminatória, mas é em primeiro lugar classificatória. Porém, a declinante categoria de “raça” é apenas o trivial resultado da concentração relativa de um conjunto de traços fisionómicos activados por vulgares genes que se transmitem na copulação. Porquê este ordinário acaso pôde chegar a ter algum papel na organização hierárquica da humanidade moderna, é algo que só surpreendidos historiadores da utopia futura poderão abordar.

A racialização das pessoas não é uniforme nas diversas sociedades. Nos EUA, por exemplo, é “negro” quem possui algo de “sangue” de escravos africanos, pois, em geral, os descendentes da união entre “brancos” européus e escravas africanas (o caso mais frequente, fruto de relações impostas ou de violações) ficavam com o grupo de escravos e eram socialmente “negros”. Consequência disto é a quase total correlação actual entre etnia afro-americana e classe baixa nos EUA. Em contraste, na Espanha colonizadora de América existia uma classificação escalar das “raças” em função das percentagens específicas de “sangue”: havia negros (com ambos progenitores “negros”), mulatos (um “negro”, outro “branco”), cuarterones (só um dos quatro avôs “negro”), indios, mestizos, etc. No regime nazista, por sua parte, demonstrava-se oficialmente “raça ária” com ter só os oito primeiros apelidos de origem germana. Parece que foi assim decidido por Hitler mesmo porque o seu noveno apelido era judeu. No nazismo, o “sangue judeu” limitava direitos ou condenava à morte, e o “sangue ário” concedia privilégios. E assim por diante.

Com efeito, nos sistemas políticos racistas, como o do “Reino de España”, a distribuição de “sangue” e genes limita direitos ou concede privilégios aos cidadãos: o racismo está inscrito na própria Constitución que impôs a monarquia. O facto é que a Coroa, quer dizer, a chefatura vitalícia do Estado e todos os poderes e privilégios que esta acarreta, se herda em virtude dos genes, e portanto a Monarquia vulnera frontalmente o princípio da igualdade perante a lei. O possível herdeiro (ou, já agora, a possível herdeira) deve ter “sangue” da gínea Borbón/Bourbon em Espanha, que, num dado momento, se fundiu, via Louis XIV Dieudonné de France, com genes da meia-irmã de Carlos II “el Hechizado” María Teresa de España, da rama Habsburg ou Áustria, descendente portanto de Philipp I von Habsburg “el Hermoso” e de Juana I de Aragón “la Loca”. Juan Carlos de Borbón, Felipe de Borbón e Leonor de Borbón y Ortiz são, portanto, descendentes directos dos Reyes Católicos, do Imperador Maximiliano I de Áustria e de Henri IV de Bourbon, entre outros. Vamos, como um sapateiro da Rua Real da Corunha ou uma limpadora da Rua Príncipe de Vigo.

Sabemos que na história dos Borbón e dos Habsburg houve grande endogamia, por mor de garantir o controlo dos domínios e a unidade do grupo genético que poderia herdá-los. Que na gínea Borbón actual haja mistura de genes e apelidos não empece a base racista da monarquia espanhola: É a presença de “sangue” Borbón que valida o privilégio (não “direito”!) à herança da Chefatura vitalícia do Estado, enquanto a presença de outro “sangue” (Ortiz, por exemplo) não invalida este privilégio.

Agora assistimos a uma ré-legitimação deste sistema anti-democrático por parte da partitocracia espanhola. Argumenta-se amiúde que a Monarquia deve continuar porque “o povo” assim o quer. Porém, na minha humilde opinião e experiência, o que a gente quer é simplesmente independência. O que quer é a auto-determinação e independência verdadeira, a da mente, a liberdade de união e desunião em todos os níveis sem figuras perenes de autoridade, a libertação do material, a liberdade de escolher representação se fizer falta, de auto-organização, de exercer formas de relação laboral sem exploração, a emancipação dessa prisão que é a desigualdade diária. A emancipação que no meu velho e estranho vocabulário é sinónimo de auto-gestão livre e colectiva.

E uma cousa parece certa: com Monarquia, emanada dum princípio discriminatório fundacional, nunca haverá tal independência da gente. Sem ela, já se verá. Mas é uma irresponsabilidade, até do independentismo galego, pensar que a forma de estado de “España” não deve ser uma prioridade política porque é assunto de outro “povo”. Isto seria não compreender a natureza da dominação política na Galiza. A Coroa garante constitucionalmente a unidade de “España”. Essa é a sua função primordial. E o exército é o seu braço armado. A pretensa “concessão” feita ao regime monárquico pola partitocracia espanhola há agora 30 anos já chegou longe demais. Sob o regime monárquico espanhol, um processo soberanista galego não tem qualquer hipótese de sucesso. Infelizmente, penso que só sem monarquia em “España” se poderiam abrir as portas à soberania dos súbditos (falo em tecidos sociais reais, não em “essências” étnicas também geneticistas) que agora constituem o que se chama a Galiza. Desde qualquer concepção da liberdade, interrogar publicamente e com intensidade o regime monárquico espanhol deveria ser uma prioridade.

Trinta anos e um dia

Publicado em Vieiros

O 30 de Outubro de 1975, Juan Carlos de Borbón y Borbón assumia interinamente a chefatura do Estado Espanhol durante a doença artificialmente prorrogada de Francisco Franco, e sem o conhecimento deste. Juan Carlos já nunca abandonaria o cargo de monarca no Conselho de Administração. Trinta anos e um dia depois, como uma longa sentença democrática, o avô da empresa familiar e portanto de todos os espanhóis Juan Carlos, neto à sua vez do avô de todos os espanhóis Francisco, vê consumada a sua longa jogada dinástica de pai-filho-nai (“tres en raya”, para os estrangeiros) com o nascimento da filha do seu filho. Desejo-lhe longa vida à meninha, que não tem culpa de nada. Bastante condena é nascer rainha.

O jornalismo rosa deve estar frenético. Quero dizer EL PAÍS, El Mundo, La Razón, La Voz de Galicia. Quero dizer a SER, a COPE, essa emissora pirata dos bispos. Quero dizer, portanto, o aparelho propagandístico da Monarquia. Não se lhe deve negar a este monopólio bicéfalo a sua genuína perícia nas artes da propaganda, isto é: discurso desenhado para deixar de pensar. Por algo praticamente todos os jerarcas da informação são herdeiros da Falange e do antigo Ministerio de Información y Turismo do deputado Iribarne. No jornalismo rosa, o privilégio de reinar converte-se agora no “direito à sucessão”. A “igualdade de género” passa por cima da desigualdade de ADN, de classe, de família. O Reino de Astúrias converte-se no piar de uma España (Rouco Varela e Francisco Vázquez dixerunt) incombustível, eterna, pré-romana, pré-histórica, atapuerquense, pré-jurássica. España nasceu providencialmente no centro do universo para criar o cristianismo.

Parabéns, visitas, telefonemas, telegramas. Enxames de curiosos que fazem vela, como há trinta anos perante um cadáver, para adorar o fruto do ventre de España, Leonor. Ouro, incenso, mirra para a primogénita nascida numa humilde clínica do bairro de Salamanca. Arcanjo Anunciador do Portal transfigurado em águia imperial do logótipo da Clínica Ruber. A reforma constitucional é o Novo Testamento da España eterna, católica, sentimental. O Triângulo de Deus (Pai-Filha-Mãe) completa agora a sua geometria. No centro do triângulo, pisca o olho panóptico da câmara web que tudo o contempla, que a todos nos contempla, sempre suspeitos de blasfémia, heresia ou injúria, que é a mesma figura de traição. Porque, se o deus é infalível, o monarca é inviolável, e a bandeira espanhola de Paco Vázquez na Corunha, indestrutível.

Trinta anos e um dia é uma longa condena para milhões de pessoas. Há quem nasceu e morreu durante esta sentença. A Constitución monárquica de España garantia-lhe direito à vivenda, mas morreu numa choupana. Garantia-lhe liberdade de residência, mas ele morreu emigrado, exilado político. Garantia-lhe trabalho, mas morreu de sobredose. Quando se pinchava na veia esse último caballo adulterado, sobrevoava Gredos o helicóptero Cougart de Deus como uma pomba bicolor. Pilotavam-na Bono e Trillo: bicolor.

E a partitocracia espanhola está disposta a prorrogar-nos a condena trinta anos mais. Será porque muitos ainda não nos arrependemos. Será porque dentro da prisão não há correcção possível. Como na guerra, a fuga maciça é uma obrigação moral.

Vinte barras de pão

Publicado em Vieiros

Confesso ser um sentimental. Venho de jantar no Mesón O Arrieiro (boa gente, boa comida), perto do velho piso familiar das Travessas em Vigo. Na casa, ligo a televisão para o telejornal e as imagens fazem-me, literalmente, chorar. Nómades exilados negros, aqui mal chamados “imigrantes”, percorrem a morrer o deserto branco de Marrocos rumo ao Norte. Num lugar oculto entre árvores baixas, voluntários brancos dão-lhes clandestinamente pão branco e leite branco, fugindo das patrulhas militares marroquinas. De uma grande bolsa plástica sobressaem vinte barras de pão branco clandestino para os negros. Depois de comer, eles chegarão aos valados de arame de España e ficarão cegos, eivados, tristes, mortos. Eles morrerão perfeitamente comungados de pão. E nós compraremos cada dia mais pão branco, metáfora do deus europeu que no século XVIII inventou o Capital.

Confesso que chorei um pouco, como aquele adolescente cristão que tantos fomos quando vivia Franco nas Travessas de Vigo e assistíamos no insti Santa Irene a Formación del Espíritu Nacional, fazíamos coloridos desenhos dos chinitos com lápis Alpino e alguns começávamos a escutar, por exemplo, os recitais de poesia resistente que os professores progres traziam ao liceu.

Hoje, muitos dos herdeiros daquele Domund perpétuo que era o Franquismo governam os nossos países. Eles sobem os modernos valados metálicos, substituem as palavras “negro” por “subsahariano” e “chinito” por “asiático”, e, como em todo bom capitalismo, subcontratam a distribuição da caridade às ONG que levam pão branco clandestino aos negros dos desertos do mundo.

Na televisão, um exilado do Togo também chora, mas chora de verdade, diante da câmara, não deste lado, como eu: “Não nos faríades isto se não fôssemos negros”. É certo, exilado, mas não é: no capitalismo industrial, quando um escravo não é negro de nascimento pinta-se-lhe a cara com o carvão das minas, com a grassa das oficinas mecânicas, com o excremento das casas de banho que limpam as mulheres, com o piche das estradas ou dos barcos afundados. Todas as substâncias sujas e ignóbeis são obscuras. Todas as comunhões onde reside o limpo corpo de deus são brancas.

Pão branco clandestino para os corpos negros que se secam no deserto, que se afogam nas minas de carvão. Confesso que chorei um pouco, inutilmente, e sei que não foi de impotência, mas de uma indefinida nostalgia por não poder ser já exactamente quem algum dia, quando vivia Franco nas Travessas, acreditei que eu poderia ser. Porque o Capital nasceu muito antes do que eu, e eu já nasci com ele dentro do coração e do cérebro. Para matá-lo, só é possível abrir-se por dentro como uma luva e extirpar o enorme tumor de Deus, esse escravista okupa da consciência. Mas isso consistiria num suicídio, num suicídio de classe. E os resistentes de panfleto e recital poético nunca aprenderam nem aprenderão a suicidar-se, a suicidar-nos.

Triunfam Ouros: A jogada mestra de ser ‘nació’

Enviado a Vieiros; não publicado

A única cousa sensata do discurso extraterrestre que está a proferir certa Caverna espanhola a respeito do novo Estatuto de Autonomia para Catalunha é a seguinte: que este “segundo golpe de Estado” perpetrado por PSOE-ERC contra a “Nación española” (o primeiro seria o de 1934) tem o apoio do rei. Com efeito, numa comemoração qualquer na Academia Militar de Saragossa, Juan Carlos de Borbón lembrou ao exército a “indivisível unidade” da “nación” espanhola e o seu próprio papel como servidor desta unidade. Bem, lógico, só são palavras. Mas, é que há desnecessário ruído de sabres ou está a Monarquia a dizer que Espanha vai bem? Porque qualquer leitura racional da proposta de novo Estatuto catalão leva, precisamente, nesta segunda direcção Real: Catalunha define-se como uma nação dentro do Estado espanhol. É mais: O Artigo 3 define explicitamente a submissão de Catalunha à soberania do Estado espanhol:

“ARTICLE 3. MARC POLÍTIC. 1. Les relacions de la Generalitat amb l’Estat es fonamenten en el principi de la lleialtat institucional mútua i es regeixen pel principi general segons el qual la Generalitat és Estat, pel principi d’autonomia, pel principi de plurinacionalitat de l’Estat i pel principi de bilateralitat, sense excloure l’ús de mecanismes de participació multilateral.”

Por sua parte, a Constitución espanhola faz recair a soberania ambiguamente ora na “nación española” (Preámbulo) ou no “pueblo español” (Título Preliminar, Artigo 2: “La soberanía nacional reside en el pueblo español, del que emanan los poderes del Estado”). Mas reparemos que os preâmbulos são declarações de intenções para contentar uns e outros, e o substancial é o articulado. No articulado, “pueblo español” é sinónimo de “ciudadanía española”, sem mais estórias.

Eu suponho que qualquer leitura não essencialista dos vocábulos “nación”, “nació”, “pueblo español”, “poble català”, “pobles de l’Estat” e outros relacionados nos dous textos deveria levar os juristas racionais à conclusão de que o novo Estatuto catalão não pode vulnerar a constituição espanhola, por duas razões. Primeiro, o Estatut só pode definir o âmbito e o sujeito da soberania catalã. Não poderia ser de outra maneira, polo seu próprio rango inferior à constituição de Espanha. Segundo, quando se refere à definição do Estado no Preàmbul, o Estatut expressa uma posição subjectiva de “Catalunha”, não um facto de lei: “Cinquè. Catalunya considera que Espanya és un Estat plurinacional”. Podemos perguntar-nos se tal peculiar expressão tem lugar num texto jurídico, mas dificilmente se pode argumentar que a expressão de um juízo não vinculante por parte de um colectivo seja anti-constitucional. Será, em todo o caso, anti-estatutário, por não poder ter qualquer efeito jurídico.

Destas premisas de submissão de Catalunha ao Estado como parte dele, o resto do articulado do Estatut detalha os direitos e deveres dos cidadãos de Catalunha, quer dizer (e com total transparência), dos espanhóis (cidadãos do Estado espanhol, com independência da sua origem) residentes em Catalunha: “ARTICLE 7.1. Gaudeixen de la condició política de catalans els ciutadans de l’Estat que tenen veïnatge administratiu a Catalunya. Llurs drets polítics s’exerceixen d’acord amb aquest Estatut i les lleis”. Isto quer dizer que não há qualquer contradição entre ser catalão e ser espanhol: ser catalão, é, de novo, uma forma contingente de ser espanhol. Decerto, o “povo catalão”, que poderia entender-se como um sujeito étnico, não civil, aparece cá e lá no novo Estatuto, mas não se lhe atribui qualquer papel especial (por exemplo, no exercício da soberania) além de ter preservado costumes, tradições e direitos próprios durante séculos.

Em resumo, como a Generalidade é estado espanhol, e exerce dentro do território de Catalunha em função da prioridade da legislação própria, a proposta não difere muito da antiga “administração única” do deputado Manuel Fraga Iribarne, excepto na retórica nacionalitária. Até a “prioridade” dada ao direito e à legislação de Catalunha sobre os gerais do Estado é vazia. Porque, ao estar submetida Catalunha à legislação geral do Estado, também qualquer díscola normativa catalã é e será susceptível de anticonstitucionalidade e, portanto, de nulidade jurídica.

Portanto, a definição de “nació” para Catalunha é (como talvez chegue a ser no caso galego) um nominalismo acadado como efectiva cortina de fumo para desviar o assunto fundamental do Estatut: a renúncia de facto ao direito de auto-determinação e de secessão. Decerto, Catalunha não renuncia aos seus “direitos históricos” (Disposició Addicional Primera do Estatuto). Mas a eventual actualização destes direitos fica subordinada à Disposición Adicional Primera da Constitución, que impõe o quadro da própria Constitución como limite para estes direitos. E a Constitución monárquica impede a secessão. Só após uma reforma da Constitución poderia Catalunha reclamar legitimamente a independência. Em resumo: Que melhor cenário para a direita espanholista que desenhou o regime monárquico como tampa para a secessão do que uma “nació” que, podendo reclamar a independência, renuncia à soberania para continuar fiel à Coroa?

Claro que, sabemos todos, o assunto de fundo não é a Nación nem a Nació nem a Nação, mas a pela, os quartinhos dos grandes dominadores. No Estatut, o complemento de um detalhado articulado em defesa de todo tipo de direitos dos espanhóis catalães a que nenhum verdadeiro liberal se poderia opor é, por uma parte, a definição do papel do governo catalão, claramente intervencionista em todos estes aspectos como suposto garante destes direitos. Vamos, nada novo: exactamente como o papel molhado da Constitución Española e de outras constituições liberais. Mas o verdadeiro contraponto é o articulado final relativo ao financiamento e aos tributos, onde “Catalunha” reclama o lógico direito liberal de contribuir para o Estado geral em função da sua população, do seu “esforço fiscal” e outros critérios, mas sem comprometer a sua posição económica. Com outras palavras: se sobrarem quartos, a empresa “Catalunha” será “solidária” com as outras companhias do Estado, mas o “nivelamento” não poderá rebaixar em nenhum caso a posição relativa de “Catalunha” no ranking das rendas per cápita do Estado (Artigo 210.d). Com efeito, por quê deveria sob o capitalismo uma “nação” muito produtiva do Estado pagar ou manter outras empresas-nação que produzem menos? De novo, “Catalunha” não poderia ser uma empresa mais liberal: para cada pessoa, uma série de direitos, um voto, um pedacinho de imposto, e que não no-los roubem outros. E os benefícios colectivos, para dentro (isto é, para os proprietários da “Nació”). Nem mais, nem menos. É isto o que assusta a improdutiva Caverna espanhola que quer continuar a chuchar fundos de todos roubados polo Capital sob a escusa da “solidariedade” e o “nivelamento”. O resto são farrapos de gaita.

Quanto a “Galicia”, talvez vá por um caminho semelhante: ser nación para continuar a ser empresa de España. Jogada mestra nesta longa baralhada: voltará a triunfar o Rei de Ouros e de Sabres. Os liberais do PSOE e do BNG estarão contentes. E os independentistas socialistas deverão repensar a que jogam ainda dentro deste partido. Romper o baralho real deveria ser o prioritário.