Matar mulheres pobres com palavras

Publicado em Vieiros

Vi várias vezes o vídeo do assassínio de María Rosario Endrinal Petit a mãos de Ricard Pinilla, Oriol Plana e Juan José M. em 16 Dezembro 2005 em Barcelona, para procurar compreender melhor os signos da barbárie. No acto, paradigmático de uma vesânia diária assumida polos mentecaptos como “incidentes isolados”, concentram-se três contrastes básicos de sentidos que articulam a dominação na sociedade do Capital (polo menos nesta; talvez noutras também, dirão os ultraliberais; mas eu não vivo noutras, e outras barbáries não exculpam esta). Um cabeçalho assim resumiria os eventos: Três homens jovens de classe meia-alta assassinam uma mulher maior pobre. Três contra uma, homens contra mulher, juventude contra madurez, mais ricos contra mais pobre. Maiorias, guerra de género, guerra de classe, guerra de corpos. Números, testosterona, força, armas: tudo encaixa. Só falta o elemento étnico, presente noutros ataques nas ruas das metrópoles do Reino.

Dous jovens entram num caixeiro automático de La Caixa, baluarte do capital nacional catalão, onde a mulher se dispunha a dormir. Insultam-na, agridem-na, um terceiro mercenário incorpora-se ao ataque, e finalmente os três matam-na prendendo-lhe lume com dissolvente. A câmara de “segurança” vigia que ninguém roube euros: está desenhada para proteger a propriedade. A vítima, sem dúvida, cometera muitos delitos: Era mulher, era desapossada, não ia limpa, e okupara com o seu corpo o recinto sagrado do caixeiro automático. Durante um tempo, ela conseguiu refugiar-se dos atacantes fechando-se por dentro. Mas enganaram-na, fingindo que um terceiro jovem queria entrar para levantar dinheiro. Cash, recendente cash. Ela acedeu ao inviolável direito (era, também, ex-trabalhadora de La Caixa) e abriu. Isso foi a sua tumba. As imagens revelam o rosto mirrado da assassinada, os rostos límpidos e penteados de dous dos homens. O terceiro rosto, de 16 anos, é mantido oculto informaticamente. Será por “respeito à imagem do menor”, é lógico: O pretenso assassino tem pretenso rosto. Os verdadeiros terroristas, de rosto em cartaz, são sempre estrangeiros, bascos e “moros” infiltrados no corpo nacional. E, além, aos 16 anos não se mata: brinca-se. Mostrar o rosto do assassino seria vulnerar os seus direitos. O cadáver, porém, já não os tem.

Os cépticos dirão que, mais uma vez, leio demais nos actos sociais. O assassínio poderia ter acontecido noutro lugar. O morto poderia ter sido um homem. Os assassinos poderiam ter sido também esfarrapados. A vítima poderia ter sido rica. Isto também acontece. Certo. E esses actos também significam. Mas há neste crime uma sobredose de sentidos sociais que o singulariza. Ele materializa com cheiro a carne queimada as palavras que amiúde escutamos e lemos, em distendidas conversas de café no trabalho, em jocosos comentários jornalísticos que se permitem dar a volta aos discursos progressistas como se estes já estivessem superados pola história, ou em nojentas mensagens nos foros de grilos da Internet, incluído este portal. Embora as palavras não causem o mundo, há quem diga, de ópticas diversas (Teun Van Dijk, , Ruth Wodak, Noam Chomsky, George Lakoff, Naomi Klein), que elas abrem as portas aos actos mais brutais. Ou que, polo menos, a relação entre actos, ideias e palavras é densa, e merece ser examinada. Localizemos onde localizarmos a fonte do assassínio (na cognição, nos discursos, nas relações materiais, em todos estes lugares), o facto é que a misoginia violenta, o classismo e o racismo proliferam cá e lá disfarçados de crítica pós-crítica, como se hoje em dia ser inteligente consistisse em, torpemente, esforçar-se por ir além dos discursos da igualdade. E os ultradireitistas do sociodarwinismo liberal esgrimem estúpidas etiquetas acusatórias, como a de “buenismo”, com que pretendem conjurar o seu monstruoso modelo económico e social, recriminando às vozes críticas de que estão a lamentar-se inutilmente. De que não vale a pena gritar. De que colocar-se eticamente apenas de um lado da geometria da dominação social é outra forma de paternalismo, porque (supõem os liberais) a glória da sofisticação na análise é mais importante. Já sabemos: para eles, é a pretensa sofisticação, não a crítica ética, que confere esse triste brilho fálico que procuram. Porque, afinal, sempre haverá mulheres pobres, e sempre haverá quem as mate. Afinal, algo teria feito a vítima. Afinal, os homens também são vítimas. Afinal, as mortas também são culpáveis.

Esse falso cepticismo, esse cinismo, é nazismo em estado puro. Ele proclama a supremacia dos corpos (masculino contra feminino, rico contra pobre, “branco” contra “preto”, “guapo” contra “feio”, “macho” contra “afeminado”), distorce o sentido da diferença, e glorifica a desigualdade económica e social a apresentá-la como uma insuperável evidência histórica. Também os três assassinos de Barcelona faziam piadas xenófobas, classistas, misóginas e homófobas nas suas conversas quotidianas. Faziam-nas como se aqui não se passasse nada, como se houvesse que rir sempre as graças dos nazis de qualquer origem, as que lemos amiúde cá e lá. Daí a assassinatos como o de Rosario Endrinal só há um par de passos. Hitler começou com palavras deglutíveis para a sua sociedade. Ser nazi não é só levar uma esvástica tatuada no peito: é também não ter mais nação nem mais língua do que um ódio de macho amargurado contra o poder da diferença, um projecto de extermínio. Nazis fora da História, já.