Um mês sem Vieiros

Em MundoGaliza • No Xornal de Galicia

Às vezes, na rotina dos dedos e da mente que repetem velhas ações, como se a vida nos levasse a nós e não o contrário, diante deste ecrã que me visita, clico com antecipação na frase inscrita no meu computador que conduz a Vieiros, a esses velhos vieiros que ocupámos. E aí chego, e aí permanece o seu daguerrotipo, intacto desde o 24 de julho de 2010, detido nas últimas palavras coletivas. Observo-o e releio segmentos com nostalgia, admito-o. Ou talvez o confesse. Porque –pergunto-me–, por acaso deveria sentir um inútil pudor ideológico por esta saudade ao saber que Vieiros não era, apesar de tudo, o meu projeto? Deveria procurar entender alegadas razões políticas que, dalguma maneira sempre maléfica na nossa terra, justificariam o seu desaparecimento? Até onde deveria esticar um purismo sobre não sei o quê, que me resulta difícil? Nem sei, nem sei se deveria. Apenas sei que admito –talvez confesse– a nostalgia. E pergunto-me, isso sim, sempre, pergunto-me se o mesmo amplo laio grupal se daria se, por motivos comparáveis (afinal, a força do material), nalguma altura tivesse que desaparecer alguma outra velha companhia nossa, também fundamental na sua parcela e no seu alvo, como o Portal Galego da Língua. Calculo que não haveria tal lamento grupal, porque um número grande de pessoas situaria uma dada lealdade por cima da manifesta importância social do Portal. Eu nego-me a tal exercício especular com a morte certa de Vieiros, que, apesar de tudo, repito, não era de todo o meu projeto.

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Masculino genérico: O homem

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     O homem é um animal racional.

     O homem é um mamífero.

     O homem é um mamífero bípede que menstrua, fica grávido, pare e amamenta os filhos.

     Mas o homem é um animal que submete a metade de si próprio. O homem que não amamenta os filhos submete o homem que amamenta. O homem que não fica grávido impede que o homem grávido deixe livremente de estar grávido. O homem sem hímen valora muito o hímen do homem com hímen.

     Em muitas sociedades o homem só deixa que casem dous homens quando um dos homens é homem e o outro não é homem. Mas o homem não deixa dous homens que são homens casarem, nem dous homens que não são homens.

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Nostalgia das vozes da costa que soavam estrangeiras

Publicado em A Nosa Terra

Eu fum um meninho burguês, como se ainda existissem dous grandes bandos que se dividem o nosso escasso território. Conhecim a voz do galego através de gentes inevitavelmente subordinadas que aturavam a minha insolência de rapaz e cuidavam da minha curiosidade espanhol-falante. Para mim, o verão na casa da praia era o estrangeiro, onde homens escuros desafiavam o mar cada alvorada com gamelas e vozes numa linguagem dura como pedra e mulheres roxas cruzavam a estrada deserta levando a cabra a pastar e homens lunáticos que se chamavam Jacinto iam sempre apanhar uma pouca de erva e lembravam-nos que o mundo, daquela, era pequeno e consistia sobretudo na tarefa cotiã de apanhar uma pouca de erva, de pescar umas rinchas, de turrar dos bois polo alcatrão quente da estrada ainda solitária, como uma negra cobra dormida ao sol de Julho. Assim era a vida então. Eu era um meninho burguês, de cidade chula no Sudoeste da Galiza, um burgo que apodrecia como melhor sabia na sua mestiçagem entre galega e cubana e nacional-sindicalista. Esse era o meu mundo de verdade. Galiza era o estrangeiro.

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Nós, os extraviados

Escrito em Berkeley, EUA • Publicado em A Nosa Terra

A minha geração nasceu do frio exílio das cidades. À noite baixávamos com fachos acesos por túneis improváveis, caminhávamos de espaldas à procura de sombras míticas descritas em tratados de luta, e ao sair críamos repartir o pão e a palavra dum combate que já mais havemos de ganhar. Por enquanto, esquecíamos na casa essa continuidade de pais que apesar das décadas se amavam, e, por vivermos sem lhe dar cara a um hábito que víamos alheio, no decurso da nossa ingenuidade perdemos a maneira de querer-nos. Durante anos cultivámos cegamente noites húmidas, beijos que sabiam cada vez mais a quotidiano pergaminho, essa inverniça tradição de saudar-nos em pares à entrada duma casa que inutilmente quigera reproduzir a nossa infância, e mesmo alguns cometemos a falta de crer-nos intemporais nos nossos filhos de cor imaginária. Agora, de novo em roupas de pouca consistência, com o peso de tantos manuscritos que fingimos, alheios no desesperado coração dum tráfico de dias, descemos como antes a figuradas tobeiras clandestinas onde o fumo desenha fantasmas que já nem sequer podemos reconhecer sem medo. Mas hoje não procuramos o Mito senão algum pretexto.

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