Um mês sem Vieiros

Em MundoGaliza • No Xornal de Galicia

Às vezes, na rotina dos dedos e da mente que repetem velhas ações, como se a vida nos levasse a nós e não o contrário, diante deste ecrã que me visita, clico com antecipação na frase inscrita no meu computador que conduz a Vieiros, a esses velhos vieiros que ocupámos. E aí chego, e aí permanece o seu daguerrotipo, intacto desde o 24 de julho de 2010, detido nas últimas palavras coletivas. Observo-o e releio segmentos com nostalgia, admito-o. Ou talvez o confesse. Porque –pergunto-me–, por acaso deveria sentir um inútil pudor ideológico por esta saudade ao saber que Vieiros não era, apesar de tudo, o meu projeto? Deveria procurar entender alegadas razões políticas que, dalguma maneira sempre maléfica na nossa terra, justificariam o seu desaparecimento? Até onde deveria esticar um purismo sobre não sei o quê, que me resulta difícil? Nem sei, nem sei se deveria. Apenas sei que admito –talvez confesse– a nostalgia. E pergunto-me, isso sim, sempre, pergunto-me se o mesmo amplo laio grupal se daria se, por motivos comparáveis (afinal, a força do material), nalguma altura tivesse que desaparecer alguma outra velha companhia nossa, também fundamental na sua parcela e no seu alvo, como o Portal Galego da Língua. Calculo que não haveria tal lamento grupal, porque um número grande de pessoas situaria uma dada lealdade por cima da manifesta importância social do Portal. Eu nego-me a tal exercício especular com a morte certa de Vieiros, que, apesar de tudo, repito, não era de todo o meu projeto.

Porque Vieiros acolheu muitas palavras, que andam hoje –comprovo infelizmente, na extensa cerimónia diária da navegação– espalhadas por numerosos espaços. E assim me descubro, um pouco desnorteado, a procurar outros e novos lugares no nosso arquipélago, a tentar reencontrar nomes conhecidos e a tentar reconhecer vozes pseudónimas (confesso, admito), as mesmas que debatiam comigo ou contra mim, até as mesmas que exerciam a delicada tradição nossa do insulto. Não é esta uma procura desesperada, advirto, mas sim que detecto, contudo, que me faria falta uma nova ilha maior e aberta como era Vieiros, e até aventuro, com certa impunidade, que essa ilha nos faria falta a todas as mentes atlânticas navegantes. Decerto existem baías individuais ou menores onde de vez em quando algumas pessoas coincidimos. Mas quinze anos de itinerários de visitas, debates genuínos e até criativas insolências sulcaram de maneira ainda irrepetível uma notável superfície da nossa esfera de viagem, a nossa precária esfera pública, um globo terráqueo inacabado porque é ainda quase transparente de lado a lado.

Hoje, um mês depois do malfadado afundamento, lembro o território de Vieiros, agora intacto mas fechado. Espero que o lugar permaneça indefinidamente acessível. Acho sinceramente (confesso, admito) que o desaparecimento do domínio de Vieiros e o que contém seria uma grande perda cultural que não devemos permitir. Alguém, nalgures, neste país, deveria ter tido a precaução de conservar exatamente todas as suas páginas de palavras, como um labiríntico retrato dos nossos itinerários. Espero-o, desejo-o. Seria um feliz bálsamo contra a nossa secular inconstância. Talvez, se se demonstrasse que Vieiros não desapareceu de todo, num momento próximo algum lugar semelhante, aberto, atlântico, necessário, poderia surdir, surgir, rexurdir, para um forte reencontro.