Devastação do corpo

Publicado em Novas da Galiza 26, Janeiro 2005, p. 2

Confesso-o: há semanas começara a escrever para esta publicação um ordenado texto sobre a nação, sobre as nações, quando uma súbita doença de uma pessoa da família e um confinamento quase diário em hospitais fez-me pensar na dura evidência do corpo. Da fragilidade do corpo. Da sua essencialidade. Da sua inapelável realidade. E agora, poucas horas antes do prazo para este artigo, dias depois de corredores de hospital, de contemplar em quartos carentes infinitas tosses de anciãos, inacabáveis laios nocturnos, rostos decaídos, enormes soidades dentro da casca seca da velhice, compreendim que tudo revolve em torno do corpo, que contém a mente, que contém aquele falido artigo sobre as nações que felizmente nunca existirá. E compreendo que a política é a expressão do corpo, que a clara ligação entre um tsunami assassino e a miséria dum trabalho nos sujos arrabaldes da cidade reside na dimensão incombustível do corpo, a nossa única propriedade: a que nos forçam a oferecer como escravos, a que lanceiam os doutores e modernos druidas, a que é matada nas guerras, a que decai nas minas de carvão, nos prostíbulos onde jovens injectadas de morte são penetradas por armas de carne e depois sangram pequenos corpos clandestinos nas lixeiras. Tudo (o amor, a raiva, o trabalho, o sexo, o fruto que chamam a poesia) é a mesma massa de corpo, a mais elementar matéria que possuímos, a que eu alimento para ela alimentar os meus escritos. A humanidade é a matéria universal que é violada a diário por si própria. O corpo, casa do ser, cárcere e campo simultâneos, o corpo que limita.

Por isso, observar desde a mente do corpo o que acontece hoje no mundo só pode entristecer-nos. Algo está profundamente errado quando a mente se cega à miséria do mundo, que é simplesmente a miséria de milhares de milhões de corpos: quando a mente se nega a ver o roubo de uns corpos por outros, o tráfico de cadáveres em vida em que consiste o mundo. Alguma horrível cegueira nos invade quando não compreendemos em que consiste o espólio da força de trabalho, a soidade da pele da velhice que cheira a leite azedo, a penumbrosa prostituição como método, o brutal assassínio nas cozinhas de azeites requeimados e monótonas sopas amarelas. Dia após dia matando-nos o corpo e a mente da humanidade. Dia após dia renunciando à utopia, ferindo a massa orgânica do mundo. Eis a doença inacabável, eis o terror. E nós, cegos, silenciosos.

O Capital, fera imortal como todos os tumores, compra em grandes saldos os corpos, devora-os, devolve-os com outras formas no fumegante caldeiro das usinas, dos talheres clandestinos de lâmpadas poeirentas, no patamar de pensões esfregadas de joelhos com ressessa lixívia. O Capital compra corpos de escravos nas filas do desemprego, nas sonoras praças públicas, nas canteiras onde meninhos de raças magras batem pedras por centavos, nos gabinetes povoados de máquinas plásticas, nos campos arados por antiquíssimo ferro, nos bous que soçobram pálidos cadáveres de olhos muito abertos entre um mar de água e outro de ar. O Capital abre-nos diariamente a mente do corpo e inocula vírus como ideias. E pouco a pouco vamos pensando como Ele. E julgamos que sobrevivermos décadas assim é suficiente para chegarmos vivos até à morte. E assim ao longo da vida o corpo que nos contém vai supurando imperceptivelmente a sua dignidade, e vamos arrojando membros em cada trabalho provisório, e a nossa mente vai ficando em esqueleto de si própria. E o Capital cresce e impõe com a nossa conivência novas cirurgias. E um dia inesperado somos velhos, e nenhum humano lembra já que esse frágil resíduo de nós também faz parte do seu corpo, do corpo e da mente histórica da humanidade.

Por tudo isso, e por muito mais, é obsceno e cínico falar política sem pensarmos no corpo. Sem repararmos no diário latrocínio. Mas não resta muito tempo para ressuscitarmos. Estão a envelhecer todas as utopias. Se não resgatamos o valor do corpo e da mente que contém, se o mundo não reclama com unhas essa mínima dignidade de habitarmo-nos a nós próprios, então por favor não pidamos contas a ninguém, a nenhum dos nossos profetas de artifício. Não protestemos qualquer política, não nos sintamos legitimados a qualquer combate. Pois, se continuarmos assim, com tal docilidade, estaremos comendo-nos a nós próprios mas engrossando apenas a monstruosa anatomia do Capital. A nossa força de trabalho vive só no corpo e na mente que temos, que é um só, que é unicamente uma: provavelmente seja mais digno morrer que malvendê-los. Por isso sempre contra Espanha. Contra a ávida Europa que já espreita. E sempre contra esta forma de Galiza.

Eucaristia

Publicado em Vieiros • No Blogue de Esquerda

O fedor dos corpos apodrecendo começou a fazer-se insuportável quando não havia ninguém para os enterrar. Nos pequenos jardins dos pátios interiores, os débeis sobreviventes cavaram fossas orientadas para Meca até que nem os seus braços aguentavam o trabalho. Por fim, a última pessoa viva da família aguardava num canto escuro da casa a entrada dos soldados estrangeiros com enormes botas, berros e palavrões de salvação cristã. Meninhos magros bebiam água suja dos esgotos, comiam farinha crua, descompunham os seus ventres em qualquer lugar enquanto enxames de helicópteros sobrevoavam as ruínas da cidade. Extramuros, polindo fuzis e tanques, grupos de cruzados entoavam canções ao Salvador, oravam força para o combate. Dentro dos muros, abraçados a fuzis e lança-granadas, mujahedins entoavam canções ao Salvador, oravam força para o combate. Alá era grande e Deus era grande, e polo Leste, polo Oeste, exércitos de esfarrapados que comiam farinha nas ruas furadas da cidade deixavam as famílias para se unirem aos exércitos de suicidas. Porque não havia nada que perder. Nem que ganhar.

Fallujah é apenas um dos nomes actuais que compõem o rosário de massacres em que consiste o latrocínio. Fallujah são três sílabas metafóricas. Anos mais tarde, quando continuemos a redigir estas crónicas desde a velhice que se impõe como uma cobra (depois de décadas de perceber o fracasso, depois de décadas de não querer termos nascido aqui para, simplesmente, ficarmos em frente do ecrã e gritarmos contra todo tipo de mortes), Fallujah lembrará-se clandestinamente entre as poucas pessoas videntes que ainda existam. Mas Fallujah já nunca se poderá conjurar. Como tantos outros lugares na Palestina, nas Américas, no Camboja. Em Mauthausen. Em Cabul. Em Burundi. No Kosovo. Em Sarajevo. No colapso das torres de Nova Iorque. Num comboio de Madrid ou Moscovo. Numa escola da Ossétia. Em todo Nagasáqui. Não há possível comparança para estes nomes. Não se trata dum cômputo de cadáveres: nego-me a justificar rios de sangue com oceanos de sangue, ou o contrário. A quem agora esteja a fazer o cômputo das mortes de um e outro lado, que são o mesmo lado, lembro-lhes o procedimento da metralha nas entranhas: entra tão feroz e tão ardente que a dor não se nota. Em poucos segundos o sangue detém-se nas artérias, o coração pára. Alguém pode contar o que é sentir o próprio coração parado? Provavelmente nuns instantes transcorre toda a vida desgraçada de uma pessoa perante a olhada agonizante. Nesse momento a mente pensará no porquê de tudo isso. Verão-se mitologias salvadoras, túneis de luz ou paraísos. Verá-se um outro inferno, tão semelhante ao quotidiano. E depois mais nada: só uma outra cavidade na consciência dos restantes. Multipliquemos a morte, e multipliquemos assim a vesânia. Mas cada cadáver é idêntico: a maior aberração de que a espécie humana pode ser agente. Cada cadáver morre exactamente no último segundo. E depois absolutamente nada.

Porque os cadáveres de um lado e os cadáveres do outro lado apodrecem exactamente no mesmo lado: no lado escuro da História. São os assassinados por Deus, o carrasco intraduzível. O cadáver de Fallujah é produto do deus imperial que o mundo leva dentro. Acabar com deus consiste em recuperar, íntima e definitivamente, o lugar da espécie humana no planeta. Não um destino transcendente, não um alvo pré-escrito: sim uma utopia contingente mas de todo necessária, a revolta quotidiana que só pode ser fruto do mais elementar raciocínio. E Fallujah é um pesadelo. Ainda um outro pesadelo. Ou acordamos, ou os próximos cadáveres cairão cada vez mais perto, nos portais das nossas casas esfregados por umas moedas com semanal lixívia, dentro dos frigoríficos onde coabitam os nomes de alheias beberagens, nas nossas estantes rescendentes a madeira onde repousam as veneradas sentenças dos poetas. E os mortos petarão à nossa porta e colunas de sangue salpicarão o nosso limpo ecrã e não poderemos nem escrever esta raiva. E então, de joelhos, prepararemos água de esgoto para beber e farinha crua para comer, sangue e corpo de profeta armado, em obscena eucaristia.

Polo menos perdeu Kerry

Publicado em Vieiros

Estou meio contente com o resultado das eleições presidenciais dos EUA: Polo menos perdeu Kerry! Confesso que estaria algo mais de meio contente (por exemplo, 51%) se tivesse perdido Bush. Mas, sinceramente, é um prazer contemplar a derrota dos poderosos, embora esta signifique a vitória de outros poderosos.

Roubo a ideia de uma entrevista com um politólogo árabe, cuja referência na Internet já não sou capaz de encontrar. Quando entrevistado sobre a percepção das eleições EUA no mundo árabe, ele disse mais ou menos: “Nós gostaríamos é de que perdessem os dous, Bush e Kerry. Infelizmente, isso não pode ser. Polo menos temos a certeza de que ambos não vão ser presidente”. Ainda bem! Imaginemos por um momento um matrimónio (bom, uma “união civil”) entre o messianismo evangélico dos oleogarcas suleiros de Bush e o catolicismo dominical dos industriais “liberais” costeiros de Kerry, a governarem em sanguento tandem os destinos do mundo. Agora, polo menos perdeu um deles! E o outro, asseguro-vos, a nós não nos vai matar. Vai matar iraquis. Vai matar sírios e sírias. Vai matar iranianos. Vai matar soldados norte-americanos. Assim nós continuaremos a ter gasofa para ir celebrar a outra cidade a ponte da Imaculada Constituição, ou o Dia da Pátria do Apóstolo de Espanha.

Contemplar a derrota dos poderosos, confesso-o cristãmente, é uma sensação reconfortante. Calculemos quantos milhões de dólares caíram em ilusões eleitorais perdidas. Quanta lágrima genuína dos ingénuos que colavam cartazes eleitorais, quanta lágrima de crocodilo dos engana-bobos que ordenavam colar esses cartazes conhecendo perfeitamente o jogo. Dá vontade de dizer-lhes, com vedranha retranca: “Picaches, laraches, que tunda levaches”. Porque a derrota dos poderosos não pode ser nunca a nossa derrota. E, embora a derrota dos outros poderosos nos pudesse fazer um chisquinho mais contentes, sinceramente jogar o jogo não adianta nada. Nada.

A realidade é muito mais cruel, mais crua, como o cru: A realidade é que o grande capital tem agora a oportunidade de ré-iniciar o Experimento do mal chamado “neo”-liberalismo selvagem (não há nada “neo” sob o sol do capital: é, em todo o caso, um regresso às suas origens, que nunca faleceram) no Iraque e talvez Síria, e talvez o Irão. O politólogo As’ad AbuKhalil informa hoje mesmo (3/11/04) no seu blogThe Angry Arab News Service” que representantes do governo dos EUA solicitaram da Fundação Getty de Nova Iorque “indicar com precisão onde se encontram todos os principais jazimentos arqueológicos do Irão”. Será para salvá-los das próximas bombas?

A jornalista Naomi Klein explica lucidamente no seu artigo “Bagdade Ano Zero” (Harper’s Magazine, 24 Setembro 2004) os detalhes deste plano de conquista económica no destruído Iraque: a venda literal e ao cento por cento das velhas indústrias estatais do país a qualquer fonte de capital estrangeiro, e a instauração dum verdadeiro paraíso liberal. Por exemplo, no Iraque actual, até o concreto para a (escassíssima) reconstrução (sobretudo da “zona verde”) chega do estrangeiro, quando sairia dez vezes mais barato produzi-lo no país. As brigadas da “resistência” e da “insurgência” iraquiana estão compostas em grande parte de desempregados, desfarrapados, desapossados depois da gigantesca “redução de plantel” que significou a guerra e invasão do Iraque: centenas de milhares de pessoas sem mais oferta de trabalho que unir-se à polícia ou ao novo exército. E, para um exército, outro exército, que raios. A gente não é toda fanática, nem acha de menos Saddam, nem farrapo de gaitas: querem é ter um trabalho numa economia “estável”, como é sempre o inferno des-reconhecido do Capital.

Por isso veremos ainda mais guerras, mais experimentos. Choraremos genuinamente o sangue que não cessa, e choraremos com lágrimas hipócritas toda a cultura que será destruída. Haverá alti-baixos na conquista ocidental do petróleo. Mas, da minha modesta ignorância, sugiro: não se engane ninguém. Ontem saiu derrotada nos EUA apenas uma versão menos selvagem do capitalismo, como na Espanha (aparentemente) saíu derrotada em Março a mais feroz. (Neo)liberais contra intervencionistas, Esperanzas Aguirres contra Gallardóns, Núñez Feijóos contra Palmous, e Solbes com todos: esse é jogo das vitórias e as derrotas.

Pola nossa parte (das pessoas que, espero, ainda pensamos) não há maior derrota do que acreditarmos que é nessas batalhas que se deve dirimir o mundo, que é a política, que é a utopia razoada de que falou Bourdieu. Estaremos vencidos se nos alegramos das suas vitórias eleitorais, não dos seus fracassos. Eu só exijo, minimamente, que deixem de roubar também a minha força de trabalho para os seus votos: que me dêem de vez o mais-valor roubado, que caralho, que quero um computador mais rápido, uma outra caixa de plástico feita do seu petróleo.

Língua: Em favor do suicídio

Todo o pragmatismo, toda a lenteza, todo o possibilismo, todos os atrancos, todos os pactos, todas as liortas, todas as medalhas, todas as demonizações, todos os roubos, todos os insultos, todas as prebendas, todos os populismos, todas as marginações, toda a mediocridade, todas as repressões, todas as exclusões, todas as louvanças, todas as hagiografias, todos os rituais, todas as mentiras, todos os protestos, todos os segredos, todas as pintadas, todos os congressos, todas as discussões, todas as olhadas, todos os esquecimentos, todos os prémios, todas as campanhas, todos os manifestos durante décadas de concorrência entre iluminados pola administração dos resíduos da língua portuguesa na Galiza são profundíssimamente cansativos. Profundíssimamente reiterativos, circulares, endogâmicos, inférteis, aborrecidos, virais, masculinos, diletantes. Já avonda. Já basta. Já está. Morre o mundo e aqui a semearmos letras em campos reduzidos para que paçam vacas de pasta de papel. Deliberadamente lentos perante o abismo. Lentos e deliberadamente anacionais para que nos deglutam as letras doutra monstruosa Patria, sem acento. Pactando a morte em lugar de abraçá-la, obedecê-la. Fingindo resistirmos, uns e outros, que somos os mesmos. Fingindo as palavras, os argumentos, os escritos, os achados, os manuscritos, os provérbios, as partes do carro, os neologismos que ninguém nunca utilizará. Pactando os acentos, os morfemas, as proibições, as contra-senhas. Adorando os adjectivos, os versos, a tinta, os abraços. Contemplando o abismo, a queda iminente, o equilíbrio.      Pois: Nada há mais real do que o abismo antes do suicídio. E nada mais doloroso do que a morte lenta. Se afinal vai desaparecer todo germolo de uma monstruosa Pátria, não nos neguemos a um final glorioso, como nos filmes de suicídio. Só há dous caminhos para a Unidade. Um mantém-nos, como hoje, como até agora, no purgatório de uma semi-língua. O outro é acatarmos a Língua plenamente, como esta, adoptá-la, e saltarmos de pés juntos polo abismo. E, enquanto caímos, ao melhor formamos essa monstruosa Pátria que tanta náusea dá e que tanto nos faz combater contra nós mesmos. E ao melhor a queda polo abismo dura mais do que pensávamos e até, enquanto morremos, desfrutamos.

Língua e Estatuto: Uma proposta audaciosa

Enviado a A Nosa Terra; não publicado • No Portal Galego da Língua • Em CMI Brasil

Nunca gostei da expressão, mas começa um novo “curso político” e social paralelo ao académico. Com ele, voltarão debates à minguante esfera pública que nos resta. A língua não é nem de longe o principal problema de qualquer sociedade. Mas o problema da língua é amiúde sintoma e, pior ainda, causa de outros. Neste sentido, é evidente que a situação sociolinguística na Galiza continua a ser grave: a Galiza como sociedade ainda foi incapaz de se articular nacionalmente, e a sua língua continua sem ser o que se entende por Língua Nacional, quer dizer, entre outras cousas, um símbolo de Estado e um instrumento que veicule e expresse conteúdos culturais distribuídos “democraticamente”, que sirva como recurso dentro da infelizmente inescapável lógica do Capital, e que seja um referente e uma conduta natural, diária e habitual de que por fim podamos deixar de falar com obsessão. E a sociedade galega foi incapaz de alcançar ainda esta situação porque carece dos recursos políticos soberanos, aqueles que poderiam levar a um estado nacional independente tão nocivo (mas, contra os medos dos liberais defensores do “mercado”, não mais nem menos) como o Reino de Espanha ou a República de Portugal, ou como qualquer outro Estado do capital.

Diz tudo isto quem nem é programaticamente nacionalista, nem independentista, nem estatalista. Manter contra toda laminação do pensamento uma ucronia ideológica informalmente libertária não pode significar cegar-se às evidências. E uma das infelizes evidências é essa carência de Língua Nacional na Galiza paralela à falta de autodeterminação real, como lhe corresponde em direito (humano, já não político) a qualquer colectivo em processo de construção intersubjectiva, que é como se dão os processos sociais.

Seria longo (e precisaria de outro autor) detalhar as responsabilidades históricas das proto-elites nacionais na falta de país e de língua actuais. Culpar sempre o Outro, como se o Outro fosse uma invisível entidade estrangeira em “Madrid”, não soluciona o problema. O facto é que em dous séculos as proto-elites nacionais galegas políticas e intelectuais foram incapazes de gerar pouco mais do que ideologia da Identidade e discursos culturais. Mas muito pouco Capital. E sem Capital não há Língua, porque é esta que se constitui em moeda de troca simbólica paralela às moedas únicas que nos subjugam. Evidentemente, a versão actual do galego culto, proposta pola Real Academia Galega e acolhida como útil miragem polas classes dominantes, não é tal veículo de capital que poda concorrer contra o espanhol como lengua nacional. De facto, está a acontecer todo o contrário: de cada vez mais, o espanhol é também lengua nacional da Galiza, porque todos os processos fundamentais de identificação social, (escassa) mobilidade de classe, comunicação social, etc., passam por ele.

Na minha opinião, no plano sociolinguístico só há uma maneira de procurar reverter esta tendência: abraçarmos com todas as consequências e acatarmos como súbditos obedientes a natureza cruel das Línguas Nacionais de estado, e construirmos a língua da Galiza como tal. Este é, nem mais nem menos, um velho projecto que o insidioso “senso comum” se encarregou de adjectivar como “lusista” ou, em linguagem politicamente correcta, “reintegracionista”, mas que subjaze a notáveis ideólogos da nacionalidade galega, desde Biqueira até Castelao ou Lôpez-Suevos ou (com uma importante concessão ao benefício da dúvida) Nogueira. E a história e o presente dizem-nos que o modelo mais próximo que temos para construir uma Língua Nacional que reproduza e à vez invisibilize a cruel distinção social e de classe é também o mais próximo cultural e geograficamente: Portugal.

Sei que se argumentará que o “Povo” não concebe o galego como língua portuguesa. Talvez este argumento fosse válido se os especialistas soubéssemos ver a ideologia “real” que têm as pessoas sobre a língua nos enunciados delas. E talvez não fosse válido, se soubéssemos resgatar as variadas concepções informes da língua e da fala em qualquer sociedade. Mas, contudo, queiramo-lo ou não, a concepção do “povo” sobre a língua não é a questão. Durante o Franquismo o “povo” galego (a gente) sabia que o galego era um dialecto do espanhol. Não o “pensava”: sabia-o. Agora a maioria da gente sabe que o galego é independente do espanhol. Muitos sabem que é independente também do português; mas muitos também sabemos que o galego é língua portuguesa. Como o sabemos, alguns chamamos o galego “português galego”, paralelo ao “francês quebequense”, e sabemos que não estamos a violentar a natureza da língua. Contudo, nada adianta discutirmos a firmeza destes saberes (o episteme é a cousa mais misteriosa que existe) nem os números das maiorias ou das minorias: as analogias mais transparentes (estruturalmente, o galego é à língua portuguesa o que o quebequense é à língua francesa) são facilmente ignoradas quando contradizem fortes ideologemas. Por isso, trata-se de tomarmos um caminho diferente do debate circular. Passo a explicá-lo.

O “curso político” talvez ofereça a possibilidade de as elites partidárias levarem adiante uma revisão do quadro jurídico do Reino: o quadro dos Estatutos de Autonomia, incluído o galego. Devo suprimir por praticidade a discussão da conveniência destas reformas. Teoricamente (ucronicamente), não podo defendê-las, porque não podo aceitar a existência do Reino sem grande ranger mental. Mas os factos sociais são mais poderosos do que a vontade do cérebro. E existe a possibilidade de o estatuto para “Galicia” ser revisado. No que atinge à língua (a minha deformação profissional) e aos direitos linguísticos, não se deveria deixar escapar a oportunidade de tocar o estatuto.

E é aqui onde se apresenta socialmente o que considero uma proposta audaciosa. Em 29 de Junho de 2004, as associações linguístico-culturais de âmbito galego AAG-P (Associação de Amizade Galiza-Portugal), AGAL (Associaçom Galega da Língua) e MDL (Movimento Defesa da Língua) aprovaram após discussões a três bandas uma proposta conjunta de revisão de alguns pontos do Estatuto, apresentada publicamente em 25 de Julho, que, na minha opinião, contribui para facilitar juridicamente a construção de Língua Nacional. A Proposta 2004, como é chamada (http://www.proposta2004.tk/) redefine o estatuto legal da língua da Galiza deixando aberta, de maneira muito elegante, a sua consideração, classificação tipológica e portanto denominação. A sugestão de reformulação do Artigo 5 do Estatuto galego, na qual me focarei, é a seguinte: O galego ou português é a língua oficial da Galiza.

Esta formulação é extremamente inteligente. A identificação entre “galego” e “português” é paralela à tão efectiva equiparação entre “castelhano” e “espanhol”, por exemplo, sinónimos que operam tanto no âmbito oficial e institucional quanto no quotidiano. No nível jurídico, a fórmula O galego ou português é a língua oficial da Galiza (esteja escrita como estiver) não impede nem promove qualquer modelo de formalização (padronização) autónoma do galego, enquanto levanta qualquer atranco jurídico para a discriminação em razão de língua (outro ponto também reformulado na Proposta 2004). Não se posiciona (como não se pode posicionar um Estatuto) sobre o debate técnico a respeito da delimitação do galego como língua (língua galega, língua galego-portuguesa, língua portuguesa na Galiza, português galego, etc.), nem muito menos sobre a questão normativa. Não impõe usos (como não poderia), e não os impede. Em definitivo, é inclusiva, não excludente.

Na minha opinião (e de muita outra gente), a construção efectiva de Língua Nacional na Galiza passa inelutavelmente polo amplo reconhecimento social e pola plasmação jurídica desta inteligente equação. Evidentemente, esta é uma condição necessária mas não suficiente para o alvo dos três enes: nacionalização, normalização e naturalização da língua. Para isto, a Proposta 2004 (que diz mais cousas, por exemplo sobre direitos linguísticos e meios de comunicação públicos) visa o apoio maciço de pessoas e organizações. Não é uma iniciativa desenhada para ficar no fácil recanto da heterodoxia que se autolegitima: é para ser contemplada com seriedade. Não me engano: a Proposta 2004 representa um desafio para partidos, intelectuais, e outras inevitáveis minorias que querem (em toda lógica) que sejam reconhecidas socialmente as parcelas de legitimidade alcançadas numa recente história de trinta anos. Mas eu vejo que a Proposta 2004 não está desenhada contra: está desenhada para. Cada um(a), cada pessoa, cada organização ou entidade, saberá como fazer encaixar a sua ideologia e projecto político com uma oportunidade histórica.

Confesso que eu já dei o meu apoio a esta iniciativa: o meu apoio, sim, à revisão dum Estatuto inconcebível. Diz tudo isto, e convida a visitar a Proposta 2004 e a considerá-la, uma pessoa que, repito, não é nem autonomista, nem quisera acreditar nas leis, nos estados e no poder das línguas. Mas assim é a natureza da Besta, que impõe tantas aberrações diárias, enquanto morre o mundo a mãos da única Língua, uma espessa língua de ouro preto que se chama Language.

Proposta 2004: http://www.proposta2004.tk/
Associaçom Galega da Língua: http://www.agal-gz.org
Associação de Amizade Galiza-Portugal: http://www.lusografia.org/amizadegp/default.htm
Movimento Defesa da Língua: http://mdl-galiza.org/

“Mi terrorismo”: Como as palavras denunciam a verdade

Enviado a Vieiros

Numa entrevista feita por Federico Jiménez Losantos em la COPE na manhã do 12 de Março passado, quando se propagandizava ainda sobre a autoria de ETA do massacre de Madrid, ao então candidato do PP Mariano Rajoy escapava-lhe um significativo lapsus linguae, que ele auto-corrigiu, mas que explica muito sobre o tratamento do “terrorismo” em Espanha. O tema era, como não! (uma vez “cancelada” a campanha eleitoral) por quem votariam os espanhóis o 14 de Março:

“Y éste [a eleição de voto] es un problema de confianza sobre el que se debaten los españoles, de a ver en quién puedo dejar… en manos de quién dejo esto: mi país, mi bienestar y mi terrorism- y y y y mi libertad y mi vida” (Arquivo sonoro: http://www.cope.es/audios/manana/entrevista2_120304.wma ).

“Mi terrorismo”. Com efeito, no confronto eleitoral entre “ETA” e “Al-Qaeda” em Espanha entrou em jogo a questão da delimitação do que é “próprio”: do que é o “nosso” terrorismo (e o que lhe convém ao Estado Espanhol) e o que é “alheio”. Não para só Rajoy, mas para a grande maioria dos habitantes do Reino, existe a convicção de que ETA representa o “nosso” terrorismo, o interno, enquanto Al-Qaeda representa o terrorismo alheio, o estrangeiro, e, assim, é denominado às vezes “terrorismo internacional”. A falácia desta dicotomia é evidente, mas funciona para reforçar a ideia de Espanha. Farei-me temporariamente espanhol e farei-me parte dum “nós” inexistente para explicá-lo.

Para começar, tanto os bascos como os árabes estão entre “nós”, em Espanha. Nas notícias sobre o 11-M distingue-se significativamente entre os detidos “marroquinos”, “árabes” ou “sírios” e os “espanhóis” (como se um árabe não pudesse ser espanhol, ou um espanhol árabe), às vezes com detalhadas etiquetas, como a de “hispano-sírio” aplicada a um cidadão espanhol desde há anos que nascera num lugar que se dá em chamar Síria. Se se argumenta que os atentados, nos que morreram tantas pessoas com passaportes estrangeiros, foram contra “Espanha”, é lógico concluir que os ataques por residentes e cidadãos espanhóis também vinheram desde dentro de “Espanha”: também foram feitos por “Espanha”. Com efeito, alguns dos implicados na matança são residentes legais de Espanha desde há muitos anos. Três deles têm um DNI expedidinho por procedimentos idênticos ao DNI de Rajoy, de Zapatero, de Otegi, ou o meu próprio. Portanto, ou “Al-Qaeda” é também em parte espanhola, como a ETA (e portanto é o “nosso” terrorismo), ou nenhuma é “nossa”: as duas são exteriores (Euskal Herria, o Islão) e atacam o estado que as ataca. Se ao nacionalismo liberalista espanhol lhe importassem um figo os estados (o Estado só deveria ser um gestor e garante da “liberdade”, sobretudo a económica), por que negar-lhe a espanholidade ao espanhol “de origem síria”, ou por que negar-lhes o seu contributo para o fabuloso progresso do país a esses residentes legais árabes, que durante décadas pagaram obedientemente os seus impostos na nossa sociedade de mercado? Semelhantes aparentes contradições deram-se nos EUA após o 11-S, para apresentar sempre o “terrorismo islâmico” como uma ameaça “externa” contra um Estado natural, essencial e nacionalmente infalível. Mas a evidência é que o atentado de Al-Qaeda foi um atentado espanhol, isto é: tão espanhol como os da ETA.

Ou, se não, tão pouco espanhol: Ou jogamos todos, ou rompemos o baralho. Com efeito, as duas redes assassinas surgem fora do país Espanha (a ETA, em Euskal Herria e Bélgica; Al-Qaeda, nos EUA e Afeganistão). Mas seguramente é mais próxima a Espanha (mais “nossa”) Al-Qaeda do que a ETA. E com isto quero dizer que o ideário (?) de Al-Qaeda é muito mais semelhante à ideologia cristã conservadora do que o ideário (?) da ETA. É curioso constatar o descenso brutal do terrorismo do fundamentalismo cristão não estatal nas últimas décadas em todo o mundo, excepto, por exemplo, nas recentes matanças em Uganda polo chamado Exército de Resistência do Senhor. Os terrorismos do estado de Israel, dos Estados Unidos e desse “actor não estatal” (como o caracterizam os think-tanks ultraconservadores) que é “Al-Qaeda” compartilham muito mais que as bombas. Compartilham sobretudo três cousas: o monoteísmo como inspiração ou justificação propagandística, a meta da expansão territorial, e a guerra santa como método para estes fins. Lembremos que a noção de “cruzada” é apenas adaptação duma interpretação parcial da noção muçulmana de jihad, que significa guerra contra outros, sim, se é necessário, mas também guerra interna (“revolução interior”) contra o Mal. Para o sionismo expansionista (não todo sionismo o é), o território de Israel deverá chegar até ao Éufrates e Tigris, em pleno Iraque actual. O Islão é nem mais nem menos que todo o imenso território do planeta onde há muçulmanos. E o território a conquistar pola cruzada capitalista cristã é o da “globalização”, pois já sabemos que o capitalismo é só a expressão moderna e genuína do cristianismo, particularmente do protestantismo. As três formas de terror, portanto, são a táctica que têm os três fundamentalismos político-religiosos principais do planeta para levarem adiante as missões dos respectivos povos elegidos. E resulta que “nós”, os espanhóis (repito o truque retórico), somos fruto destas três visões monoteístas do mundo. Israel, Al-Qaeda, EUA, deus uno e trino: Pai, Filho e Espírito Santo da trindade, em competência mútua polo papel a jogarem no planeta.

Porém, esta explicação ideológica a três bandas não satisfaz um importante aspecto da realidade: o económico. E a realidade é que o mundo em conflito na altura (o mundo a conquistar) é sobretudo as terras e mares sob os quais há ouro negro, um território que se estende do Sara Ocidental até Indonésia, passando por várias zonas “geo-estratégicas”. É assim de simples. Como podemos esperar que fenómenos da transcendência como o terror selectivo estejam desligados desta realidade económica? É lógico então que pensemos num jogo mixto de conflitos e conivências entre estas três variantes fundamentalistas polo controlo de recursos essenciais. Porque, quando a história de classes pus as suas cartas mais duras sobre a mesa, por exemplo durante o período hitleriano, demonstrou-se que os interesses económicos se sobrepõem à pretensa ideologia religiosa: judéus ricos colaboraram com os cristãos nazis ricos, muçulmanos ricos deram-lhes as costas muçulmanos palestinianos pobres, cristãos americanos ricos mataram cristãos alemães ricos e pobres, e assim por diante.

Entre o 11 e o14 de Março passados, à direita liberal e conservadora espanhola convinha-lhe que o inimigo fosse “interno” (mi terrorismo). À direita social-democrata, convinha-lhe que fosse visto como “externo”, só por necessária hidráulica eleitoral. Mas resulta que não há nada externo nem interno nestas duas formas de morte programada: as ordens para matar sempre vêm em última instância do capital. Se ETA sempre foi a escusa para a nacionalismo liberal estatal contra os interesses dos nacionalismos liberais subestatais por construírem estado, “Al-Qaeda” é o braço armado dum poderoso capital oleogárquico transnacional para atacar selectivamente estados, quer dizer, grandes corporações económicas.

Na entrevista citada, Rajoy tinha razão, mas devia ter-se auto-corrigido doutra maneira. Evidentemente, uma eleição “democrática” consiste em depositar o voto naquele grupo de poder que vai gerir melhor “mi terrorismo”. Rajoy deveria ter dito: “mi país, mi bienestar y mi terrorism– quiero decir, mi Estado”.

Golpe económico de ‘Al-Qaeda’?

Publicado em Vieiros

Os resultados das eleições gerais espanholas podem ser fruto dum golpe do terror económico internacional. Uma série de circunstâncias faz pensar num plano detalhado de obscuros interesses, em última instância ligados à crise energética mundial e à luta (verdadeiramente) polo controle dos recursos: o petróleo é absolutamente crucial para a indústria pesada, incluída a armamentística. Dentro da obscena lógica do capitalismo internacional, a matança de Madrid é um sintoma de que, na guerra económica, as oligarquias devem respeitar certas regras de jogo, polo seu próprio benefício. Enumero apenas alguns dados e hipóteses, para que quem tiver mais inteligência, as ligue e extraia conclusões. Tudo isto é tão especulativo como grande é a minha ignorância de muitos factos. Em todo o caso, quando se dão eventos históricos desta magnitude é legítimo perguntar-se: A que interesses beneficia a nova situação?

Concorrem nestes acontecimentos vários factos recentes. Podem ser coincidências, ou pode ter sentido ligá-los. Em 5 Dezembro 2003, dous dias antes das eleições parlamentares russas, uma potente bomba estourou num trem de proximidades em Yessentuki, em semelhantes circunstâncias às do massacre de Madrid. Eram as 7:45 da manhã. No ataque morreram mais de 40 trabalhadores e estudantes. A explosão destroçou parte do trem em maneira semelhante à das bombas de Madrid. Discutiu-se se fora um ataque suicida ou uma acção por controle remoto. Putin atribuiu o atentado a “separatistas chechenos”. Nunca se soubo quem fora. Dous dias depois, Putin ganhou esmagadoramente as eleições. Em 29 Dezembro foi detido um tal Israpilov como implicado nos ataques. Encontraram-se-lhe explosivos e material para estourar bombas por controle remoto. Em 2001, o Ministério de Interior espanhol informava que alguns dos detidos de “Al-Qaeda” tinham ligações com o terrorismo checheno. Há pouco detiveram-se ainda mais membros de “Al-Qaeda” (dos quais se falou muitíssimo menos que dos da ETA). Em 12 de Março informava-se que agora mesmo o exército EUA está a realizar operações em Algéria contra as brigadas salafistas, que têm membros residentes em Grã Bretanha, França e Espanha. O massacre de Madrid tivo lugar no dia 20 Muharram 1425 no calendário religioso islâmico (de base lunar, não solar), exactamente no aniversário islâmico das grandes manifestações em Espanha e todo o mundo contra a invasão de Iraque (23 Março 2003, isto é, 20 Muharram 1424). Curiosamente, o vídeo de Abu Dukhan Al-Afgani (“Pai do Fume, O Afegão”; Gebel Abu Dukhan é o nome duma montanha em Egipto) que reivindica o atentado, refere-se a um aniversário cristão (“Dous anos e meio depois” do 11 S), o qual faz duvidar do carácter fundamentalista religioso dos autores, da verossimilhança do vídeo, ou de ambas cousas. Em qualquer caso, ao dia seguinte do massacre, milhões de pessoas saíam de novo à rua no Estado Espanhol contra o terrorismo, quer dizer, contra a guerra. Dous dias depois, as eleições espanholas forçavam um novo governo.

As circunstâncias políticas dos países da “aliança” também merecem comentário. Parece que, pouco antes dos atentados, o Partido Popular estava a perder pontos e até a maioria absoluta. Mas para nada estava assegurada tal vitória do PSOE. Por sua parte, o Partido Republicano dos EUA já começara a sua campanha eleitoral capitalizando a mensagem antiterrorista até com imagens do remoto 11 de Setembro 2001. Mas existe também a impressão de que pode ganhar o candidato democrata, John Kerry. Portanto, de cumprir-se alguns prognósticos, sem o atentado de Madrid poderíamos encontrar-nos com um binómio Kerry-Rajoy, não já com o tandem Bush-Aznar. E Blair está também debilitado. Bush representa a possibilidade duma nova intervenção em oriente médio (Irão, Síria) polo controle dos recursos energéticos. Kerry pode significar um hiato táctico na campanha de terror contra o Golfo Pérsico, um hiato no qual, sem abandonar o Iraque, os interesses se dirijam agora a África Ocidental, com grandes reservas de petróleo ainda sem explorar (sem dúvida um novo “golfo pérsico”, como alguns analistas o chamam, mas sem as turbulências daquele). África pode ser, por uma série de razões, um alvo militar e económico muito mais fácil para o capital ocidental.

A presença de tropas ocidentais em Iraque garante o estabelecimento duma “constituição democrática” que ameaça as famílias oleogárquicas do Golfo. O “efeito dominó” dos ataques de Madrid pode acelerar a retirada de tropas ocidentais de Iraque, uma situação mais aproveitável para o “fundamentalismo islâmico” (quer dizer, os oligarcas sauditas, “Bin Laden” incluído). Certo, a possível presença de tropas conjuntas da ONU no Iraque não elimina totalmente o risco de ataques em países ocidentais. Mas é possível que a nova constituição definitiva (?) que surgir das eleições em Iraque (não antes de finais de 2004) tenha muito pouco a ver com a provisória actual. Em todo o caso, uma “democracia” no Iraque debilitaria a autocracia saudita, por exemplo, e certos opressivos valores do “Islão” em que se escuda a sua forma de dominação.

A tragédia de Madrid e o resultado eleitoral em Espanha podem precipitar uma reconfiguração das peças na guerra económica internacional. A retirada das tropas espanholas poderia relaxar a ameaça de mais atentados em território espanhol: simplesmente, o terror é uma táctica, não um estado permanente de cousas. Mas é claro que outra parte beneficiada é “Al-Qaeda”. O ataque demonstra que, quando se vulneram flagrantemente as regras da guerra santa entre as grandes famílias económicas (uma vulneração que começou muito antes do ataque do 11 S 2001, que pode ser interpretado como uma advertência perante um plano já pré-desenhado dos EUA para invadir o Afeganistão) pode haver terríveis consequências. A capacidade de pressão do “terrorismo islâmico” é, neste sentido, muito grande. O petróleo está fundamentalmente sob os “seus” territórios, nos “seus” países. Os interesses de “Al-Qaeda” não são só recuperar os “seus” territórios (todo o Islão!, incluindo o Iraque) para reestabelecer um regime teocrático medieval, mas também ter bons clientes petroleiros entre os países industrializados: a China, cliente de Irã; Europa e Rússia, clientes do Iraque; EUA, cliente de Arábia Saudita. Donos do seu petróleo, os oligarcas poderiam negociar mais facilmente com uma Europa mais dócil militarmente (Alemanha, França, uma Espanha reincorporada, uma Rússia de Putin) do que o fazem com o ávido eixo anglo-saxão. E a sua mensagem é que, se a voracidade do grande capital industrial de Ocidente deseja este petróleo, agora que só restam tão poucas décadas dele, deve aprender a pedi-lo e a negociá-lo, sobretudo quando as famílias oligárquicas da região têm de garantir também a sua distribuição para os próprios interesses da sua classe. O capital industrial americano, por exemplo, deverá diversificar os seus alvos de “segurança energética” (algo explícito, além, nas próprias recomendações dos think-tanks conservadores americanos), olhando para a África e para a América do Sul. Por isso, espero atinar com a hipótese de que “França” ou “Alemanha” não são objectivos de “Al-Qaeda” na altura. E espero que esteja errada a hipótese de que sim que o são “Grã Bretanha”, “Itália”, “Polónia”, “EUA” e “Austrália”, estes dous últimos, com próximas eleições em finais de 2004.

Com a invasão de Iraque, o sector hegemónico do capital espanhol (“Aznar”) apontou-se a uma viragem arriscada: favorecer-se dos EUA para as contratas petroleiras em Iraque, e talvez para a exploração do possível petróleo das Ilhas Canárias e do seguro petróleo frente à costa do Sara Ocidental, calculando que dentro do clube de Europa não poderia competir com economias mais fortes polo reparto dos recursos. Numa ocasião, dantes da invasão de Iraque, Aznar disse-lhe a Zapatero no parlamento: “Se você estivesse no meu lugar, faria o mesmo”. O apoio de “Espanha” aos “EUA” era, portanto, uma questão de Estado: de assegurar-se o acesso aos decrescentes recursos por décadas por vir. Essa política está a fracassar tragicamente, com milhares de mortes no Iraque, Marrocos, Turquia, Espanha. Agora o relativamente modesto capital industrial espanhol deveria restaurar alianças com o europeu, sem pretensões de grandeza económica, e com muita cautela perante os actuais e futuros detentores do petróleo mundial.

Mas provavelmente ainda restem muitas décadas de tragédia: até que dure o petróleo. No entanto, como sempre, será a gente de toda parte quem continuará a pagar o piche com sangue.

Aquelarre

Publicado no Semanário Transmontano • No Portal Galego da Língua

Depois da Grande Finale eleitoral de hoje, há jogo o domingo em España. Eu vou jogar, vou votar, vou introduzir entintadas papeletas num féretro pequeno donde sai o fumo dos ausentes. São féretros que cheiram a Iraque, Palestina. Levam as letras de Alá em tinta de petróleo. Os versículos do Al-Corão chegam à tua casa em recolhidas papeletas. Cada profeta canta as suas virtudes na única Língua do universo. São todos enormes ídolos masculinos, representados sem imagens, representados por palavras sagradas. Vou votar no dia 23 do mês de Muharram do ano 1425 após a Hégira do profeta, no sonoro 14-M 2004 após a Morte do profeta, que era o mesmo ser monstruoso. Vou votar contra mim próprio, pois cada partido ao que vote é contra mim próprio, cada brigada de Abu Hafs Al-Masri reencarnada em brigada eleitoral, ou viceversa, que são todos o mesmo ser monstruoso, com várias cabeças comparáveis e uma única devoração unánime. Vou votar a parte desse monstro, aquele que ainda não me devore a ilha de utopia que sobrevive no meu centro. Vou votar contra a palavra, com o absoluto silêncio dos altivos vencidos, vou votar na silenciosa língua portuguesa que hoje representa por puro acaso o mar dessa inútil utopia: vou votar sem língua, como as alimárias primitivas. No dia 23 do primeiro mês de Muharram quando Mohammed se expulsou a si próprio da Mecca como um Cristo do deserto para maior glória da vesânia, vou alimentar orgulhoso as filas do silêncio, orgulhoso da inútil resistência. Porque não quero ser esse dia ainda mais resto de mim próprio. Vou votar em preto, em piche e sangue, que são as duas cores das entranhas dos seres primitivos. E essa noite celebrarei com ânsia o banquete das cifras, e trocarei sons guturais com os outros amigos derrotados, e celebraremos o aquelarre, e esperaremos pacientes outra guerra refugiados debaixo dos tanques que são as casas, as garagens clandestinas, onde naufraga o amor, o sexo, que são o mesmo prelúdio da morte. E serei feliz, como hoje, como todos os seres primitivos. Aberta a boca ao alimento, enfrente do ecrã e dos pálios, aberta a boca enorme ao alimento.

Do Iraque a São Tomé: Preparando uma longa resistência

1. A crise energética mundial

Temo-me que este texto poderia ter sido escrito há anos (talvez décadas), ou poderá ser ré-escrito no futuro por vir. O projecto de controlo dos recursos energéticos mundiais polas oligarquias ocidentais -sobretudo as que só tangencialmente se podem chamar “dos Estados Unidos”, pois as principais Raças que dividem o mundo são a classe e o género, não a nação– é logicamente longo, detalhado, cuidadoso, consciente, sério e evidentemente responsável. Ao longo da história, nenhum grupo dominante deixou de preservar por todos os meios possíveis os seus interesses já não para eles próprios, mas para os seus descendentes e herdeiros sociais. A iminente escassez dos recursos energéticos pesados é uma evidência tão clara que só uma cegueira colectiva pode levar a subsumir os motivos de muitas “guerras” actuais sob escusas ideológicas. Diversas fontes indicam que, ao ritmo actual de produção petrolífera, e para as reservas que se conhecem, ao planeta lhe restam uns 50 anos de petróleo. As reservas dos EUA durarão 10 anos; as do Reino Unido, 5. As de Arábia Saudita, mais de 100. Mas, em toda lógica, uma vez acabadas as reservas num lugar, e com o crescimento económico exponencial, a produção dos jacimentos restantes deverá aumentar, e esses 100 anos da Arábia Saudita ficarão em menos. Mesmo se se acharem novos jacimentos e se melhorarem as técnicas de extracção (na altura aproximadamente a metade do petróleo é desaproveitado no processo), estamos a falar só de décadas (não séculos) de reservas. Nas páginas excelentemente documentadas de Planetforlife (http://planetforlife.com/OilPeak.htm ) mostra-se como a curva de reservas mundiais de petróleo e gás descerá a partir de 2010, e em 2050 as reservas estarão à altura, aproximadamente, das de 1965:

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Mas, reparemos, as necessidades energéticas mundiais em 2050 serão muitíssimo maiores do que em 1965! Estes são arrepiantes factos, não uma alucinação dos ideólogos da conspiração. O horizonte da “segurança energética”, como o discurso económico conservador o denomina, está muito próximo: a escassez de petróleo atingirá, se não os meninhos de agora, sim os seus filhos. Planetforlife situa este horizonte em 100 anos: “Um mundo sem petróleo não é o futuro que imaginam a maioria dos americanos, mas é um facto. Precisa-se uma visão de longo prazo: sobre 100 anos”. “Longo prazo”, cem anos? 100, 70, 50 anos, pouco importa: isso não é nada na história duma classe. Quantos séculos durou a nobreza feudal? E quantos poucos levamos de capitalismo industrial?

No massacre de Cosova e Jugoslávia não transparentaram tão claramente os interesses económicos, também conectados dalguma maneira ao acesso ao petróleo de Ásia Central. Mas, no rosário de simulacros cada vez mais sofisticados em que consiste o imperialismo militar ocidental, o capital chegou ao seu mais alto grau de transparente cinismo. O necessário consenso popular constrói-se agora polo reconhecimento explícito das causas das invasões militares. Enquanto na segunda guerra do Golfo, perpetrada polo pai de Bush simplesmente como representante da óleo-garquia americana, o motivo explícito era a “libertação” dum país (Kuwait) patentemente invadido polo exército doutro tirano, nesta terceira “guerra” de Iraque que continua, as conexões com os interesses económicos saem à luz da maneira mais evidente.

Ignoram-se ainda as intenções exactas da atrocidade das Torres Gémeas de Nova Iorque. Sabe-se que os fundos para essas acções vinham da Arábia Saudita, e que o entramado principal que suporta a metáfora de “Ben Laden” é também a Arábia Saudita, país extraterrestre no seu ordenamento jurídico e na coalescência entre a religião, o estado, a classe e a enorme família dos Saud, e paradigma do fascismo petro-monárquico. Sob o chão expoliado polo estado de Arábia Saudita acha-se a maior reserva de petróleo do mundo. Sob o chão expoliado polo sempre militar estado de Iraque acha-se a segunda. A economia dos EUA depende na altura num 54% de petróleo estrangeiro. Em 25 anos (se ainda há mundo) dependerá num 70%. O panorama é apavorante, não nos enganemos. Um pergunta-se em que medida se podia sentir de pressionada a oligarquia saudita sabendo que era a principal fornecedora do seu regime aliado americano. Até quando poderiam continuar a subministrar petróleo? E quanto restaria para eles próprios, para a perpetuação da sua casta? Embora pareça irónico, tanto o ataque de Nova Iorque como a conquista de Iraque para a libertação das suas grandes reservas de petróleo resultam positivos para Arábia Saudita: no jogo do capitalismo, o melhor que podes ter é um bom competidor, que será o novo petróleo de Iraque quando saia maciçamente ao mercado, agora pago em dólares. Voltará a baixar o euro.

2. O novo cenário de África Ocidental

Quanto à visão do actual regime norte-americano, a sua lógica não tem fissuras. É o pensamento conservador de sentido comum mais enraizado nas masculinas hierarquias familiares: Há escassez de arroz entre os vizinhos do teu prédio. Se tu tens mais poder, e observas que o teu vizinho tem mais arroz, mas vende-lhe-lo (em euros, não em dólares) aos outros vizinhos (Europa), por acaso não entrarás na sua casa, capturarás o chefe de família que os curdos escondem drogado num zulo e apropriarás-te do arroz para a tua família? Não quererás que os netos da tua casta continuem a manter os teus privilégios, para o qual devem comer desse arroz? E não considerarás que é injusto esse reparto desigual do arroz no teu mundo? Substitua-se arroz por petróleo, e vizinho por Iraque, e obtemos o panorama.

Mas o panorama continua. Outro vizinho com muito arroz é Irão, que o vende sobretudo à China. Também haverá que entrar dalguma maneira na sua casa (com cuidado, porque a China é nuclear e espreita) para que no-lo “venda” a nós (que casualidade que um membro do clã Bush é alto cargo num importante Comité de relações sino-americanas). E mais tarde ou mais cedo haverá que controlar Síria. E, logo, haverá que ir procurando o arroz dos outros vizinhos ainda pobres, quase desconhecidos, que ignoram que têm grandes recursos nas suas alazenas fechadas: o ocidente africano, por exemplo, novo “teatro” da expansão militar norte-americana. Informes dos conservadores Programa para África do Center for Strategic & International Studies dos EUA ou do grupo AOPIG (African Oil Policy Initiative Group) do Institute for Advanced Strategic and Political Studies, baseado em Israel mas com actuação também nos EUA, falam explicitamente da necessária “diversificação” das fontes de energia dos EUA, por “segurança energética”, e do carácter estratégico de África e África Ocidental especialmente (ver p.ex. “U.S. Oil Stakes in West Africa“, por Jessica Krueger). Outras fontes falam da possibilidade dum novo Golfo Pérsico em África em termos de reservas. O petróleo do ocidente africano, de bastante boa qualidade, é mais ligeiro e mais barato de transportar aos EUA. Além, a maioria acha-se sob a plataforma continental, não na terra firme, que é sempre motivo de conflito. Em África não há grandes exércitos que poderiam molestar. Há, sim, “corrupção” e lutas “tribais” que convém destacar, para impor a necessidade de certa ordem e estabilidade, com as quais a maquinaria capitalista funciona melhor. Em troca da intervenção americana em África Ocidental, e de bons acordos comerciais para a “ajuda” na exploração deste petróleo, estabelecerão-se regimes democráticos “estáveis”, desenvolverão-se minimamente as comunicações internas, e impulsará-se um sistema de ensino “universal” e “democrático” comparável ao que sofremos em Ocidente, requerimento ineludível para o disciplinamento ideológico e para a reprodução da classe política. Polos hoteis de luxo dos países de África Ocidental pululam de cada vez mais executivos americanos do petróleo, procurando acordos para um futuro próximo. Obviamente, precisará-se estabelecer também bases americanas de controlo e para treinamento militar para os caducos exércitos africanos. Depois, haverá que “modernizar” os exércitos africanos com armamento pesado: haverá que lhe-lo vender em troca de petróleo. Esta “diversificação energética” reduzirá também a dependência dos EUA do petróleo de zonas “geo-estratégicas” conflituosas, como Oriente Médio.Um claro exemplo de como isto já se está a cumprir encontra-se no acontecido em São Tomé e Príncipe. Um informe da AOPIG de Janeiro de 2002 para a administração Bush falava explicitamente de

“Declarar o Golfo de Guiné área de “interesse vital” para os EUA; estabelecer um sub comando regional semelhante ao US Forces Korea; esse sub-comando regional deveria considerar decissivamente o estabelecimento duma base regional, possivelmente nas ilhas de São Tomé e Príncipe“.

Apenas sete meses mais tarde, em Agosto de 2002, o presidente eleito de São Tomé e Príncipe, Fradique de Menezes, um rico homem de negócios, anuncia planos para estabelecer uma base naval dos EUA no país. Em Outubro de 2002 De Menezes substitui o primeiro ministro Gabriel Costa, do Movimento para a Libertação de São Tomé e Príncipe, a quem meses antes encarregara formar governo por o MLSTP ser o partido mais votado. Em Julho de 2003, um golpe de estado militar com elementos de antigos combatentes depõe De Menezes e o seu governo sob acusações de corrupção e passividade perante a injustiça social. Após uma semana de negociações e conversas entre a facção golpista, o embaixador dos EUA Kenneth P. Moorefield e representantes de Nigéria, Gabão e outros países, De Menezes é restituído na presidência. Moorefield, um condecorado militar texano que lutou no Vietname, fora delegado comercial em Venezuela durante o mandato de Bush pai, e tivera outros cargos diplomáticos. Em Novembro 2003, Moorefield anuncia que o exército dos EUA colaborará com a “reestruturação” do exército são-tomense. Embora São Tomé e Príncipe ainda não explorou uma gota de petróleo, espera-se que a extracção comece em 2007. As companhias ExxonMobil, ChevronTexaco, Royal/Dutch Shell e TotalFinaElf têm indicado interesse nas explorações. Ao meter as mãos também em São Tomé e Príncipe, os EUA quer previr a possibilidade deste estado cair na órbita da mais poderosa Nigéria (com quem compartilha a exploração do petróleo da zona), sob crescente influência islámica.

3. O discurso e os factos

Mas, porque o petróleo? Se os maiores recursos energéticos mundiais ainda por explorar estão no gás natural, porque ainda o carácter estratégico do petróleo? Cada vez se está a utilizar mais o gás natural e o gás em estado liquado (que ocupa 600 vezes menos que o natural –melhor para o transporte– mas que é muito mais perigoso de manipular). Sectores crescentes da economia capitalista (telecomunicações, informática) podem se reconverter a outras fontes energéticas, até a solar. Mas a indústria pesada não é reconvertível não: precisa de fuel, de derivados do petróleo. E a indústria pesada (a do aço, por exemplo) é a que fabrica, entre outras cousas, as armas que se empregam na conquista dos territórios onde se acha o petróleo para fabricar as armas. É também com maquinaria pesada que se fabricam muitos outros bens de consumo: precisa-se petróleo. O círculo vicioso é interminável.

Portanto, não se prevê no futuro imediato saída a esta lógica do grande capital industrial, do que Chomsky chama o “complexo militar-industrial”. Parte desta lógica é transparentemente articulada no discurso das oligarquias industriais (os EUA, Europa, Japão e outros países). Os think-tanks ultra-conservadores norte-americanos, que nutrem o pensamento dos “falcões” do Pentágono (muitos deles filhos, por certo, de judéus liberais que sofreram o nazismo ou o exílio), expressam as metas com uma clareza que não precisa tradução. O Project for the New American Century (Projecto para o Novo Século Americano), ao que pertenciam o intrigante Dick Cheney e Wolfowitz, elaborou em Setembro de 2000 (antes das Torres Gémeas!) o informe Rebuilding America’s Defenses (“Reconstruindo a Defesa Americana” http://www.newamericancentury.org/RebuildingAmericasDefenses.pdf ) que explicita sem lugar a dúvidas o lugar militar dos novos EUA no mundo:

«O liderado global de América (sic), e o seu papel como garantia da paz actual entre os grandes poderes, depende da segurança da pátria americana; da preservação dum equilíbrio favorável de poder em Europa, no Oriente Médio e a região circundante produtora de energia, e no Leste asiático; e da estabilidade geral do sistema internacional dos estados nacionais relativamente aos terroristas, ao crime organizado, e a outros “actores não estatais”».

Em breve: não estamos a falar só de interesses pontuais tácticos (eleitorais ou de hegemonia cultural), mas duma estratégia geral de colonização (num recente artigo em EL PAÍS, Carlos Taibo desmonta o mito da “globalização” económica e caracteriza o processo actual como de pura americanização), envolvida, sim, numa nauseabunda retórica cristã megalómana e messiánica, comparável à dos sionistas, os fanáticos islâmicos ou os fundamentalistas hindus, mas que não é mais do que retórica. E o que contam são os factos: as armas, não as metáforas. Seria ingénuo pensar que as actuais elites industriais e as petromonarquias árabes não planificam a longo prazo o futuro das suas castas, sobretudo quando este futuro está tão próximo. Para eles, trata-se duma questão de sobrevivência.

Não tento psicologizar nem personalizar: cumpre entender esta lógica para tratá-la como uma verdadeira encruzilhada económica e política global. Não compartilhar (naturalmente) o modelo económico capitalista e lutar por outro(s) não resolve o dilema energético. As diferenças entre o Capital da “velha Europa” e o dos EUA neste assunto são de táctica, não de filosofia geral. Portanto, muitas das futuras guerras, invasões, massacres e outras violações do triste “direito internacional” serão de novo uma função da tensão entre os blocos económicos, e das oportunidades pontuais dos seus regimes. Por exemplo, a decisão de intervir proximamente em Síria ou no Irão de uma maneira ou outra dependerá de se não é mais rendível intervir, por exemplo, no Chad, no Sudão, ou em Nigéria, onde “lutas tribais” (dizem as notícias periodicamente) obstaculizam a produção petrolífera. Esta dinâmica poderá ter o hiato duma administração americana do partido Democrata (mas, lembremos, foi Clinton também quem em 16 Dezembro 1998 ordenou atacar objectivos civis de Iraque), ou de outros dirigentes republicanos que representem interesses doutras famílias económicas. Mas a lógica é imparável, e os detalhes do processo são contingentes. Por exemplo, o ex-candidato democrata Al Gore também tem interesses na Occidental Oil, que passa um importante gasoduto por Colômbia. Colômbia, portanto (sob a escusa da guerrilha terrorista e do narcotráfico) poderá ser mais um próximo objectivo. Devemos por isso estar alertes aos avisos retóricos dos dirigentes dos regimes económicos ocidentais contra os países do “terrorismo”, simplesmente porque esse discurso pode dar dicas sobre os possíveis lugares de intervenção próxima: a legitimação da barbárie precisa do anúncio prévio às massas. As frequentes viragens na delimitação do “eixo do mal” internacional podem expressar interesses tácticos cambiantes: poucas semanas depois de Líbia deixar de pertencer ao “eixo do mal” por “pregar-se” à condição de não produzir “armas de destruição em massa”, a ministra espanhola Ana Palacio visita o ditador Gaddafi. Repsol já tem contratas em Iraque. Mais petróleo, é a guerra. O mesmo se pode dizer sobre os cambiantes apoios de regimes políticos e partidos a determinadas “causas” ou “povos”, oprimidos ou não.

4. Uma longa resistência

Em resumo: devemos estar preparados para uma longa resistência, uma resistência que pode durar toda uma vida. E aqui o dilema está em se é possível ainda proclamar a utopia e fazê-la compatível com o protesto pedestre. É evidente que os estados assentes em territórios que, por pura coincidência, possuem o petróleo, não têm o direito legítimo de fazer o que queiram com um recurso que é de todo o planeta. Os povos que ali vivem, sim, têm o direito e a obriga de administrá-lo, mas há que economizá-lo e reparti-lo. A utopia é que, se compreendéssemos que estamos no mesmo barco que afunde, fariam-se desnecessários os estados fragmentados, perante a iminência do desastre (económico, ecológico, sanitário, humano). A realidade é, porém, que o desastre ainda é selectivo, e igual que se matam ratos que poluem os “nossos” esgotos, se é necessário exterminam-se colectivos inteiros que se interpõem no “nosso” labor de latrocínio.

Por isso, a alternativa é procurar negociar os termos do privilégio de classe sobre o petróleo. As organizações internacionais, partidos, grupos de pressão, ou o próprio Foro Social Mundial devem tentar negociar no âmbito mundial e local, nos mais altos níveis e instâncias, os termos e condições em que se pode efectuar o controlo de classe dos recursos. Desde a resistência anti-colonial deve procurar-se a interlocução sobre uma politica energética mundial que evite os genocídios e o império militar, e devem explorar-se com inteligência as fissuras naqueles regimes económicos (a “velha e caduca Europa”, por exemplo) que ofereçam outras “soluções” internacionais, igualmente antidemocráticas por capitalistas, mas menos sanguentas. A resistência humana em favor duma nova sociedade será longa, muito longa (e sem garantias de que nunca vaia dar frutos!). Poderá desaparecer George W. Bush do panorama mundial, sujeito a contingências eleitorais. Poderá oscilar Europa entre períodos mais negros e mais grises. Mas o projecto de apropriação dos recursos por parte do capital não tem volta atrás. E, dentro do ódio ideológico que lhe professemos às oligarquias, uma resistência o mais ampla e organizada possível deve tentar compreender a lógica delas para tentarmos minimizar o sangue, para tentarmos erradicar o massacre como método. Afinal, só se trata de conjurarmos o cinismo: porque aqui em Ocidente reside a resistência privilegiada, a quem seguramente nunca lhe cortarão a luz dos computadores enquanto haja um iraquiano ou um nigeriano a quem voar em pedaços para garantirmos o oleoduto que nos nutre.

Um casamento irreal

Publicado no Semanário Transmontano on-line, secção Crónicas da Galiza, 3 Novembro 2003

É notícia que o príncipe de Espanha, Felipe de Borbón, acaba de anunciar o seu próximo casamento com a jornalista Letizia Ortiz. Entrado o século XXI, o povo continua a ver-se sujeito a cerimónias medievais, adereçadas mediaticamente com o bombardeamento humanitário dos telejornais, magazines, e outros subprodutos. Entre os absurdos desta situação política e social está a necessária aprovação deste futuro casamento polas Cortes espanholas (as câmaras do Congresso e o Senado). O epígrafe 4 do artigo 57 do Título II da Constitución Española diz (intraduzo, porque as leis espanholas, espanholas devem ficar, não distorcidas polo falacioso exercício de pretender fazê-las galegas, bascas ou catalãs a traduzi-las): “4. Aquellas personas que teniendo derecho a la sucesión en el trono contrajeren matrimonio contra la expresa prohibición del Rey y de las Cortes Generales, quedarán excluídas en la sucesión a la Corona por si y sus descendientes”. Quer dizer, se as Cortes espanholas não aprovarem este casamento, Felipe de Borbón não poderia ser rei de Espanha quando Juan Carlos morrer. Mas a hipótese é impensável. E, contudo, outro rei ou reina sofreríamos.

Mas, que lhe deu a monarquia, esta monarquia, qualquer monarquia, à Galiza, a qualquer dos países do reino? Ignoro tanto a história política da Galiza como a de Espanha, é um dos meus problemas mentais. Mas, como amostra, dos últimos fotogramas que mais ficam na minha retina é o do actual rei Juan Carlos a descer ex-machina à praia totalmente petroleada de Mugia, quando do inacabável desastre do Prestige, com os seus impecáveis sapatos pagos por nós, a fazer-se a foto enquanto criticava os políticos que se faziam a foto. Pura propaganda monárquica e direitista. Porque, não esqueçamos, o rei é o Chefe do Estado, do mesmo estado que leva décadas a mostrar negligência, desprezo e esquecimento polo bem-estar das gentes da Galiza. E o rei é o Chefe de Todos os Exércitos, dos mesmos exércitos que tardaram semanas em baixar a limpar o piche das nossas praias mas tardaram dous dias em ir a Iraque a matar humanitariamente ou repartir esmola ocidental a um povo que deveria ser deixado em paz. Portanto, o rei não é nem pode ser neutral: nem este, nem o vindeiro, nem nenhum. A monarquia é um jacobino resíduo sexista, classista e espanholista, num país de países envenenado por Gran Hermano. Porque, por qual razão que não for primitiva se herda patrilinearmente a representação política, o controlo de todos os exércitos, o privilégio de sancionar as leis, de nomear o presidente do governo eleito polo parlamento, etc. etc.? A monarquia é o maior obstáculo para o raciocínio humano numa Espanha politicamente esclerótica.

E um parlamento inteiro de 350 pessoas terá de se pronunciar, de uma maneira ou outra, sobre se o sangue azul de Felipe se pode mesclar ou não com o sangue vermelho de Letizia! Se podem ou não os amantes legitimamente misturar os seus orgânicos humores nas noites em que os seus exércitos continuem a ocupar humanitariamente qualquer país! Será interessante ver que posição política sobre esta erótica ligação (ir)real tomam no parlamento espanhol os (poucos) representantes do nosso republicano Bloque (sic) Nacionalista Galego.

Mas dizem as boas línguas que entre os inconfessados planos políticos deste principinho azul Felipe estaria, quando herdar na coroa, renunciar e submeter a monarquia a referendo. Ou algo assim. Seria o acto mais inteligente da sua vida. Espero viver para vê-lo, agora que o povo está desactivado para botar directamente a monarquia aos caimães do esquecimento, que é o que merece. Sim, seria inteligente, sobretudo porque Felipe poderia ganhar o referendo! Mas já sabemos que a inteligência está renhida com o Poder. E a Galiza, se na altura ainda existe, continuará a ter rei para um tempinho. Até anda outro nobre chamado de Bragança por aí a fazer-lhe as beiras à Galiza, como se um só pretendente não fosse suficiente. Vaites, vaites!, como enxotamos nós os maus agoiros. Saúde e república –diz o colega António Gil–, que é uma forma algo menos cavernícola de oprimir-nos.