O direito a sermos dominados pola Língua

Publicado no Semanário Transmontano, 30 Setembro 2003

Pouco se sabe em geral nesse lugar que por convenção chamamos Portugal do que acontece em matéria de língua(s) (e de muitas outras cousas) nessoutro lugar que por convenção chamamos a Galiza: refiro-me à parte da Galiza na altura submetida (como todos os países naturais) aos efeitos dum Estado, o Reino de España, em cujo centro mora um enorme eñe imperial. Na realidade, as cousas da língua na Galiza são tanto muito complicadas como muito singelas. Tentarei resumi-las pobremente, para ver o comum no respeitante ao papel da língua na vida diária.

É sabido, isso sim, que na Galiza se falam dous idiomas. Do espanhol, nem direi muito: é uma forma de espanhol que não se pode identificar com o falado na Andaluzia ou na Bolívia, mas que, na mente de muitos (esse prodígio de catalogação da realidade), é “o mesmo”. Da outra e primeira língua da Galiza, o português –que coloco em segundo lugar simplesmente para poder estender-me mais–, direi quase o mesmo: o português galego não se pode identificar plenamente com o alentejano ou o carioca; por isso (e aqui vem a curiosa diferença), na mente de muitos é “outra cousa”, “outra língua”.

Qual é a fonte de tal divergência no tratamento destas duas línguas na Galiza? (a própria, que é o português, e a historicamente alheia e agora socialmente dominante, que é o espanhol). Que faz o Estado espanhol para impor tal distinção nas mentes? E que não faz o Estado português para restaurar o equilíbrio na visão das línguas na Galiza?

Simplesmente, o Estado espanhol impõe sobre nós as letras: a palavra escrita, a cultura escrita, o sistema educativo em espanhol… enfim, a ignorância do próprio como método. Por meio do sistema educativo e doutros dispositivos criam-se os contrastes entre os falares “regionais” galegos (periféricos, quase atávicos, perdidos num recanto dessa tristíssima piel de toro, e portanto “tolerados” como curiosidade) e a letra impressa espanhola, que da sua ortografia até ao discurso vem embebida de ânsias nacionais espanholas, quer dizer, coloniais.

Mas, por acaso não é isto o que faz o Estado português com os falares dos seus súbditos? Não impõe o “ão” onde se diz o “om”, o “o” onde se pronuncia “ou”, o “v” onde se realiza o “b”, o “também não” onde existe o “tampouco”? Por acaso não cria o Estado português miragem de unidade da mesma maneira? Sim, e não. Portugal estabelece estas diferenças (sempre de classe) entre falares e escrita, e portanto entre grupos sociais, sobre e contra a sua própria língua, o qual não deixa de ser um mecanismo de dominação dos estados tão comum que se torna, por obediência, em direito dos cidadãos ocidentais a serem correctamente disciplinados na Língua.

É isto exactamente, nem mais nem menos, o que queremos muitos galegos e galegas (provavelmente muitos mais do que se pensa): que a nossa língua escrita, a que nos divide e classifica como sábios ou parvos, como pobres ou ricos, seja o mesmo instrumento que têm outros países de língua comum. Não queremos escrever (ou falar) o galego em espanhol: queremos o direito a sermos dominados, como qualquer país ocidental normal, pola Língua própria, que no nosso caso é a portuguesa. E nesta matéria Portugal inibe-se porque cai do outro lado dum rio inexistente. Má sorte, ou má política de estado?

Se as cousas fossem normais na Galiza, nem este textinho seria necessário: falaríamos dos assuntos que têm importância.

Razões ocultas?: Iraque, o euro, Espanha e o Sara Ocidental

Publicado em A Nosa Terra

São sabidas bastantes das causas para este ataque do regime dos EUA sobre o território e os recursos desse país agora chamado Iraque. Também, do apoio do governo do Reino Unido a esta agressão. Menos entendida é, porém, a decisão do governo espanhol, até nas próprias filas do Partido Popular. O cisma entre a direita francesa e a direita estadunidense quanto à política bélica internacional (representadas nas posturas respectivas de Chirac e de Bush) também surpreende. Há alguns factos para mim significativos desta guerra que nos poderiam dar pistas para compreender uma complexa situação.

Facto número 1: O dólar e o euro. Em Novembro de 2000, Iraque adoptou o euro como moeda de troco para a venda de petróleo. Naquela altura, o euro valia 80 centavos de dólar. Hoje, vale sobre 105, uma revalorização considerável. Ou, com outras palavras, o dólar depreciou-se. Isto foi uma aposta do regime iraquiano polo euro, aposta que lhes estava a sair bem, e que com o final do bloqueio económico sairia-lhes ainda melhor. As petroleiras americanas temem que esta viragem do “petrodólar” ao “petroeuro” se poda estender a toda a OPEP, especificamente a Irão primeiro. Significativamente, a intervenção no Iraque é levada a cabo por dous países sem euro (EUA e RU), mas oposta polos governos das principais economias do euro, França e Alemanha.

Facto número 2: Alasca: Recentemente o Senado EUA rejeitou começar as prospecções petroleiras na grande reserva natural de Alasca. O voto republicano foi fundamental para esta surpreendente decisão. Decidir não utilizar o próprio petróleo significa que há mais aí fora, mais barato de conseguir. Iraque é um desses lugares.

Facto número 3: As “razões de Estado” de Aznar. De todo o discurso e contradiscurso entre o governo espanhol e a oposição política (especificamente o PSOE), a mim pessoalmente surpreenderam-me dous factos: a) Em mais duma ocasião (uma vez Aznar, outra vez Arenas), o governo interpelou cripticamente ao Partido Socialista sobre a sua oposição à guerra dizendo-lhes: “Se vocês estivessem no poder estariam fazendo o mesmo que nós”. Não houvo réplica nem tentativa de esclarecimento por parte do PSOE. Isto é destacável na medida em que a linha entre governos defensores e opositores desta guerra não segue linhas partidistas “esquerda/direita”. Porque deveria a “esquerda” do PSOE ter a mesma postura do que a “direita” do PP se aquele estivesse no poder? Deve haver poderosas razões que desconhecemos. b) O secretário geral do PP de Galiza, Palmou, numa entrevista na Cadena SER o domingo 23 disse que “Deve haver razões de estado” que Aznar sabe e nós não. O mistério sobre estas afirmações de destacados membros do PP, e do silêncio do PSOE, esvoaça sobre a operação de extermínio em Iraque.

Facto número 4: O Sara Ocidental, o grande ausente. Surpreende também o silêncio do governo espanhol, e especificamente da carteira de Exteriores, sobre o problema do Sara Ocidental. Em Março 31 deve adoptar-se uma (outra) resolução sobre a situação do Sara. E Espanha está temporariamente representada no Conselho de Segurança da ONU. James Baker, comissionado especial da ONU, e ex-secretário de Estado dos EUA, quem representa os interesses do governo (portanto, das oligarquias) desse país, pode estar mudando a sua posição anterior sobre a autodeterminação do Sara. Baker estava conectado também a interesses petroleiros. É possível que a administração EUA queira apoiar agora uma solução “intermédia” que conceda soberania talvez só à parte sul do Sara, enquanto a norte ficaria sob administração de Marrocos. Isto poderia não ser à partida aceitável para o Frente Polisário, mas ao parecer tampouco o Polisário estaria em condições de recomeçar a luta armada, e no Sul poderia formar-se um estado independente suficientemente auto-sustentável. Porque, que acontece nas zonas norte e sul do Sara Ocidental? No norte, estão os fosfatos. No sul (nas águas jurisdicionais correspondentes à não reconhecida República Árabe Sarauí Democrática) estão a fazer-se explorações petrolíferas por várias companhias, entre elas uma australiana (governo que apoia a guerra do Iraque). Os seus informes iniciais indicam que há petróleo comercializável. Também há uma concessão do governo marroquino de 2001 à companhia francesa TotalFinaElf e outra à estadunidense Kerr-McGee para a prospecção e comercialização do petróleo que se encontrasse. Mas expertos legais de vários países consultados pola União Europeia coincidem que um novo governo saído dum referendo no Sara não teria porque respeitar os acordos contraídos por Marrocos, ocupante ilegítimo do Sara Ocidental.

E como podem encaixar estes factos, então? Que se lhe perde à direita económica espanhola na guerra de Iraque? Um cenário possível é o seguinte:

1) O controlo ao acesso e aos preços do petróleo do Iraque por parte de petroleiras EUA daria-lhe às óleo-garquias estadounidense e à grande indústria pesada que depende dele (entre elas, a indústria do aço e portanto a armamentística) vantagens substanciais sobre as de outras zonas, nomeadamente Europa. São precisamente estes sectores os que não se podem reconverter facilmente a outras fontes energéticas. Por outra parte, esvaeceria-se o perigo da “eurização” do petróleo. O grande capital americano estaria em condições de repartir as reservas petroleiras ora no seu próprio benefício (sem ter que explorar as próprias), ora para países industrializados selectos (Espanha, por exemplo), ora para países em subdesenvolvimento onde se precisa a criação de capacidade aquisitiva para criar mercado. Durante muitas décadas a vir, as oligarquias EUA e algumas ocidentais estariam em condições ainda mais claras de decidir o destino económico de grande parte do planeta. O acesso ao petróleo do Iraque favoreceria à “economia” espanhola (quer dizer, ao capital), frente à francesa e alemã, maiores competidores para os EUA do que Espanha. Significativamente, os governos de “países menores” europeus apoiam os EUA.

2) Claramente, a administração EUA não precisa do governo de Aznar nem do PP para os propósitos imperialistas do capital. Mas a aliança com “Espanha” ajudou-lhe ao governo EUA a criar o cisma com os governos francês e alemão. Que mais obtém “Espanha” em troco disto?: A defesa dos “seus” interesses económicos no Sara Ocidental. E a situação especial que se dá agora, e não há alguns anos, é que Espanha está no Conselho de Segurança da ONU, uma circunstância que entre alguns sectores independentistas sarauís é vista como uma “grande oportunidade” para “Espanha pagar a sua dívida histórica”. Portanto, o cisma entre França e EUA/Espanha a respeito de Iraque estaria em paralelo com o seu cisma a respeito do Sara (França continua a apoiar a actual anexação por Marrocos, e um regime de “autonomia” para o Sara).

O petróleo seria a principal e quase única fonte económica do novo estado sarauí, suficiente para o seu desenvolvimento. Um novo estado saraui poderia rescindir os acordos de exploração petroleira às companhias francesas e conceder-lhe-las a petroleiras americanas. Uma recente informação da BBC de 4 Março 2003 afirma que “Agora as reservas de petróleo do país tornaram-se já um factor nesta luta quando as companhias petroleiras estadunidenses, francesas e australianas começam a informar dos seus primeiros achados”. E, significativamente, outra informação da BBC tomada de Le Quotidian d’Oran de 8 Fev. 2003 diz que: “É de destacar que os espanhóis se alinharam sem reservas com Washington relativamente ao assunto de Iraque. Portanto, os americanos poderiam pedir-lhe a Madrid que fosse menos ‘rígido’ no tema do Sara Ocidental, com a promessa de que os seus interesses serão tidos em conta“. Que significam estas expressões?: “Ser menos rígido” significa aceitar e promover na ONU o plano de Baker sobre a independência da parte Sul do Sara. “Ter em conta os interesses de Madrid” significa que “Espanha” levaria uma parte do pastel dos recursos energéticos do novo Sara. “Os interesses” também pode significar a pesca. Por enquanto é “França” a que perderia com tudo isto, e, em menor medida, “Alemanha” (quem também tem um projecto de exploração de energia eólica em toda a costa ocidental de Marrocos e o Sara).

Em resumo: O governo espanhol e José María Aznar obteriam do seu apoio à administração EUA na invasão de Iraque, além doutras cousas que nem sabemos: 1) Acesso a petróleo iraquiano, sem dúvida. 2) Prestígio internacional pola sua defesa, desde o Conselho de Segurança da ONU, duma solução intermédia para os sarauís promovida por Baker-EUA, alinhando-se de novo com os EUA mas sem romper os vínculos com Marrocos (que conservaria o norte do Sara). E 3) Mantimento dos “interesses de Espanha” (os das petroleiras espanholas também?) no novo foco geo-estratégico mundial da África Ocidental. Tudo isto significa que qualquer governo espanhol (PP ou PSOE), por pressões do grande capital e por defesa destes “interesses”, provavelmente teria agido igual a respeito da guerra do Iraque, como a misteriosa mensagem de Aznar sugere: “Vocês os socialistas fariam o mesmo se estivessem no poder”.

E não sou analista político, nem economista, e tudo isto, claro, é bastante especulativo. A situação é mais complexa. A resolução da ONU deste 31 de Março pode pospor-se mais uma vez. O tempo dirá, quando o tema do Sara Ocidental saia de novo à luz pública, e quando se veja se o governo resultante da imperial conquista do Iraque retorna ao dólar para vender o seu petróleo.

(Algumas fontes: http://groups.yahoo.com/group/Sahara-Update/message/1082
http://groups.yahoo.com/group/Sahara-Update/message/1063
http//www.rebelion.org/imperio/040303clark.pdf)

O PNLG: Um desenho fechado à partida

Publicado em Tempos Novos • Em Vieiros

O PNLG parte da Língua Nacional Espanhola para manter a variedade regional “galego” em níveis mínimos como recurso simbólico e político. Na relação entre custos e possíveis benefícios, o PNLG -claramente tecnocrático- apropria sem pudor o gasto termo “normalización”, enquanto foca o sociolinguístico em termos administrativos, segmentando-o em âmbitos das Conselharias. Não é possível intervir com a crítica num desenho tão fechado à partida. A única alternativa é a definitiva naturalização social da língua portuguesa na Galiza, que é a nossa numa variedade totalmente legítima. A naturalização consiste na produtividade real da língua na vida social até ao ponto da desideologização explícita. Umas necessárias novas elites sociais deveriam abordar na intervenção linguística (sempre um projecto reformista de classe) três grandes questões: (1) Reversão decidida da maciça perda intergeracional do idioma, (2) enraizamento social da consciência da unidade linguística galego-portuguesa-brasileira, e (3) galego falado e portanto português escrito correctos como veículo dominante dos médios e do ensino, para as elites reproduzirem a miragem da igualdade democrática a meio da Língua. Esse é o desenho duma Língua Nacional. A meta (1) requer fortes incentivos e redes sociais jovens. A (2), Propaganda e troca cultural. A (3), dinheiro, docentes e (sub)produtos escritos. O consenso com o campo hegemónico nestes pontos é inviável: o único sensato é procurar uma nova hegemonia por vias políticas.

Carta de chapapote a Manuel Fraga Iribarne

Publicado no Portal Galego da Língua • Em Renovação núm. 14 • Em Areanegra

Sr. Manuel Fraga Iribarne:

Sou súbdito seu. Estivem prestes a lhe enviar um pedaço de chapapote dentro dum envelope, anónimo, obviamente. Direi-lhe porquê anónimo: Primeiro, o Sr. nunca receberia o chapapote, interceptado polos seus serviços. Segundo, o Sr. poderia actuar até judicialmente contra mim, ou os serviços do estado, que é o seu, poderiam se encarregar de registar ainda mais um dado nos extensos arquivos negros, como o piche, que o Sr. se encarrega de manter. O Sr. tem uma longa trajectória no controlo do Estado. Afinal, decidim não enviar-lhe o chapapote, mas escrever-lhe esta carta, que nunca lerá.

O Chapapote, Sr. Fraga Iribarne, é um símbolo da sua trajectória, da sua vida, do negrume dos seus muitos actos contra a História. Afinal, reiteram nestes dias os marinheiros, o mar sempre devolve o que não é dele. A História é como o mar: também devolve o que não lhe pertence. Hoje o Chapapote é o lixo histórico com que você, Sr. Fraga Iribarne, foi poluindo este país e também Espanha. O Chapapote é signo da insolência da sua casta. Não será preciso que lhe lembre, nem que lembre à pouca gente que leia isto, em que consiste esta insolência. Fraga Iribarne é o seu duplo apelido: é o que sempre o definiu, o do lacaio do Estado que se banhou desafiando o resíduo nuclear e instaurando a Propaganda como método. O Chapapote é o símbolo do seu nepotismo cacical, com o qual infectou o campo da Galiza prometendo esmolas enquanto desarticulava conscientemente o tecido produtivo. Com o Chapapote compra você a mente dos sul-americanos de origem galega, os mesmos que são comprados polo Chapapote doutros governantes. O Chapapote representa a sua arrogância ao desprezar durante décadas as palavras da gente. Sobre o Chapapote foi construída a sua casa e será erigida a vindeira cidade faraónica que levará o seu duplo apelido, e com o Chapapote rasgou você, Sr. Fraga Iribarne, uma falaciosa trama de autoestradas para os rápidos automóveis que se nutrem do Chapapote universal. Para você um voto valeu sempre um metro de monstruoso Chapapote dissimulado em alcatrão de vila a vila para cortar o país, sim, como aquela famosa navalhada à terra que se denunciava no outro franquismo. Os velhos, como eu (já levo quarenta e quatro anos de domínio sob os seus e sob os que são como os seus) lembramos tão bem como você essa profecia cumprida dos perigosos radicais dos 70, quando você, tentando inutilmente ser o cadáver de Franco, se negava até ao ridículo regime autonómico que sofremos. O sangue que saiu dos operários bascos que matou a sua palavra era de Chapapote. De Chapapote está feito o selo de lacre da bíblica Constitución Española que rege as suas noites e os seus dias de faisães. Sr. Fraga Iribarne: você inaugura dia a dia o Chapapote em todos os lugares da Galiza. O barco que se afundou, cevado de Chapapote do capital, é o símbolo do seu féretro político.

Mas não pense você, Fraga Iribarne, que o acuso pessoalmente de nada, nem sequer de nadar no Chapapote dos seus actos: Você é tão insignificante para o projecto ignominioso do Capital como eu o sou para o seu combate. Você passará às letras enciclopédicas do Chapapote como um simples lacaio da anti-história, esse processo de morte que sempre foi contra os humanos. Nem sequer é você um oligarca, Fraga Iribarne: é um ser irreal mantido polo exército da miséria sobre um esqueleto de Chapapote. Nem pudo nunca você emular a nitidez estética dos grandes ditadores, dos verdadeiros oligarcas. Os actos mais importantes da sua vida, pense-o bem, foram um jogo de dominó e uma frase totalmente atrapalhada. Tente você pensar que grande estadista passou à história por construir estradas de chapapote, torres telefónicas e albergues rurais. É você um fantasma de si próprio que nem merece a demissão como escusa. E a História, que tem muita força, saberá deixar-lhe continuar o seu rumo de manipulações, roubos e mentiras, o seu triste périplo pola terra, até que passe tempo e o seu corpo se afunde, como se afundará o meu, que felizmente vou, com muita outra gente, num barco diferente.

Não procure outras causas, não finja outras explicações para os seus actos, Fraga Iribarne: Você sabe o quê são as forças materiais da História, esse desejo e essa vontade de total igualdade que contém a mente humana. E você sabe também qual é o braço armado da miséria, o que quer matar a mente da humanidade, e elegeu sempre posicionar-se aí, contra o mundo, do lado do roubo e a lobotomia como métodos. Todos os do seu grupo de classe elegeram o mesmo, e muitos fantasmas políticos doutros grupos também. A sua classe é a simples e triste gerente do Chapapote do mundo, mas você sabe que o verdadeiro centro está alhures, nas enormes fábricas de morte de Ocidente, nos intestinos metálicos do monstro onde a sua classe cacique nem seria recebida. Poderá você sonhar às vezes com imortalizar a sua efígie nalgum dos corredores subterrâneos onde novas promoções dos legionários do euro pudessem admirá-la, mas na verdade essas galerias só estão ladeadas por transparentes urnas onde se adoram mísseis, fardos de heroína afegã e turvos instrumentos de tortura sexual, como tudo o que nos causa dor. Nas entranhas do monstro urde-se o contrabando universal da miséria. Esse é o Projecto, e esse foi sempre o seu projecto, Fraga Iribarne: o roubo da matéria, do trabalho, dos corpos e das mentes como método. Porque esse foi sempre o único projecto do Capital, que existe e não mudou desde as origens. E para esse ingente e odioso plano você será esquecido, como eu o serei e o será este texto. Você, Fraga Iribarne, é apenas uma molesta incidência.

Portanto, durma tranquilo, e sobretudo para dormir melhor não deixe de pensar que toda a gente está errada, e que você é Importante. Porque a resposta é fácil, Fraga Iribarne: A História (que não verá você nem verá a minha geração) tem uma força enorme e é capaz de criar monstros de Chapapote como símbolos para que ressuscite a consciência. E cada mente do planeta que cultive dentro o mapa da utopia será uma prova do seu fracasso, Fraga Iribarne, do irrisório fracasso da sua classe.

Atenciosamente, sempre desejando-lhe que respire:

Celso Alvarez Cáccamo

Dizer o intocável

Enviado a A Nosa Terra, não publicado • Publicado no Portal Galego da Língua

As catástrofes e crises colectivas oferecem-nos, infelizmente, muitos motivos para reflectirmos sobre a linguagem. Levo um mês observando e registrando o discurso público sobre a agressão económica e política a este país causada polo desastre do Prestige, sobretudo nos médios de comunicação, e o que observo confirma-me nas teses de Pierre Bourdieu sobre o carácter construtor e dominador do Discurso. Muitas das minhas observações, suponho, são de senso comum, e nem se comentam por óbvias: por exemplo, a coerente insolência desses locutores legítimos da televisão espanhola a pronunciarem em espanhol os topónimos “Muksía”, “Lákse” ou, como não, “La Korúña”. Aqui o exercício de apropriação simbólica não pode ser mais evidente: “Muxía” e “Laxe” são palavras espanholas, pois pertencem a uma das “lenguas españolas” consagradas na sua Constitución. A pronúncia dos “x” por esse locutor é a correcta, as outras são dialectais.

Mais ricos em significados são os contrastes simbólicos e sociais entre o português de muitos marinheiros e o espanhol dos locutores da TVG, variante regional do espanhol da TVE. Bourdieu destaca que a legitimação duma nova língua de autoridade não consiste apenas na sua regularização formal, mas, sobretudo, na geração de novos discursos com novos vocabulários e novos universos conceptuais para representar o mundo social. A Língua Espanhola que se está a normalizar na Galiza sob duas variedades formais gera o discurso democrático da Modernidade, do Estado, da Eficácia, do Voluntariado, da Responsabilidade Cívica. Em programas de televisão sobre o desastre do Prestige mostra-se nos intervalos propaganda oficial sobre a segurança no trabalho no mar: barcos limpos, grandes e totalmente equipados. A voz que nos fala, em espanhol ou galego-espanhol, é um acento grave e masculino, regular, profundo, sério e (como não), ceceante como España. Os discursos de ministros, jornalistas e científicos baralham cifras sobre ajudas macroeconómicas, cifras sobre graus de toxicidade e viscosidade do “fuel-óleo”, sobre profundidades submarinas. Por contra, o discurso galego-português de marinheiros e mariscadoras fala em termos quotidianos dos ganapães, os trueiros, as redes de almofadas caseiras, o Monstro do chapapote, a necessidade de comer ou emigrar. Eufemismo e materialismo associam-se assim correlativamente com duas cosmovisões de classe intrinsecamente antagónicas, com duas linguagens e duas línguas irreconciliáveis no espaço deste Estado, em definitivo com dous projectos sociais em conflito.

Contudo, os protocolos da tolerância ocidental permitem um certo grau de crítica a esse próprio Discurso que tenta tornar a agressão económica e social sistemática em imponderável “natural”, como no caso dos temporais que estragam vilas mal condicionadas, como no caso das epidemias de vacas loucas causadas pola cobiça económica, como no caso dos terramotos vinculados a monstruosas barragens antiecológicas. As fendas que permite o Discurso são cousas como a utilização pública da acusação de “MENTIREIROS”, a própria petição de “demissão” (que, não paradoxalmente, legitima os governantes como os nossos governantes), ou os jogos de palavras com “bigote” (sic) e “chapapote”, como se o que caracterizasse o totalitarismo fosse o pêlo facial. A personalização das culpas da catástrofe não ajuda para a compreensão das suas causas e para o seu combate. Sabemos também, por exemplo, da rápida apropriação por parte da oligarquia política do lema Nunca Mais. Tentam esvaziá-lo de conteúdo, como com toda a imaginação popular, e agora há que lutar para destinar-lhe novos sentidos, ligar esse Nunca Mais a outro projecto social e económico desafiante e potencialmente emancipador. O Poder sabe bem o quê são e como são as armas do Discurso.

Mas as grandes palavras ausentes de toda esta confrontação social são a palavra rei, a palavra monarquia, o nome próprio Juan Carlos de Bourbon. Eis o imenso tabu que nos sobrevoa como uma imensa maré negra discursiva, obturando os coídos da consciência. Avonda com cartografar brevemente a colonial conduta do rei de España (e, quando escrevo estas linhas, do seu filho) contra as suas palavras na sua visita a Muksía: Manchou de piche os seus sapatos pagos também por nós, para fazer-se a foto enquanto criticava os que se faziam a foto. Veu como representante dum Estado que é na realidade miserável, um longo fracasso histórico que desde há décadas os governantes espanhóis tentam paliar em Europa. Mas no quadrículo do televisor a imagem era outra: o Estado engrandece-se polo zoom preciso dos jornalistas lacaios do Discurso focando o rosto real afectado por tanto sofrimento nos seus domínios. Logo, a cena televisiva elegida para ré-legitimar um chefe de estado colonial é, de novo, a do cidadão ou cidadã “popular” que louva o Rei e o venera nataliciamente como se fosse o quarto Melchior ou Gaspar. O Chefe do Estado espanhol desceu ex-machina, como no teatro clássico espanhol, para citar-nos Fuenteovejuna, uma referência tão remota para nós (polo menos para mim) como os Ananda Randa ou o mito do Tempo dos Sonhos dos aborígenes australianos. Porque na realidade a mensagem real não ia dirigida a nós: ia dirigida a España, para que, desde abaixo, desde o “pueblo”, desde “los pueblos de España”, chegassem procissões de voluntários e caixas de turrão a demonstrarem a inutilidade do pouco autogoverno da Galiza que ainda se gere desde aqui.

Não lamento intrinsecamente a debilitação desse pedaço de Estado, dessa Xunta desaparecida nas fauces do chapapote espanhol. Só tento destacar que as práticas de auto-organização que contemplamos, como defesa material, estão também ligadas a uma linguagem, uns discursos e uma língua que contêm o potencial da revolta, paralela a este Estado, e portanto contra dele. E que o Intocável, o Inominável, portanto, o adversário histórico desse espírito de revolta, deveria ser já também nomeado e tocado por essas linguagens. Por exemplo: o Reino de España, como não podia ser doutro jeito, “falhou-nos” de novo porque nunca foi concebido para não nos “falhar”. A Juan Carlos de Bourbon, responsável constitucional máximo para as boas e para as más, por essa dignidade que declara ter a realeza deveria dar-lhe vergonha ser Chefe desse Estado.

Por princípio, não posso nem sequer ser republicano, defender qualquer forma de estado. Mas devo constatar que a resistência actual contra o chapapote –símbolo e produto da lei capitalista– é uma forma de república. Quando lhe comentei a um conhecido intelectual independentista na manifestação contra Aznar na Corunha que a consigna deveria ser Juan Carlos, Abdicação, não só Políticos, Demissão, ele tentou desactivar: “Claro que estou de acordo, mas essa não é a questão agora”. Não, o regime monárquico nunca é a Questão. O Discurso fagocita também as elites intelectuais, já o vemos. Mas lembrem os nacionalistas galegos que nunca poderá haver soberania sob um regime e com um Chefe de Todos os Exércitos que, por lealdade constitucional, poderia enviar o mesmo exército que agora está a escarvar nas praias para matar marinheiros independentistas se ao Reino lhe fosse necessário. Isto é constitucionalmente assim de claro, não nos enganemos. Ou é que alguém ainda pensa que a forma do Estado moderno pode ser neutral? O Intocável é agora o rei e a monarquia, uma forma de estado que é essencialmente antidemocrática porque glorifica o privilégio do sangue masculino de família e porque consagra a propriedade privada do Reino e as suas colónias, incluindo as nossas costas infectadas. Digamo-lo, a ver quem escuta, e sobretudo a ver se se entende, para que os partidos que dizem “defender-nos” não defendam em lugar disso os privilégios do autoritarismo monárquico: Nunca Mais. Nunca Mais monarquia capitalista na Galiza. Em nenhuma parte. Sempre preferirei o idealismo das palavras deste tipo a esse “realismo pragmático” dos políticos que, dia a dia, não deixa de ser uma derrota.

A nação das mulheres

Enviado a Faro de Vigo; não publicado

A todas as mulheres assassinadas. Com a minha culpa como homem.
Com desculpas polo meu atrevimento e pola dureza deste escrito

O caçador diminuiu a marcha e detivo o camião poucos metros mais atrás. Sabia que uma fêmea assim, separada da manada, não se devia deixar escapar facilmente. A Lei era clara neste sentido: Qualquer exemplar solto, sem marcar, é propriedade de quem o capture. As fêmeas assustam-se facilmente com o ruído dos motores. Nessa hora da manhã o resto da manada abrevava ou estava ainda por acordar. O caçador desceu do camião e prendeu habilmente a fêmea sem que esta pudesse fazer nada. Botou-na na caixa do camião, amarrou-lhe as patas, fechou as portas rapidamente para apagar os ruídos de queixa da presa. A Lei é explícita neste sentido: O gando sem marcar será propriedade de quem o capture. Às vezes é mais produtivo revender a fêmea ao seu antigo proprietário. As negociações polo preço podem durar meses. Alguns homens caçam a sós, outros ocasionalmente em grupo, quando voltam irmanados dos lugares de encontro e topam com uma fêmea isolada na curva de uma estrada. Baixam do veículo e rodeiam-na, sobem-na, mantêm-na tranquila com suaves vozes aprendidas secularmente para apaziguar animais enquanto se dirigem a um lugar escuro. Outras vezes, o caçador sofre tanto de soidade que precisa utilizar a fêmea sem revendê-la. A noite é demasiado longa num veículo ou alpendre isolado. O caçador tem direito a utilizar o que é seu. Logo do uso sacrifica a fêmea e bota-a ilegalmente entre arbustos. O caçador volta polo alvor à casa. Quando tem sorte, aguarda por ele uma esposa de olhos abertos com um café de amor nas mãos. Quando não, diante do caçador há só um televisor ligado que transmite incessantemente feiras de gando numerado, fortes e formosas fêmeas para o comércio mundial. A Lei é boa e justa para os homens que a votam, a Lei é clara: Os meios públicos devem promover a Economia, o Culto, a Ordem. A Lei é coerente.

Até à hora do sol-pôr o caçador come produtos democráticos enquanto contempla as mostras numeradas das feiras. Vê passar muitas fêmeas fortes e formosas polo ecrã. O caçador súa de soidade. Nas pausas comerciais onde se oferecem mais fêmeas, o caçador dá brilho às suas armas: o laço da palavra, o rifle masculino. Ao cair a noite o caçador está de novo preparado. Fecha a sua cabana. Ou sai despedindo-se levemente de uma esposa de amor sem pentear. O caçador prende o camião, e marcha. Mas hoje está confuso. Leva tantos anos a admirar tantos exemplares numerados fortes e formosos que está confuso. Primeiro precisa percorrer a sós estradas solitárias, e pensar. Pensar, pensar. A Lei é boa, a Lei é clara: Toda fêmea que não tem marca é de quem a caçar. Mas o trabalho não é fácil. Ninguém compreende a imensa tristeza dos caçadores solitários. Por algo a maioria dos homens preferem ser proprietários. De quando em vez um proprietário sacrifica uma fêmea que já não era produtiva, ou que fugira por um injusto instinto, desagradecida de tantos anos de ser alimentada e protegida. Mas as fêmeas fugidas polos arrabaldes sempre deixam um rasto de cheiro que o proprietário reconhece e segue. Afinal, o proprietário alcança a fêmea e sacrifica-a com gasolina para que deixe de fazê-lo sofrer com a sua ausência. O caçador pensa que tal desperdício de fêmeas é injusto. O caçador pensa tudo isto enquanto sulca a planície da estrada, o corredor ladeado por um desfile de fêmeas fortes e formosas para a caça. Já é noite fecha.

A última vez o caçador também botou o cadáver da presa à beira-rua. Ocultou-na entre as sebes, deixou que as alimárias aproveitassem o seu corpo. O caçador está preocupado, a Lei é explícita neste sentido: O cuidado do meio-ambiente é imperativo para a Economia. O abandono de cadáveres utilizados está fortemente castigado. O caçador observa uma Patrulha da Moral Ecológica mais adiante. Os patrulheiros fazem sinais com luzes. O caçador diminui a velocidade. Passa devagar junto a eles. O caçador e os patrulheiros saúdam-se, fitam-se serenos nos olhos. É evidente que os três homens são honrados trabalhadores da Economia. As suas olhadas são limpas. Cada um tem a sua função na manutenção da Ordem. Quando uma fêmea marcada escapa e acaba refugiando-se por cansaço nos Locais da Patrulha Ecológica, os patrulheiros devolvem-na ao seu proprietário. É natural. A Lei é explícita neste sentido: A propriedade privada deve estar sempre vigiada. Então os patrulheiros acompanham a fêmea à casa do proprietário. O proprietário abre-lhes a porta, recolhe agradecido a sua pertença, assina algum Recebim necessário. No televisor do fundo vê-se a Mostra Mundial de Gando. Os patrulheiros e o proprietário trocam cúmplices olhadas perante tanto exemplar forte e formoso. A fêmea recuperada lambe docilmente a mão do proprietário. O caçador pensa tudo isto, pensa, pensa. O caçador sabe que os patrulheiros, os proprietários e ele mesmo trabalham por uma única Ordem, polo mesmo Culto e a mesma Economia. Às vezes o caçador quisera ser proprietário. Às vezes um proprietário também se faz caçador, por não perder uma tradição ou por cansaço da rotina. Às vezes um proprietário aluga as suas fêmeas a caçadores ou a outros proprietários. A Lei e a Economia favorecem esta mobilidade social entre os homens, é necessária. A Ordem é precisa, justa, exacta.

A nação das mulheres é um território imenso que não conhece siglas, nem fronteiras, nem bandeiras, nem dinheiro. É a maior nação do mundo, colonizada, sequestrada, invadida, escravizada, mutilada e assassinada diariamente num inenarrável circo de sangue de tal crueldade que fixo a deus suicidar-se há muito tempo. Cada dia os caçadores matam todos os cérebros do mundo, toda a humanidade, e cada dia a vesânia volta a ressuscitar numa notícia de rádio. Eu sei isto porque sou varão e como tal também levo dentro uma indesejada arma de ódio, e também tenho poder, e dia a dia combato contra um cancro na minha mente que me ordena matar a mente da humanidade, matar a nação das mulheres. E estou convencido que eu também, de maneiras diversas, contra a minha própria vontade, dia a dia contribuo para matar essa imensa nação enquanto luto por deixar de matá-la.

Mas a nação das mulheres erguerá-se contra a loucura e contra o ódio. Pouco a pouco, com a firmeza da razão humana, com a justeza da razão humana, e contra a resistência dos varões, dos estados masculinos e dos escravistas da carne, a nação das mulheres imporá a utopia da igualdade, que é o lugar onde nasceu e aonde deve chegar a humanidade. E cairão os ídolos e desaparecerão os caçadores e as presas, e os proprietários, e aqueles homens monstruosos e miseráveis vagarão sem armas num horrível desterro polos caminhos da mente que agora ainda cheiram a sangue e gasolina e não deixam dormir.

A nação das mulheres não é apenas um nome sonoro para descrever o mundo: é o nome da assembleia humana que leva milénios em jogo. Maldigo a história enquanto aguardo esperançado a que se erga dia a dia a voz universal da igualdade, o reconhecimento definitivo de tanta humilhação e crime, a compensação final por este longo genocídio.

Le Pen, a Esquerda e Tu

Enviado a A Nosa Terra; não publicado • Publicado em NON!

Estes comentários sobre a vitória relativa de Le Pen na França soarão tão velhos a alguns como os princípios que sustentam a minha utopia razoada, esse projecto que nos legou Bourdieu para algo mais que conversas de salão (em Bourdieu, a utopia razoada era um sólido ideal político e social; na maioria dos que agora citam Bourdieu, é uma sonora expressão, como o seu nome, para aquilatar medalhas). O fracasso da “esquerda” e o pretenso fracasso da “direita democrática” frente à pretensa vitória relativa da “ultra-direita” são na realidade a consolidação do projecto de dominação a que ambas facções das classes dominantes levam empurrando o mundo nas últimas décadas. O argumento é singelo, e portanto não faz os quinze minutos de televisão, os pseudo-debates democráticos: O argumento é que uma “esquerda” que se dá a mão com o fascismo económico é cúmplice do fascismo, e uma “esquerda” que não apresenta mais do que retórica esvaziada de conteúdo é a peça fundamental que precisa a “direita democrática” para auto-legitimar-se, “contra o fascismo” que nos invade.

Com efeito, quando a análise política se reduz ao bisbilheio anedótico, quando se comentam as subas e baixas de Le Pen e Chirac, Aznar e Zapatero, Fraga e Beiras (ou Beiras e Rodríguez) como se fossem as subas e baixas da popularidade de Operación Triunfo ou Gran Hermano, o efeito não pode ser outro que o efeito brutal da teoria. A teoria é que todos somos iguais, e que em democracia ganha quem pode porque sempre ganha o povo com o voto. O efeito é que desaparece a utopia política, humana, social e histórica que informou tanto pensamento verdadeiramente criativo e revolucionário durante tantas décadas tão ultrapassadas polo novo escravismo de que somos cúmplices. A teoria e o seu efeito são que os “partidos” se definem por pequeníssimas questões que atingem aspectos marginais da existência: a quantidade de um subsídio de desemprego (não a ignomínia do desemprego nem a ignomínia do trabalho assalariado), a quantidade de semanas em baixa laboral por maternidade (não a função dos filhos como possessão do estado para a reprodução do sistema de segurança), a quantidade de papéis necessários para reclamar a “cidadania” (não o direito a mover-se livremente polo planeta, nem o dever dos estados opressores –todos– a garantirem a permanência na própria terra), e assim por diante.

Quando se ignoram os princípios da utopia razoada, Le Pen é apenas um acidente que reforça, como hemos ver, o grande monstro de €uropa. Le Pen ou Haider são o pretexto, não a ameaça. A ameaça está e continuará a estar dentro da partitocracia enquanto as poucas mentes lúcidas das “esquerdas” sigam a renunciar a um ideal que não lhes custa –sejamos sinceros– nada: Os intelectuais de “primeira” ou “segunda geração”, como os chamou Bourdieu, os “intelectuais orgânicos” gramscianos que ocupam a simbólica cimeira da pirâmide das suas classes respectivas, continuariam a exercer o seu sacerdócio (como já fazem periodicamente Chomsky, Said ou Galeano) com a mesma impunidade de consciência ainda se proclamassem esse resto de integridade política que mantêm, mesmo por nostalgia, no fundo de leituras e escritos progressistas. Onde estão os modelos económicos destes intelectuais, além da sua lógica e veemente oposição aos extermínios? Mas o possibilismo é uma serpe que se acosta contra os corpos dormidos na noite, que penetra o cérebro e o sexo e cresce para romper desde dentro a utopia razoada, que é nossa, da história, não dos seus pretensos salvadores.

A utopia razoada consiste em algo tão singelo que toda a maquinaria económica das sociedades de classes leva já mais de cem anos tentando destruir com milionárias videotecas de sorrisos e frases fáceis. A utopia razoada, o lugar nos mapas do socialismo de que falou Oscar Wilde, é simplesmente o convencimento íntimo e consequente de que a matéria e as forças do planeta são de todas as pessoas, e de que qualquer distribuição injusta e desigual dessa matéria atenta contra o próprio carácter da humanidade. Ninguém negaria, desde a razão (não desde o medo ou desde o possibilismo) de que o projecto de igualdade é o único razoável para a espécie humana e as demais. Eis o enorme potencial que tanto as “direitas” como as “esquerdas” institucionais se empenham em destruir constantemente para o seu próprio benefício.

Foram os chamados “governos socialistas” das cidades os que, no Estado, começaram a desmantelar o público e a aumentar a desigualdade com falsos booms económicos há um par de décadas. São os actuais governos das vilas e cidades os que também exercem contra a gente o mandato divino que lhes dá o voto. As palavras igualdade, revolução de classe, socialismo, desapareceram totalmente do discurso público. Na invasiva circulação do discurso legítimo, a menção de “classe” produz na intelectualidade aborregada e na plebe igualmente aborregada uma ladaínha de pseudo-explicações, escusas sobre a “dificuldade actual de definir as classes”, como para negar a evidência da injusta miséria. Agora que morreu Gramsci, que nasceu o pós-modernismo com Bill Gates, que o planeta se faz “tão pequeno” que compramos Kit-Kats com um euro pintado de flores de Finlândia ou águias alemãs, a classe é uma pesada lage conceptual que a esquerdinha não quer levar acima como um molesto resto de ideologia. Tudo se reduz a “direitos democráticos”, a “reconhecimento cultural”, à “integração das minorias”. Neste programado conflito entre conflitos, os interesses económicos confrontam tristes jornaleiras de Polónia contra tristes jornaleiros de Marrocos nos campos sudistas de fresas congeladas, confrontam máfias drogaditas de ucránios com máfias drogaditas de ciganos, moros contra cristãos e dépores contra barças no televisor congénito da mente. Tudo responde ao mesmo esquema infantil que inventou Abraxas e deu tanto fruto no concurso televisivo da política.

Por isso desce dos ceus Le Pen como sintoma, como polícia mau contra Chirac o polícia bom, ambos votados polos próprios torturados do euro. Aqui, dizem os listos, a “ultra-direita” não existe. Claro: está debaixo do uniforme de Jaime Pita, Pérez Varela ou Fraga Iribarne. A “direita democrática” leva o fascismo ideológico por debaixo porque por fora veste menos. E a “esquerda democrática”, o novo “nacionalismo da cidadania” que suplanta a força das múltiplas autodeterminações (o direito humano a ser oprimido como um queira) com um ambíguo direito ao boletim de identidade, dá-se a mão sem ideologia com a hidra reaccionária, que é (sem ironia) o “Pobo Galego” que a vota.

Companheiras e companheiros da “esquerda”: cada vez que matades a utopia razoada, que silenciades a necessidade indómita da total igualdade, aqui e alhures, nasce um Le Pen e ganha um Chirac: duas faces da mesma mo€da, que não deixa de ser a vo$$a. E a minha, que tenho o privilégio de escrevê-lo.

Da aberração ao quotidiano

Publicado em Lusografia.org • Na revista Em Movimento do Movimento Defesa da Língua, com variações

O quê dizer sobre a língua galego-portuguesa moderna na Galiza que não esteja já dito? Na realidade, as etiquetas “língua”, “escrita”, “lusofonia” ou “lusografia” reúnem tal quantidade de práticas sociais diversas (práticas de classe) que qualquer tentativa de descrição — e ainda mais de “defesa” — de uma ou outra não pode ser senão uma enorme redução, com objectivos também de classe. Por um vago princípio fujo de qualquer posicionamento que coloque a “língua” por cima das pessoas. A glorificação das línguas cobra tais dimensões entre as elites cultas de um país que só se pode entender como o seu exercício de manutenção da sua posição de classe. Argumentará-se (ou deveria escrever, lusograficamente, argumentar-se-á?; porque?) que dentro dos campos “lusógrafos” há variadas posições de classe, assim como dentro do campo “isolacionista” da Galiza na actualidade. Mas o que constitui estes grupos, estas empresas de actividade humana, é a sua penetração e intervenção na variedade da linguagem para reduzi-la a totem, símbolo, moeda de troco, e todas estas cousas à vez.

Infelizmente, a questão é mais singela que a sua representação social por grupos interessados na Língua como objecto. Tem-se dito tantas vezes e em tantos lugares ainda sem ler que sobejaria repeti-lo: há gente que tem e gente que não tem. Há gente que possui os meios de produção dos bens materiais e simbólicos e gente que não os possui. Não podia ser diferente no caso da língua. Não podia ser diferente na Galiza.

É apenas historicamente contingente que, na altura, a interpretação dominante sobre o idioma na Galiza o situe como um produto e artefacto cultural espanhol, embora sectores reintegracionistas e parte das elites isolacionistas privilegiadas o neguem, e, de boa fé, façam bastante (nunca se pode dizer “tudo o possível”) por resistirem contra as formas de fascismo encabeçadas por grupos e pessoas com nome e apelidos, como Manuel Fraga Iribarne. Podia ter sido de outra maneira: podia ter triunfado certa razão linguística e cultural lá por volta dos 70, ou mesmo depois, ou mesmo antes, pois também não vejo como inerentemente necessário que o projecto nacional espanhol precise de uma concepção puramente isolacionista do galego. Sempre é mais fácil predizer o passado, justificar pós-facto como os eventos foram hegelianamente necessários para este estado de cousas. É mais fácil, mas a profecia do passado é inútil. A situação está a ser assim, isso sim, e esta evidência é suficiente para analisarmos onde estamos e aonde irmos, se esse “mos” existe.

A concepção galego-portuguesa da língua (que reúne etiquetas temporariamente úteis, como “reintegracionismo” ou “lusismo”) não poderá estender-se no imaginário social sem uma séria penetração nas estruturas onde se gere a dominação. E para fazer isto precisará convencer as elites hegemónicas de que estas letras portuguesas que utilizo não são uma ameaça: não uma ameaça para o “Povo” ou o “Pobo”, não, mas para aqueles que constroem o Povo e o Pobo. Se estas elites estivessem dispostas a reconhecerem que o seu domínio sobre as cousas da língua é uma cousa trivial, a cerimónia da construção social de classe poderia tomar outros caminhos. Mas, se predizer o passado é inútil, lembrar o futuro é árduo: não há suficientes instrumentos para interpretarmos os poucos signos presentes acessíveis (signos há muitos, mas resistem-se à análise, portanto não são signos) que nos indiquem o quê vai acontecer no país daqui a dez ou vinte anos em matéria de ideologias linguísticas e práticas orais e escritas. Parece, sim, que desce o número de falantes nativos do galego. Mas também parece que na Galiza se escreve em português mais que nunca, relativamente a outros tempos e relativamente a usos não portugueses (quer dizer, usos isolacionistas galegos). O quê se faz destes factos? Caminhamos face a uma elitização maior da escrita galega na Galiza? Que significado tem isto para uma análise da reprodução de classes?

Obviamente, poderia propor uma alternativa emancipadora de signo muito diferente: uma sociedade essencialmente distinta onde o valor das letras, da alfabetização, da cultura escrita se situasse num nível de intranscendência agora indescritível. Mas não tenho nenhum argumento para justificar que, nessa sociedade, fosse esta concepção galego-portuguesa a mais razoável. Provavelmente nenhuma concepção da língua fosse mais “razoável” do que outra: simplesmente, as visões e práticas da língua aconteceriam. Quando a diversidade das condutas não afectasse à classificação social em ignominiosas escalas, é de supor que o mesmo aconteceria com as práticas da fala e da língua. Nessa hipotética altura, ser “reintegracionista” ou “isolacionista” seria tão pouco transcendente como caminhar mais lento ou mais rápido. Estamos muito longe desse lugar, não por mor da “Língua”, mas dos exércitos e dos santorais do mundo, que matam corpos e mentes e infectam com as suas hierarquias todas as actividades humanas.

Qual é, portanto, a situação actual da “língua” na Galiza? Em que estado de cousas devemos mover-nos? A situação linguística é, simplesmente, mais uma manifestação do controlo social, da divisão, da classificação e ré-classificação sociais. Esta dominação — este contributo da língua para a dominação — não é igual aqui que em outras formações sociais, nem pretendo sugerir isso: entrecruza-se de maneiras específicas com também específicas questões nacionais e de classe, que lhe dão a esta questione della lingua a sua complexidade e até matéria para o ocasional e fátuo brilho intelectual. Mas, essencialmente, na intervenção sobre a língua na Galiza também se trata da colonização da mente e da obtenção de capitais por sectores privilegiados. Reconhecer estes processos no espelho da palavra escrita deveria ser o primeiro passo para combatê-los, até por desídia. E, nesta pequena resistência, qualquer totalização é o pior adversário da razão. É claro que há projectos distintos dentro do campo cultural galego-português, como os há dentro do campo isolacionista. Mas acredito (intuo) estarmos num momento de especial fragilidade, de especial tensão política e intelectual, onde algo que poderíamos chamar “unidade de acção” faz-se um pouco mais importante. Deveria (poderia) ser uma unidade sobre bases amplas, como a clara revindicação da legitimidade, nas proclamas e na prática diária, e como a concessão do “benefício da dúvida” face aquelas posturas com considerável base social que ainda não compartilham o valor totémico da grafia “ã”. Explico-me? Na altura, na Galiza a primeira fronteira simbólica social dessa prática chamada “lusografia” na Galiza, à margem das nossas detalhadas análises (que existem) sobre o valor indéxico da escrita, passa pola aberração visual do “ç” cedilhado (e do “ss” duplo, do “m” final, etc). Como converter, em primeiro lugar, essas aberrações em normalidade quotidiana, dentro da nossa analfabetização maciça, eis uma parte inicial da questione della lingua. Uma parte muito pequena, contudo: infelizmente, “euro” e “cent” escrevem-se igual em toda Europa, e isso também (e sobretudo) é Língua: é O Discurso.

Sobre as circunstâncias da reforma ortográfica: Uma operação política

Publicado no canal Galego.org de Vieiros

Pede-se-me um artigo no qual “analizase as circunstancias en que se produciu o acordo” (sic) ortográfico, baseado numa mensagem que enviei ao Foro aberto sobre esta questão. A minha contribuição ao Foro tinha o título “Clarifiquemos algumas cousas, sim?” Aceito o convite, mas devo precisar o seguinte:

(1) Para compreender as bases políticas, ideológicas e, no fundo, materiais, do conflito sobre o idioma na Galiza (nomeadamente sobre a sua representação escrita), mais do que este textinho ou centos como este é muito mais produtiva a leitura (ou polo menos a consulta) de certas obras, como esta:

Mário J. Herrero Valeiro. 2000. Glotopolítica y genealogía del Poder: El proceso de institucionalización del gallego desde la perspectiva de uma (macro)política de la lengua. Tese de Doutoramento. Departamento de Galego-Português, Francês e Linguística, Universidade da Corunha.

(Para compreender a questão, avonda com ver o título: A tese foi redigida e apresentada em espanhol perante a impossibilidade legal de fazê-lo em galego-português, numa universidade galega. Na mesma universidade apresentaram-se teses em inglês).

Claro que é mais fácil ler a imprensa.

(2) O meu convite a participar em VIEIROS exemplifica (não paradoxalmente) a táctica da invisibilização dos “distintos”. Não é a primeira ocasião em que participo como “distinto”, quando a evidência é que há muitos mais “distintos” com nomes e apelidos, tão “expertos” ou mais do que eu próprio (naturalmente) ou do que muitas das contribuições que repetem e repetem as mesmas obviedades página após página. Mas entenda-se bem que não estou aqui para contribuir ao Debate Nacional — apenas à sua aparência.

Entro em matéria. A formulação da própria petição de Vieiros (que “analizase as circunstancias en que se produciu o acordo”) é interessante. Como deformado linguista, à partida estaria tentado a desmiudar que se entende aqui por “acordo”. O princípio operativo das conversas foi o da exclusão e invisibilização dum sector importante de pessoas, grupos, movimentos, colectivos, activistas, usuários habituais do galego escrito, profissionais, etc. (os que se chamam “reintegracionistas”, os utentes de “português padrão”, e outras faunas) que têm visões “distintas” da representada polos que se reuniram para esta reforma das Normas. Esta exclusão é um facto inegável. Portanto, o processo não cumpre nem as mínimas condições do debate “democrático” (afinal estas cousas votam-se, não é?) na esfera pública para qualquer tema de interesse nacional, tanto do ponto de vista político quanto académico e “científico”. Que cada um(a) julgue como quiser estas condições de partida. E, sobretudo, que lhes confira depois a dimensão e lhes adira a justificação que lhe dite a sua consciência.

Como todas as cousas da língua, as conversas sobre a reforma ortográfica foram uma operação política. Tiveram uma parte de contactos, de condições prévias, e logo de negociações secretas. A minha informação é que duas destas condições, apresentadas pola representação do ILG e aceites polos demais, eram: (1) Que não se questionaria de maneira nenguma o carácter do galego como “lingua propia” independente do português. (2) Que, se antes de as conversas concluírem (ou quase, quem sabe) saía à luz pública informação sobre o processo (por exemplo, na forma dum artigo na imprensa), o ILG abandonaria as negociações (o qual significaria pará-las totalmente). A pessoa que me contou isto (por própria iniciativa: eu nem sabia que existiam as conversas) instou-me, por exemplo, a não enviar nengum artigo jornalístico sobre esta questão (por uma série de razões, resultou que efectivamente afinal nunca dediquei o meu tempo a escrever qualquer cousa sobre o assunto). Contou-me também da composição das comissões (3 membros por cada universidade e 3 polo ILG).

Se não foi assim, que me rectifiquem. Não me perguntem quem me facilitou esta informação nestes termos, porque deverei dizê-lo.

A segunda fase do processo foi uma mui importante campanha mediática preparatória (incluída a campanha de VIEIROS e a de jornais locais leais ao regime). Nessa campanha os sentidos das palavras são distorcidos e apropriados sistematicamente até que os novos sentidos se estabilizam e já todos contentes. Temos muita experiência disto no discurso sobre o “terrorismo”, o “independentismo”, etc., e os procedimentos mediáticos reproduzem-se, porque, como escreveu Foucault num lugar que não lim, os mesmos DISPOSITIVOS de coerção, disciplinamento e exclusão são utilizados por poderes aparentemente diversos, até encontrados. Assim, “concórdia” começou a significar ‘aproximação entre as variantes das Normas vigoradas’. “Mínimos” começou a significar ‘as opções “permitidas”, mas não “recomendadas” das Normas’. A produtiva metaforização bélica não deixou de fazer acto de presença (“AS IRMANDADES DA FALA CONTRAATACAN”, intitula VIEIROS uma das suas notícias). Na propaganda, à falta de possível comprovação por parte dos leitores e do público, as afirmações repetidas são tomadas por verdades de fé. Assim, menciona-se o número cabalístico de “100 especialistas” (muito mais curioso ainda quando se mencionam “100 linguistas”) que estariam por detrás do “acordo”. É difícil saber se a cifra se refere a (a) todos os membros das áreas de “Filoloxías Galega e Portuguesa” (sic) das universidades galegas, mais os membros do ILG; ou (b) todos os membros dos Departamentos universitários correspondentes, que podem incluir outras áreas de conhecimento; ou (c) todos estes mais os membros da ASPG, etc. Sobretudo, é difícil ver o valor da cifra 100 quando não sabemos quantos “especialistas” NÃO apoiariam o acordo: professores reintegracionistas destas ou outras áreas, professores de ensino secundário que por diversas razões (sempre políticas) nunca acederam nem acederão às universidades galegas, etc. E, por último, também não sabemos como estes acordos foram (ou não) referendados polos colectivos implicados. Em votações nas Áreas correspondentes? Por delegação nas comissões de três membros?

Por exemplo, no meu Departamento (“Depto. de Galego-Portugués, Francés e Lingüística” da Univ. da Corunha) a proposta de reforma foi levada a votação como ponto da ordem do dia numa reunião, e aprovada por maioria, com algumas abstenções (entre 3 e 5, não lembro) e um voto em contra, o meu. A minha argumentação na reunião foi que aprovar tal proposta de reforma ortográfica não era competência dum departamento universitário como tal, além, com áreas que não estiveram nunca implicadas nem foram chamadas às conversas, como os/as professores/as de Francês e os/as de Linguística (como eu), e sugerim que a Área implicada (“Filoloxías Galega e Portuguesa”) elaborasse qualquer escrito sobre a proposta como tal área, que o Director do Departamento poderia remitir aonde for necessário nas suas funções de representação. O Director do Departamento argumentou, porém, que, para o acordo ortográfico ir adiante, os negociadores requereram que fosse efectivamente APROVADO por todo o departamento da Univ. da Corunha (ignoro como fizeram nas outras universidades). De maneira que, logo duma longa discussão sobre se procedia ou não pronunciar-se sobre o assunto, na UdC votámos sobre a proposta de reforma ortográfica professores especializados em “Filoloxías Galega e Portuguesa” (sic) (“lingua galega”, “lingua portuguesa”, “literatura galega”, “literatura portuguesa”), “Filoloxía Francesa” (sic) , “Lingüística Xeral” (sic), e representantes de estudantes de Filologia (a representação do PAS, Pessoal de Administração e Serviços, estava ausente). A ambiguidade sobre a quem se refere o número “100 especialistas” continua. E a arbitrariedade de que numa universidade se pronunciassem sobre o acordo professores/as de francês e linguística geral e noutras universidades talvez não, também é difícil de entender.

Em definitivo, frente à CLAREZA da votação adversa da Academia (números de votos com nomes e apelidos), o jogo de cifras dos “100 especialistas” do “acordo” é escorregadiço e bastante irrelevante: como tantos números, só tem uma função propagandística. E assim por diante quanto à campanha mediática.

Finalmente, em toda operação política vem a fase da ofensiva. Inteirado o Povo por fim do que estava a acontecer e o que se vai fazer, a proposta chega ao organismo correspondente. Em impoluto procedimento Democrático (bom, houvo pressões, mas onde não há pressões nas votações, incluídas as que se dão no seio das universidades entre os “especialistas”?), a Academia rejeita a proposta. A Academia deslegitima o ILG, as universidades e a ASPG, e, em “contra-ataque”, estes organismos tentam deslegitimar a Academia. Mas, e se a votação tivesse tido o sentido contrário? Não se estaria a falar agora da “responsabilidade” e do “compromisso” da Academia, composta exactamente polos mesmos membros? Aceitam ou não aceitam os proponentes da reforma atè às suas últimas consequências a legislação que confere à Academia o poder decisório sobre a questão normativa para os usos administrativos do galego? É a Academia uma instituição para a construção nacional ou não o é? Se os votos duns/dumas poucos/as académicos/as (que não todos filólogos/as ou linguistas) valem mais do que as opiniões de “100 especialistas”, porquê seria desejável politicamente que esta instituição LEGITIMASSE desde a sua total discrecionalidade um trabalho “científico” de meses dos que “realmente” sabem da Língua? Por contra, se não devemos generalizar e verdadeiramente existem “académicos bons” que perdem as votações e “académicos maus” que as ganham, por acaso não poderiam existir também “especialistas bons” que por agora perdem a definição comum da língua (os reintegracionistas) e “especialistas maus” que na altura ainda a ganham (os demais)? Ou é ao revês? Ou só se tem a razão (científica, política e histórica) quando se ganha uma votação? As contradições nas posturas dos proponentes da reforma são flagrantes.

Não julgo ter dito nada que a lógica mais comum não poda entender: Se se quer “concórdia” e “acordo” sobre a “Língua”, acorde-se com todos aqueles que “trabalham” por Ela, ainda que estejam errados na sua ignorância reintegracionista (ou a escrevam mal, como eu). Porque, se a Verdade da Língua existe e é revolucionária, afinal o actual jogo das maiorias e das minorias teria o seu correlato nas acções e as decisões dos “especialistas”: a verdade científica (quer dizer, política) imporia-se TAMBÉM sobre os dissidentes, como aconteceu nesta (lógica) “concórdia”. A imensa maioria do Povo Galego já sabe que o galego é uma Língua independente do português e que portanto se deve escrever com letras espanholas, não é? Então, o quê poderia perder a “concórdia”? Morreriam de vergonha os “especialistas” reintegracionistas por estarem errados? Perderiam o seu chisquinho de carisma actual de dissidentes? Talvez. Mas então, que melhor final feliz para esta história? Ou é que ao pior o Povo Galego sairia da liorta pensando diferente? Ou é que, se falasse o Povo (que polo seu infantilismo e imadureza não podia conhecer a existência deste “acordo” pola imprensa), escreveria só espanhol? Ou melhor ainda: não escreveria?

E é que como diz o nosso presidente Pujol, “la pela és la pela”, e é sempre a que se impõe, da mão do Estado, através do conceito de Nação, Naçom, Nazón ou Nación, que che é igual de diferente. Todas estas conexões pelas – Nação – Ortografia, e mais, na obra citada no começo.

As torres gémeas de Kabul

Publicado em A Nosa Terra 1008, 15 Novembro 2001, p. 16 • Em NON! — cultura e intervenção

Regresso dos EUA logo de um mês de sofrer o carbúnculo mental e as rodas desinformativas do Pentágono expostas na CNN e na FOX News, Coca-Cola e Pepsi-Cola respectivas (ou vice-versa) para a nossa induzida sede mediática. A maquinaria económico-informativa desse país tem conquistado o pensamento público. O discurso sobre o “terrorismo” foi sequestrado habilmente polo poder para instaurar o medo e a vigilância mútua, o qual para nós não é nada novo. A consciência crítica é uma ilha esmagadora, e só se encontra na internet (onde aprendo os meus dados) ou na conversa. A CNN produz explícitas circulares internas onde se instrue aos informadores a desactivarem qualquer notícia sobre “danos colaterais” em Afeganistão com expressões do tipo “Porém, os talibã causaram mais de 4.000 mortes no maior atentado da história”, ou “Porém, a responsabilidade última destas mortes recai na rede assassina de Ben Laden” etc. etc. O Pentágono mercou por milhões de dólares os direitos de todas as imagens da região tomadas polo satélite civil Ikonos (muito mais preciso do que os satélites espias), para impedir a sua compra e difusão polas cadeias de TV. A imprensa reproduz fielmente as palavras do governo e infielmente as dos “terroristas”. Aqui (aqui é todo o mundo) também é assim, não nos enganemos: morre mais gente em Rússia ao ano de carbúnculo e EL PAÍS não enche as suas páginas multimédia sobre como não apanhá-lo de uma cabra russa que nos chegasse por correio. Terror, sim: sobretudo o da mentira e o disciplinamento.

O sociólogo dos média Robert McChesney explica como os meios informativos foram de pouco a pouco passando do profissionalismo das primeiras guerras fotogénicas à submissão nesta mal denominada “guerra contra o terrorismo”. Umberto Eco confirma em Der Spiegel as palavras de Berlusconi sobre a “civilização ocidental” frente ao “Islã”, reproduzindo mesmo contra as suas melhores intenções as dicotomias oficiais entre Nós os cristãos velhos e Eles os muçulmanos, que viriam a utilizar as “nossas” escolas. Ninguém comenta que os acontecimentos actuais são resultado directo de a gente acreditar em deus e no mercado. Ortega, Beiras, escutem, por amor desse deus: no capitalismo as eleições sempre se perdem.

Apesar da submissão geral, alguns intelectuais advertem do perigo duma possível e devastadora guerra mundial. Eis o elemento crucial que distingue este episódio do continuado conflito de Oriente Médio e Ásia Central. É evidente que se trata de violência polo controlo económico, do gás e das reservas de petróleo: calculam-se 50.000 milhões de barris em Kazhikstã (superiores aos 30.000 milhões da Arábia Saudi), que deverão ser conduzidos por um oleoduto cujo traçado mais directo passa por um Afeganistão dócil. Também se trata dum combate pola imposição dum dado modelo de “globalização”, e, como sempre, pola sujeição das mentes das pessoas à lógica da morte. Mas o preço a pagar é muito alto, tanto que poderia exceder os cálculos do establishment ocidental. Colin Powell, que orquestrou a Guerra do Golfo, aparece agora como “moderado” tentando impor contenção; por isso mesmo está desaparecido. Uma eventual extensão dos ataques a Iraque (quer dizer, a intensificação dos já vigorados desde há dez anos) poderia ser a escusa que procurasse o outro integrismo económico, o árabe, cuja rede de interesses na região excede toda descrição. Ou o nazismo judéu, que já prometeu responder com armas nucleares se o regime de Iraque atacava Israel com bactérias ou venenos. E no elo pré-tecnológico da cadeia, os anciãos paxtuns que cruzam a inexistente Raia seca desde Paquistão para se unirem aos paxtuns afegãos não o fazem em apoio do regime talibã: fazem-no contra um inimigo genérico, como o fizeram contra os impérios britânico, zarista e soviético, na procura da dignidade e a preservação da sua longa história. Não estou a ser essencialista das identidades, porque aborreço que no seu nome se cometa qualquer guerra, que supõe o máximo culto ao corpo (matar corpos alheios para conservar o próprio). Tento simplesmente explicar porquê atiram velhos fuzis kalaxnikof contra opulentas bombas BLU: sempre a mesma máscara da morte.

Estamos num ponto de inflexão na história da humanidade. Penso sinceramente que aqui o “nós” é pertinente, e não se refere a qualquer entidade nacional ou grupo cultural, como “ocidente” ou “o islã”, essas falácias. Refiro-me aos humanos. Estamos provavelmente no momento mais perigoso desde a invenção do machado de pedra. E não há dous lugares neste duelo, não há duas opções. Às vezes –confesso e admito– nas guerrinhas diárias, há dous lados, sobretudo um o do papel, onde se escrevem cousas de palavras, e outro o das balas, onde se mata totalmente. Mas diante desta guerra só há um lugar possível, uma única opção, a que habita no pensamento ético (marca primordial do humano), a opção que ilumina a nossa utopia razoada. Todo cérebro pode imaginar essa utopia da razão: isso é suficiente para persegui-la. A outra opção, a inconcebível, não é opção: é o vazio. Pode que o vazio atómico não devore todo mundo, e os restantes ressurjam ou ressurjamos após do fungo nuclear dos búnqueres da consciência com mais terror nos olhos e uma ingénua vontade suprema de não repeti-lo. Mas isso mesmo afirmou muita humanidade depois de Nagasaki e Hiroxima, os maiores atentados terroristas da história. E, já vêem: bomba sim, bomba também, a história é uma náusea infame que se repete. É hora de mudá-la, de sequestrar a Deus e os seus sinónimos antes de que nos abrasem a todos nestas torres gémeas de Kabul, neste cárcere de lume onde escrevemos poesia cegada pola burka, onde cozinhamos tristes alimentos e esquecemos, cada vez esquecemos o futuro que levamos na cabeça, por um pouquinho de moedas ou de aplausos.