Todo o pragmatismo, toda a lenteza, todo o possibilismo, todos os atrancos, todos os pactos, todas as liortas, todas as medalhas, todas as demonizações, todos os roubos, todos os insultos, todas as prebendas, todos os populismos, todas as marginações, toda a mediocridade, todas as repressões, todas as exclusões, todas as louvanças, todas as hagiografias, todos os rituais, todas as mentiras, todos os protestos, todos os segredos, todas as pintadas, todos os congressos, todas as discussões, todas as olhadas, todos os esquecimentos, todos os prémios, todas as campanhas, todos os manifestos durante décadas de concorrência entre iluminados pola administração dos resíduos da língua portuguesa na Galiza são profundíssimamente cansativos. Profundíssimamente reiterativos, circulares, endogâmicos, inférteis, aborrecidos, virais, masculinos, diletantes. Já avonda. Já basta. Já está. Morre o mundo e aqui a semearmos letras em campos reduzidos para que paçam vacas de pasta de papel. Deliberadamente lentos perante o abismo. Lentos e deliberadamente anacionais para que nos deglutam as letras doutra monstruosa Patria, sem acento. Pactando a morte em lugar de abraçá-la, obedecê-la. Fingindo resistirmos, uns e outros, que somos os mesmos. Fingindo as palavras, os argumentos, os escritos, os achados, os manuscritos, os provérbios, as partes do carro, os neologismos que ninguém nunca utilizará. Pactando os acentos, os morfemas, as proibições, as contra-senhas. Adorando os adjectivos, os versos, a tinta, os abraços. Contemplando o abismo, a queda iminente, o equilíbrio. Pois: Nada há mais real do que o abismo antes do suicídio. E nada mais doloroso do que a morte lenta. Se afinal vai desaparecer todo germolo de uma monstruosa Pátria, não nos neguemos a um final glorioso, como nos filmes de suicídio. Só há dous caminhos para a Unidade. Um mantém-nos, como hoje, como até agora, no purgatório de uma semi-língua. O outro é acatarmos a Língua plenamente, como esta, adoptá-la, e saltarmos de pés juntos polo abismo. E, enquanto caímos, ao melhor formamos essa monstruosa Pátria que tanta náusea dá e que tanto nos faz combater contra nós mesmos. E ao melhor a queda polo abismo dura mais do que pensávamos e até, enquanto morremos, desfrutamos.
A derrota da sua vitória
A recente reforma das normas escritas da Real Academia Galega para as falas galegas é sem dúvida um ponto de inflexão no conflito linguístico, queirámo-lo ou não. A série de perguntas que nos assalta, porém, é: Um ponto de inflexão para que? Para quem? Há uma vitória e uma derrota? Vitória ou derrota de que e de quem? Futuro melhor ou pior do galego para que ou para quem?
A quantidade de citações, opiniões, manifestos, declarações, textos, posicionamentos e análises que poderíamos aduzir para justificar uma crítica frontal a esta reforma, procedentes do campo do galeguismo cultural, encheria páginas. O denominador comum destes discursos seria que, sem recuperação efectiva da unidade linguística do tronco galego-português, não há futuro para o galego. Porém, nem estes discursos poderiam responder as perguntas anteriores. Porque no meu modesto entender está ainda por explicitar, contudo, qual projecto cultural, linguístico, social e portanto político acompanhava e acompanha todas as proclamas unitaristas, quer dizer, lusistas e reintegracionistas. O projecto do campo hegemónico, declarado ou não, já o conhecemos: É o degredo das falas galegas ao estatuto dum ser linguístico inferior, precário, em constante diagnose, com constantes operações cosméticas mínimas, em situação de sobrevivência constante, enquanto se afasta mais e mais da hipótese de Língua Nacional (e desculpem as maiúsculas, que explicarei) no território onde nascera, há demasiados séculos como para que a inútil nostalgia histórica deva embaçar o nosso realismo.
É evidente que o pacto entre o nacionalismo espanhol e um sector do nacionalismo linguístico galego (BNG, ASPG) nesta reforma significará para os segundos importantes renúncias. Ilegalizadas agora certas práticas escritas, os que as tinham como símbolos deverão deixar de utilizá-las nas suas aulas e publicações, nas aras dum consenso que soa, sabe e cheira a derrota dos nacionalistas. E se soa, sabe e cheira a derrota deles, provavelmente seja uma derrota. Durante anos, alguma intelectualidade e posição política enarvorou hífenes, acentuações portuguesas e outras formas como estandartes dessa essência linguística galego-portuguesa, descafeinada por um possibilismo ortográfico populista. A par da norma institucional, nos liceus e poemas ensinavam-se ou praticavam-se também esses Amínimos@, inserindo-se essas excrescências (Ahistória@, Aamar-te@) como manifestos de resistência. Para nós os lusógrafos, apenas um par de símbolos nunca foram suficientes, certo. Mas o seu uso significava algo, algo ou várias cousas sem dúvida sempre negociáveis, e polo menos significava uma declaração de diferença: estando estes praticantes Adentro@ da Norma, estavam Afora@. Ou isso diziam. Agora ninguém poderá negar que a desaparição por decreto desses símbolos situa este sector do nacionalismo linguístico galego numa difícil situação. Já ninguém deles poderá argumentar que formas como Ahistória@ ou Aamar-te@ são galego. Os nacionalistas defesores do Novo Oficialismo deverão riçar o riço da argumentação para justificarem a legalidade dos Areitores@ mas a ilegalidade dos Aleitores@, a galeguidade da Apuberdade@ frente à estrangeirice das Afaculdades@. Curiosos exercícios pedagógicos e de renúncia. Negociou-se com as palavras da língua como se fossem fichas num jogo de póquer, ou ofertas num tira-puxa de feira semanal. Isto não é grave em si (não essencializo a Língua): o que move à piedade é que se justifique tudo isto na Adocumentação@ do galego, como se a escrita historicamente defeituosa dum idioma fosse um critério científico de peso. Pacto político recoberto de Filologia, isso é o que foi e o que é.
Para nós os lusógrafos, nos nossos diversos graus de analfabetismo (que não fazem mais do que revelar o hipócrita exercício de apropriação da língua, pois ninguém dos analfabetos como eu poderia chegar a publicar um texto numa sociedade linguisticamente normal, quer dizer, onde imperasse a naturalização das hierarquias linguísticas), esta reforma deles tanto não nos afecta como não nos afecta. Se tivéssemos claro o objectivo, poderíamos avaliar se a derrota de certo nacionalismo linguístico galego representa a vitória de outro sector do mesmo campo. Mas, assim como o programa isolacionista é claro desde os começos (e este pacto normativo não é recuo não, mas hábil coopção), e foi respaldado por conivências e votos variados durante décadas, o programa unitarista é, no meu sentir, muito mais incerto.
Para começar, os isolacionistas têm claro que a língua está por construir. Toda a sua prática vai orientada nesse sentido. As absurdas correcções paulatinas à norma, com a incorporação de palavrinhas aqui e lá ao Diccionario Perpetuo de Galicia, lembram as situações militares de assédio, os contextos pré-constitucionais dilatados indefinida e artificialmente para manter o statu quo, as longas Transições Democráticas que só dão como fruto a reprodução do domínio sob outra forma. Para o isolacionismo, a língua que está por construir é, evidentemente, uma variante social e regional do espanhol.
Os reintegracionistas, por contra, dividimo-nos entre quem pensa também que a língua está por construir (mas de outra maneira) e quem pensa que já está construída, diversamente, noutros países, e também aqui, nas margens do sistema. Que este texto poda ser lido fora da Galiza (Portugal, Brasil, Moçambique, até Espanha) com algo de estranhamento polos seus erros e peculiaridades e muito mais de reconhecimento pola sua forma demonstra o segundo: que a língua já está construída e só temos que aprendê-la. Mas que o mesmo texto nem seja lido na Galiza por culpa do alto muro sionista que o isolacionismo está a erguer em todo o mundo da palavra prova, complementarmente, o primeiro: que a construção social da língua portuguesa na Galiza, da língua galego-portuguesa, da língua galega chamada portuguesa, não é apenas um assunto de desejos. Para começar, que um só dos colectivos que compõem o nosso campo, a Associaçom Galega da Língua, se queira erigir em árbitro normativo criador de Língua, embora legítimo projecto, roça a altivez. A vontade reitora da AGAL não supre a evidência da nossa diversidade interna. A assembleia geral do campo linguístico unitarista na Galiza (aquele que sabe que temos uma língua comum a muitos países) ainda está por fazer (ofertas recentes houvo neste sentido, e ainda não calharam). Só um campo efectivamente unificado estará em melhores condições de exercer a interlocução: não uma interlocução vazia para chegarmos a novos pactos por um ridículo acento (não quero pensar como se sentem internamente os bons filólogos nacionalistas Ade mínimos@ que pactaram durante meses e aceitam agora o massacre ortográfico espanhol; eu, com certeza, não gostaria de estar no seu lugar), mas uma interlocução para demonstrarmos que estão em jogo duas concepções tão distintas da língua que só o reconhecimento da posição do outro nos poderá salvar a todos da iminente desfeita.
Se soubéssemos qual é o objectivo do campo unitarista, poderíamos portanto desenhar tácticas orientadas a uma tarefa simples: Que o objecto que não me dá medo chamar Agalego@ se constituísse em Língua Nacional, e é aqui onde retomo as linhas do começo. A Língua Nacional não é necessariamente, embora poda parecê-lo, a língua de uma Nação: é o hierárquico instrumento de poder e de saber, de disciplinamento e de liberdade, de poesia e grosso prosaísmo, de criação, projecção exterior, identificação, cultura, relações sociais, jogos, reflexividade e espontaneidade duma sociedade estatalizada que quer, de uma vez por todas, deixar de gastar enormes energias em decidir como há-de falar e escrever, e começar a distinguir-se internamente e a combater polos espaços sociais mais polo que se diz e escreve que polas letras como se escreve. Tenho a impressão de que o cansaço por esta tarefa introspectiva de desmiudarmos o significado dos simbolinhos escritos não se dá só neste campo unitarista: é um cansaço que se dá também no outro campo, embora se disfarce aí de Redenção Científica. Porque a esquizoglossia que sofremos não serve para exercermos a distinção mútua: Não há maneira de sermos melhores ou piores do que outros como galegos se não escrevemos a mesma língua. A única língua continuará a ser o espanhol, e no seu mercado até os ganhadores actuais são perdedores. Por isso os unitaristas não queremos escrever o espanhol que está a inventar a RAG, mas o nosso português como Língua Nacional. E nas sociedades democráticas, adquirir a Língua Nacional é um direito (um direito que só reproduz a desigualdade, como tantos outros, mas um direito). Quanta mais gente aprenda e pratique esta lógica, quanta mais cresça o campo unitarista, melhor para todos.
Porém, o reconhecimento deste cisma, e da necessidade da unidade para continuarmos a roubar a língua ao inexistente Povo, não é suficiente para qualquer dos dous campos ceder e escrever da outra maneira. Não, a hipótese da cedência total é impossível. Portanto, sem interlocução real dirigida ao reconhecimento, a máquina do movimento perpétuo continuará, continuará a estabelecer no nosso seio duas sociedades de cultura (uma galego-espanhola, outra galego-portuguesa) igualmente distanciadas do Inexistente Povo ágrafo, operaçãotriunfista, alheio a estas letras e às outras, afogado no piche político, votante dos medíocres, cativo da propaganda, envelhecido de mente e de atitude, e profundamente espanhol. Por isso este pactinho normativo é, como sempre, a derrota de quase todos, e a entranhável vitória duns poucos, que com arrogância proclamam o falso fim das diferenças, decretam a Verdade Linguística e repartem privilégios porque, simplesmente, estão a fazer o seu trabalho, que entre todos pagamos porque no-lo ordena a Monarquia.
A língua, a energia e o Povo (Quando o cu é ilegal)
Publicado no Portal Galego da Língua
O processo actual em torno da questão linguística no país demonstra que, felizmente, existe ainda uma energia de resistência e tensão que não podemos desaproveitar caindo em velhos tribalismos e personalismos que só beneficiam o projecto aniquilador de Espanha, palpável e dura realidade diária. A reforma interna das normas da Real Academia Galega para as falas galegas, levada a cabo por uma instituição de duvidosa legitimação social e variada composição, junto com as acções paralelas dos contrários reintegracionistas (acções anteriores e posteriores, pois a dialéctica acção-reacção não vai só numa direcção, como bem aponta o comunicado do grupo Nós-UP sobre a reforma normativa) são só, neste caso, motivo para as minhas reflexões. Seria-me, seria-nos mais fácil simplesmente deslegitimar a iniciativa da RAG, e há muitas razões para isso, a fundamental a exclusão de base de parte do campo cultural, linguístico e social galego. Mas a própria dinâmica da RAG, com os resultados da votação sobre a reforma (por maioria, não unanimidade), e a dinâmica dentro do que alguns damos em chamar “luso-reintegracionismo” (também com as suas diferenças internas) demonstra que a tensão se instaura como a força motriz duma nova fase da naturalização da língua no país. Está claro que os projectos são muito distintos, até essencialmente irreconciliáveis na altura. Mas a crítica legítima aos Outros não pode magicamente eliminar o facto de que nas filas dos dous campos agem fortes vontades sociais com compromissos diversos, com muitos custos pessoais, com variadas agendas, com distintos graus de contradição pessoal, e até com pontos de insuspeitada convergência com o adversário. Pode-se assim detectar, cartografar, um contínuo de sensibilidades a respeito da língua ou da lingua, separadas por um acento mas unidas na verdade polo exercício inerente da apropriação simbólica dela, frente às glorificações muitas vezes propagandísticas da importância do Povo. É curioso mas regular que nesta glorificação se reúnam posições políticas tão diversas como as da certa direita espanholista e as de certa esquerda nacionalista galega. Fugir da altarização do Povo e o Popular –como advertiu repetidamente o ainda desconhecido Bourdieu– é o primeiro passo para compreendermos a nossa posição, a posição social estrutural dos que debatemos nas tribunas de papel ou de pixéis sobre a forma da língua e o seu nome, truque performativo de criação daquilo que, apesar de ser, ainda não é. E esta posição nossa não pode deixar de ser uma posição de privilégio social. É bom que lembremos isto.
É evidente que as lealdades sectoriais, declaradas ou não, continuarão nesta nova fase do conflito linguístico. Um académico como Alonso Montero manifesta que, sem concordar com a reforma da RAG, igualmente a acatará. Desde o chamado reintegracionismo, outros posicionam-se e posicionamo-nos claramente dizendo que não há nada a acatar porque não reconhecemos a legitimidade desta decisão, entre outras razões (ou para alguns) porque essa instituição nos exclui sistematicamente. Não é difícil sair da contradição de não acatar esta legitimidade mas, ao mesmo tempo, contestá-la (por exemplo, com um comunicado unitário) argumentando, como farão alguns, que, bom, afinal de contas se o Poder não nos reconhece como utentes da língua galega (e portanto como interlocutores potenciais na sua construção), no problem porque somos utentes da língua portuguesa, que não tem nada a construir porque já está construída. Essa poderia ser a minha postura pessoal teórica, por exemplo. É uma postura pavera e interessante. Mas este gambito retórico tampouco resolve o problema: é (no meu caso, polo menos) puro nominalismo. Como o deles.
Porque o que é urgentemente necessário é alcançar a ilusão de interlocução mútua que o espanholismo, na sua táctica de fragmentação, nos nega. Não há muito tempo histórico para reverter o processo de assimilação ao espanhol, a desidentificação social crescente (que outros chamariam “globalização”), em definitivo o naufrágio dos restos dessa trajectória cultural e social inaugurada polo menos com a Geração Nós. Em quê medida o oficialismo linguístico está a contribuir para este naufrágio sociolinguístico é algo que só o tempo dirá, e neste sentido a desaparição política de figuras como Manuel Fraga Iribarne será um fito muito revelador. Programaticamente, várias vozes (entre elas, vozes tão divergentes ideologicamente como as de António Gil Hernández, Pilar Garcia Negro, Mário Herrero Valeiro ou eu próprio, ou um artigo recente de Ângelo Canosa no Portal Galego da Língua) levam tempo a afirmar que o projecto deste oficialismo, e o resultado desta política, é simplesmente a normalização do espanhol. Por contra, num artigo de 1998 em Tempos Novos, Henrique Monteagudo mantinha que a “normalización” lhe caíra ao PP como uma “pataca quente” com a qual não soubera o quê fazer. Para outros, como Méndez Ferrín, o principal obstáculo para a “normalización” e consolidação da Norma Vixente (sic) que ele, com patriotismo constitucional, defende, é o próprio BNG com a sua esquizoglossia normativa interna (o quê argumentará Ferrín agora que se consuma o Pacto da Língua entre inimigos tão atrozes como FPG e BNG?). E é de imaginar que a desaparição chapapótica de Fraga Iribarne constituirá um ponto de inflexão na articulação Língua-Política. Eu não ousaria aventurar o quê acontecerá em matéria sócio-linguística quando soframos uma nova configuração político-partidária no país, nestes tempos em que nenhum futuro é já o que era. Mas, no entanto, temos a responsabilidade de assumirmos como bons privilegiados o repto do confronto. As palavras sacerdotais não resolvem nada. Nada decidem sobre a famosa realidade da língua nem sobre o debate cultural as afirmações do actual presidente da Academia de que “o debate está fechado”. As próprias posições contra “o português” ou “os lusistas” de jornais vozeiros ideológicos da direita são sintomas de debilidade, não de força. Portanto, reconheçam estes sectores que o que lhes espera é o crescimento constante do campo “lusista” contrário, e o jogo será mais fácil e transparente.
Mas a interlocução mútua também não se acada magicamente, nem pode proceder por igual de dous (claramente, dous) bandos com recursos tão desiguais. O novo oficialismo linguístico tem a responsabilidade de, fechando filas de unidade de portas para fora (como acontece em toda boa organização político-militar, como os partidos), conceder a alguns dos Outros e Outras o benefício da dúvida e do diálogo: convocando-os, por exemplo, a participar no seu Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega (sic) pré-desenhado para o triunfo do espanhol. Isto de convidar só alguns dos outros chama-se coopção, e, se bem feita, dá bons resultados legitimadores. Se o Novo Oficialismo não faz nem isto, não poderá suportar a pressão da soidade na sua missão construtora e redentora. Os esquerdistas dentro do campo hegemónico nem sequer poderão teorizar sobre o papel da dialéctica, tese-antítese-síntese etc. e volta a começar. E como os unitaristas não vamos desaparecer por envenenamento quando a Xunta aprove estas pequenas modificações da norma, suponho que terão de tratar-nos dalguma maneira.
Por sua (nossa) parte, os adversários luso-reintegracionistas devem (devemos) também continuar a demonstrar unidade tanto nas nossas posições simbólicas quanto no reduzido espaço que compartilhamos, ainda que só seja por mor de perpetuarmos a ilusão do estigma, desse çê çedilhado sangrento na fronte com que acordamos cada manhã de verão intermitente. Esta miragem de unidade é básica em toda batalha. Mas há também que achegar pontes selectivas de falso diálogo aos outros, oferecendo-lhes a alguns a mão à sua em movimento para puxarmos deles para a nossa posição como bons judo-reintegracionistas, como gosta de teorizar o amigo José Ramom Pichel.
Se somos capazes, uns e outros (que somos os mesmos) de enquadrarmos assim a nova fase de construção e destruição do idioma, ora nas aras da Nação, ora da Nación, ora da Internação ou da Inação, ora da inerente liberdade humana e mental de escrevermos como os nossos dedos ou instrumentos nos deixem (eu costumo explicar que, sorry, a minha caneta não tem eñe), estaremos em melhores condições de contemplarmos, de dentro e de fora, a nossa posição social, e portanto a futilidade de Deus, que é o Povo. Porque, u-lo Povo?, perguntarão-se alguns. Onde é o Povo em todo este barulho de vozes que parece que che dá de comer? Eis a questão inicial deste texto, pretensamente sobre as energias e o Povo: Se somos capazes de combater-nos civilizadamente sobre a língua na esfera pública e social da anglo-saxã liberdade de expressão, descobriremos mais uma vez, da nossa atalaia de palavras, que o Povo, simplesmente, em toda esta história não é. Decerto, este descobrimento pode ser frustrante para alguns, iluminador para outros, ou pode ser um argumento velho, maçador e inútil (por exemplo, poderia ter-me saído um texto menos repetitivo para mim mesmo), mas calemo-lo. Calemos uns e outros a verdade da inexistência do Povo, pois temos um longo caminho por diante. E, em qualquer caso, por pura sobrevivência (a vida dá muitas voltas) uns e outros continuemos a lembrar sempre a ameaça do único poema que me vem à cachola porque o cita todo o mundo: Primeiro eles levaram os negros / porém, para mim de nada importou / porque afinal eu não era negro. / Em seguida eles levaram os judeus / porém, para mim também de nada importou / porque eu não era judeu…
Sim, sempre pensamos que o último em ser levado às chamas vai ser o último, mas nunca há um último na biografia da injustiça como método. A narrativa do cometido neste país contra Os Distintos no nome da língua encheria um sumário como um petroleiro: Despedimentos, denegações, multas, proibições, censuras, expedientes, estigmas… Só os cegos e os hipócritas podem negar estes factos, ou acolhê-los sob o monstro jurídico da Legalidade Vixente. Mas, a longo prazo, amigos adversários, agora que o cu é ilegal, a comodidade dos assentos pode queimar o que, e da mesma maneira que ontem e hoje vieram por alguns de nós (e não é metáfora), amanhã nós podemos trocar o vosso que polo nosso quê e ir por alguns de vós, roubar-vos os vossos subsídios, as vossas publicações, o vosso brilho mediático, as vossas oposições, a vossa propaganda, a vossa televisão, as vossas instituições culturais, os vossos partidos, as vossas editoras, o vosso firme (?) controlo do Cáliz da Língua. Portanto, prezados adversários, por auto-defesa, simplesmente falai: Descei a falar conosco, cht, que o Povo nem se inteira.
Língua e liberdade de expressão
Enviado a A Nosa Terra; rejeitado
Estamos a viver provavelmente o momento mais transparente da história quanto às relações entre a “liberdade de expressão” (essa velha noção anglo-saxona) e o disciplinamento colectivo. A privatização do pensamento, e portanto da liberdade, acada inusuais níveis de clareza. Só têm liberdade de expressão aqueles que possuem os meios de expressá-la. O pensamento crítico é praticamente inexistente nos foros principais onde se forjam mais nitidamente os sentidos sociais que, através de complexos destilados ideológicos, se transformam depois em voto democrático. Se nos EUA é impensável criticar nos principais média os massacres militares contra tantos grupos humanos, no Estado Espanhol é impensável questionar o nacionalismo espanhol (quer dizer, defender consequentemente os nacionalismos “periféricos”) em espaços oficiais como El País ou El Mundo, e a cerimónia da exclusão repete-se a escalas progressivamente inferiores. Em La Voz de Galicia está vetada a crítica a Francisco Vázquez e a Fraga Iribarne, e ao que eles representam. O nacionalismo galego dispõe quase exclusivamente do foro de A NOSA TERRA, e neste, por sua vez, o espaço para a dissensão política, linguística e cultural é de cada vez mais reduzido.
Sobre as circunstâncias da reforma ortográfica: Uma operação política
Publicado no canal Galego.org de Vieiros
Pede-se-me um artigo no qual “analizase as circunstancias en que se produciu o acordo” (sic) ortográfico, baseado numa mensagem que enviei ao Foro aberto sobre esta questão. A minha contribuição ao Foro tinha o título “Clarifiquemos algumas cousas, sim?” Aceito o convite, mas devo precisar o seguinte:
(1) Para compreender as bases políticas, ideológicas e, no fundo, materiais, do conflito sobre o idioma na Galiza (nomeadamente sobre a sua representação escrita), mais do que este textinho ou centos como este é muito mais produtiva a leitura (ou polo menos a consulta) de certas obras, como esta:
Mário J. Herrero Valeiro. 2000. Glotopolítica y genealogía del Poder: El proceso de institucionalización del gallego desde la perspectiva de uma (macro)política de la lengua. Tese de Doutoramento. Departamento de Galego-Português, Francês e Linguística, Universidade da Corunha.
(Para compreender a questão, avonda com ver o título: A tese foi redigida e apresentada em espanhol perante a impossibilidade legal de fazê-lo em galego-português, numa universidade galega. Na mesma universidade apresentaram-se teses em inglês).
Claro que é mais fácil ler a imprensa.
(2) O meu convite a participar em VIEIROS exemplifica (não paradoxalmente) a táctica da invisibilização dos “distintos”. Não é a primeira ocasião em que participo como “distinto”, quando a evidência é que há muitos mais “distintos” com nomes e apelidos, tão “expertos” ou mais do que eu próprio (naturalmente) ou do que muitas das contribuições que repetem e repetem as mesmas obviedades página após página. Mas entenda-se bem que não estou aqui para contribuir ao Debate Nacional — apenas à sua aparência.
Entro em matéria. A formulação da própria petição de Vieiros (que “analizase as circunstancias en que se produciu o acordo”) é interessante. Como deformado linguista, à partida estaria tentado a desmiudar que se entende aqui por “acordo”. O princípio operativo das conversas foi o da exclusão e invisibilização dum sector importante de pessoas, grupos, movimentos, colectivos, activistas, usuários habituais do galego escrito, profissionais, etc. (os que se chamam “reintegracionistas”, os utentes de “português padrão”, e outras faunas) que têm visões “distintas” da representada polos que se reuniram para esta reforma das Normas. Esta exclusão é um facto inegável. Portanto, o processo não cumpre nem as mínimas condições do debate “democrático” (afinal estas cousas votam-se, não é?) na esfera pública para qualquer tema de interesse nacional, tanto do ponto de vista político quanto académico e “científico”. Que cada um(a) julgue como quiser estas condições de partida. E, sobretudo, que lhes confira depois a dimensão e lhes adira a justificação que lhe dite a sua consciência.
Como todas as cousas da língua, as conversas sobre a reforma ortográfica foram uma operação política. Tiveram uma parte de contactos, de condições prévias, e logo de negociações secretas. A minha informação é que duas destas condições, apresentadas pola representação do ILG e aceites polos demais, eram: (1) Que não se questionaria de maneira nenguma o carácter do galego como “lingua propia” independente do português. (2) Que, se antes de as conversas concluírem (ou quase, quem sabe) saía à luz pública informação sobre o processo (por exemplo, na forma dum artigo na imprensa), o ILG abandonaria as negociações (o qual significaria pará-las totalmente). A pessoa que me contou isto (por própria iniciativa: eu nem sabia que existiam as conversas) instou-me, por exemplo, a não enviar nengum artigo jornalístico sobre esta questão (por uma série de razões, resultou que efectivamente afinal nunca dediquei o meu tempo a escrever qualquer cousa sobre o assunto). Contou-me também da composição das comissões (3 membros por cada universidade e 3 polo ILG).
Se não foi assim, que me rectifiquem. Não me perguntem quem me facilitou esta informação nestes termos, porque deverei dizê-lo.
A segunda fase do processo foi uma mui importante campanha mediática preparatória (incluída a campanha de VIEIROS e a de jornais locais leais ao regime). Nessa campanha os sentidos das palavras são distorcidos e apropriados sistematicamente até que os novos sentidos se estabilizam e já todos contentes. Temos muita experiência disto no discurso sobre o “terrorismo”, o “independentismo”, etc., e os procedimentos mediáticos reproduzem-se, porque, como escreveu Foucault num lugar que não lim, os mesmos DISPOSITIVOS de coerção, disciplinamento e exclusão são utilizados por poderes aparentemente diversos, até encontrados. Assim, “concórdia” começou a significar ‘aproximação entre as variantes das Normas vigoradas’. “Mínimos” começou a significar ‘as opções “permitidas”, mas não “recomendadas” das Normas’. A produtiva metaforização bélica não deixou de fazer acto de presença (“AS IRMANDADES DA FALA CONTRAATACAN”, intitula VIEIROS uma das suas notícias). Na propaganda, à falta de possível comprovação por parte dos leitores e do público, as afirmações repetidas são tomadas por verdades de fé. Assim, menciona-se o número cabalístico de “100 especialistas” (muito mais curioso ainda quando se mencionam “100 linguistas”) que estariam por detrás do “acordo”. É difícil saber se a cifra se refere a (a) todos os membros das áreas de “Filoloxías Galega e Portuguesa” (sic) das universidades galegas, mais os membros do ILG; ou (b) todos os membros dos Departamentos universitários correspondentes, que podem incluir outras áreas de conhecimento; ou (c) todos estes mais os membros da ASPG, etc. Sobretudo, é difícil ver o valor da cifra 100 quando não sabemos quantos “especialistas” NÃO apoiariam o acordo: professores reintegracionistas destas ou outras áreas, professores de ensino secundário que por diversas razões (sempre políticas) nunca acederam nem acederão às universidades galegas, etc. E, por último, também não sabemos como estes acordos foram (ou não) referendados polos colectivos implicados. Em votações nas Áreas correspondentes? Por delegação nas comissões de três membros?
Por exemplo, no meu Departamento (“Depto. de Galego-Portugués, Francés e Lingüística” da Univ. da Corunha) a proposta de reforma foi levada a votação como ponto da ordem do dia numa reunião, e aprovada por maioria, com algumas abstenções (entre 3 e 5, não lembro) e um voto em contra, o meu. A minha argumentação na reunião foi que aprovar tal proposta de reforma ortográfica não era competência dum departamento universitário como tal, além, com áreas que não estiveram nunca implicadas nem foram chamadas às conversas, como os/as professores/as de Francês e os/as de Linguística (como eu), e sugerim que a Área implicada (“Filoloxías Galega e Portuguesa”) elaborasse qualquer escrito sobre a proposta como tal área, que o Director do Departamento poderia remitir aonde for necessário nas suas funções de representação. O Director do Departamento argumentou, porém, que, para o acordo ortográfico ir adiante, os negociadores requereram que fosse efectivamente APROVADO por todo o departamento da Univ. da Corunha (ignoro como fizeram nas outras universidades). De maneira que, logo duma longa discussão sobre se procedia ou não pronunciar-se sobre o assunto, na UdC votámos sobre a proposta de reforma ortográfica professores especializados em “Filoloxías Galega e Portuguesa” (sic) (“lingua galega”, “lingua portuguesa”, “literatura galega”, “literatura portuguesa”), “Filoloxía Francesa” (sic) , “Lingüística Xeral” (sic), e representantes de estudantes de Filologia (a representação do PAS, Pessoal de Administração e Serviços, estava ausente). A ambiguidade sobre a quem se refere o número “100 especialistas” continua. E a arbitrariedade de que numa universidade se pronunciassem sobre o acordo professores/as de francês e linguística geral e noutras universidades talvez não, também é difícil de entender.
Em definitivo, frente à CLAREZA da votação adversa da Academia (números de votos com nomes e apelidos), o jogo de cifras dos “100 especialistas” do “acordo” é escorregadiço e bastante irrelevante: como tantos números, só tem uma função propagandística. E assim por diante quanto à campanha mediática.
Finalmente, em toda operação política vem a fase da ofensiva. Inteirado o Povo por fim do que estava a acontecer e o que se vai fazer, a proposta chega ao organismo correspondente. Em impoluto procedimento Democrático (bom, houvo pressões, mas onde não há pressões nas votações, incluídas as que se dão no seio das universidades entre os “especialistas”?), a Academia rejeita a proposta. A Academia deslegitima o ILG, as universidades e a ASPG, e, em “contra-ataque”, estes organismos tentam deslegitimar a Academia. Mas, e se a votação tivesse tido o sentido contrário? Não se estaria a falar agora da “responsabilidade” e do “compromisso” da Academia, composta exactamente polos mesmos membros? Aceitam ou não aceitam os proponentes da reforma atè às suas últimas consequências a legislação que confere à Academia o poder decisório sobre a questão normativa para os usos administrativos do galego? É a Academia uma instituição para a construção nacional ou não o é? Se os votos duns/dumas poucos/as académicos/as (que não todos filólogos/as ou linguistas) valem mais do que as opiniões de “100 especialistas”, porquê seria desejável politicamente que esta instituição LEGITIMASSE desde a sua total discrecionalidade um trabalho “científico” de meses dos que “realmente” sabem da Língua? Por contra, se não devemos generalizar e verdadeiramente existem “académicos bons” que perdem as votações e “académicos maus” que as ganham, por acaso não poderiam existir também “especialistas bons” que por agora perdem a definição comum da língua (os reintegracionistas) e “especialistas maus” que na altura ainda a ganham (os demais)? Ou é ao revês? Ou só se tem a razão (científica, política e histórica) quando se ganha uma votação? As contradições nas posturas dos proponentes da reforma são flagrantes.
Não julgo ter dito nada que a lógica mais comum não poda entender: Se se quer “concórdia” e “acordo” sobre a “Língua”, acorde-se com todos aqueles que “trabalham” por Ela, ainda que estejam errados na sua ignorância reintegracionista (ou a escrevam mal, como eu). Porque, se a Verdade da Língua existe e é revolucionária, afinal o actual jogo das maiorias e das minorias teria o seu correlato nas acções e as decisões dos “especialistas”: a verdade científica (quer dizer, política) imporia-se TAMBÉM sobre os dissidentes, como aconteceu nesta (lógica) “concórdia”. A imensa maioria do Povo Galego já sabe que o galego é uma Língua independente do português e que portanto se deve escrever com letras espanholas, não é? Então, o quê poderia perder a “concórdia”? Morreriam de vergonha os “especialistas” reintegracionistas por estarem errados? Perderiam o seu chisquinho de carisma actual de dissidentes? Talvez. Mas então, que melhor final feliz para esta história? Ou é que ao pior o Povo Galego sairia da liorta pensando diferente? Ou é que, se falasse o Povo (que polo seu infantilismo e imadureza não podia conhecer a existência deste “acordo” pola imprensa), escreveria só espanhol? Ou melhor ainda: não escreveria?
E é que como diz o nosso presidente Pujol, “la pela és la pela”, e é sempre a que se impõe, da mão do Estado, através do conceito de Nação, Naçom, Nazón ou Nación, que che é igual de diferente. Todas estas conexões pelas – Nação – Ortografia, e mais, na obra citada no começo.
Denúncia da Universidade
Publicado em Çopyright 83, 31 Outubro 2000 • Em Non! – crítica & intervenção • N’A Nosa Terra
Desde há bastante tempo tinha vontade de escrever algo sobre a Universidade, as universidades, essa poderosa instituição tão pouco conhecida no seu funcionamento interno. Das universidades saem os líderes políticos, os professores, os juristas, economistas, doutores…: praticamente todo o tecido de grupos e interesses que sustém a sociedade de classes.
Conheço a universidade desde 1975, quando começara os meus estudos de Filologia na de Compostela. Logo, passei (e sofrim) polas universidades de Barcelona, Buffalo (Nova Iorque), Berkeley (Califórnia), e agora Corunha, onde sou professor de linguística e exerço de fiel Funcionário do Estado. Julgo ter suficiente experiência para ter uma ideia do que está em jogo no estudo, na (literalmente) carreira universitária, na obtenção dum posto de trabalho, na chamada “pesquisa académica”, nas oposições, etc. Talvez muitas das minhas apreciações se podam aplicar também a outras instituições ou âmbitos do estado capitalista burocrático. Nesse caso, talvez também os leitores podam reconhecer as suas experiências na minha narrativa, e poderemos assim lamentar juntos que as cousas não sejam como deveriam ser. Obviamente, não mencionarei nomes próprios. Mas, dentre os poucos universitários que leiam isto, penso que a imensa maioria (professores e alunos) poderão relacionar o que digo com alguma experiência vivida ou conhecida.
Literatura Zonal
Publicado n’O Pica-folla, Maio 1998
Imagino que, duma vez mais, será a minha uma das poucas vozes discordantes a respeito de como se vê o idioma galego e a cultura feita na Galiza. Não me importa muito, estou afeito. Não me importa “ter razão” ou “estar errado”: o que me importa é como se vai impondo o silêncio sobre as mentes, e importa-me, ainda que for, apenas porque parte da minha nutrição perante a desídia quotidiana é duvidar da obviedade das cousas. Se esse libertador exercício de debate interno se nos nega, pouco nos resta já. Por isso, vencendo o crescente cepticismo que ameaça com descebralizar-me ainda mais, aceito o convite a contribuir para esta celebração, espero que crítica, do chamado “Dia das Letras Galegas” de 1998.
Em favor de Babel
Publicado em A Nosa Terra 670, 20 Abril 1995, p. 24
Aos represaliados e invisíveis
O chamado «mito de Babel» é sem dúvida um dos instrumentos mais nocivos entre os gerados pola ideologia cristã para impor uma unidade que não temos, e uma das suas falácias mais insidiosas para impedir o raciocínio. A interpretação dominante diz que um deus castigou às gentes pola soberba de quererem ser como ele, e, desde então, fez-lhes falar de maneiras diferentes. Uma leitura alternativa é que já antes de Babel as gentes falavam e escreviam diferente, mas entendiam-se. Foi precisamente o seu projecto comum de se unirem livremente para alcançarem as alturas do saber o que ameaçou o poder desse deus medíocre, inseguro, mesquinho, vingativo, um deus que não merece ser deus dos mortais que queiram ter um deus.
Elites lusófonas? Oui, merci
Publicado em A Nosa Terra 653, 22 Dezembro 1994, p. 28
Hoje fui ao Corte Inglês e comprei os quatro compactos do cativante grupo português Madredeus. Não sei que me satisfaz mais: a sua música ou o elitismo de saber que, entre escrito e escrito ou entre cigarro e cigarro, ainda tenho tempo de escutar. Enquanto sigo as letras impressas, encanta-me também pensar que não lhe se entende tudo à solista de primeiras porque é cantado. Deve ser a mesma sensação de iluminada reverência que tinham as nobrezas proto-alemãs do XVIII ao escutarem o bel canto italiano, ou os aristocratas russos finisseculares ao escutarem as lições de francês das filhas, ou a que sentiam os latifundiários autóctonos da Índia ao escutarem um recitado em inglês de Cambridge. Esse foi sempre o problema das elites da Galiza: não olharem para fora. Cada país precisa olhar para fora. Os catalães, para a França. Os japoneses, para a China. Os portugueses, para a Espanha.
O caló, os símios e a eutanásia. Ao fio do I Volume do Mapa Sociolingüístico
Publicado em A Nosa Terra 646, 3 Novembro 1994, p. 15
Caminho polo meu bairro semi-urbano, nem carne nem peixe, agora cemitério de concreto que fora bosque de alcalitos e antes, quando os povos ainda conversavam, deveu ser mesta fraga, e escoito às minhas costas a dous cativos falarem com normal espontaneidade no que ainda se reconhece como galego: singelamente, sem mais volta de folha, nesse português nosso que espanhois de todas cores nos querem extirpar. Viro a cabeça e observo a rapaz e rapariga: são ciganos, ou mohinantes, esfarrapados da língua. Volvo caminhar e, com mágoa, compreendo: o português da Galiza sobrevive sustido por dous extremos, como a sociedade capitalista feroz se mantém na mais aguda contradição da miséria do ghetto e a luxenta dilapidação do Village de Manhattan. Aqui os extremos são, por uma parte, o neo-galego de casta dos nossos locutores públicos (patética farsa que às vezes me faz, literalmente, enrubescer), e por outra esse caló rotundo e remoto que invoca sempre a palavra «ainda»: ainda se fala, si, ainda hai tribos fósseis que fazem lume com pauzinhos.
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