O enfrentamento dos salva-pátrias

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Não serei eu quem defenda a organização Batasuna, cujos elementos de messianismo ideológico estão muito longe do meu ideário político, mesmo sendo consciente como sou da distorção sistemática a que as suas palavras e ideias estão submetidas polo império mediático español. Mas, se de abominar dos messianismos se trata, não esqueçamos nunca a postura e os actos da Audiencia Nacional deste Reino, com figuras como Baltasar Garzón ou Fernando Grande-Marlaska que têm tanto poder efectivo em remexerem o ambiente social e as nossas próprias mentes com a aplicação, sempre política, das leis do Reino. O auto de Baltasar Garzón para o encarceramento dos líderes de Batasuna, tal como o conheço pola edição impressa de EL PAÍS, é um exercício de uma natureza tão ricamente visionária que nos ilumina para sempre (quer dizer, até que mudem as directrizes policiais) o panorama próximo da violência (a de Estado e a outra) neste Reino de salva-pátrias. Porque, quando começavam a cheirar a cinza velha (como após uma adolescente fogueira) as imagens de Juan Carlos de Borbón, Garzón faz-nos gozar com mais uma historieta, com um texto escrito na mais peculiar gramática da língua do império, e com o recorrente leit-motiv jurídico e quase-literário de que Batasuna se reunia para “abordar el enfrentamiento”. Certo, diz EL PAÍS que esta frase está escrita a mão nas margens dum documento interno de Batasuna apanhado pola polícia na reunião. Mas esta frase é motivo para chamar Batasuna ETA, ou ETA Batasuna, ou para redesenhar a geometria dos “entornos” políticos (se se lê o auto com atenção), onde umas vezes Batasuna é ETA e portanto está dentro de ETA, outras está fora mas é de dentro, e ainda outras (quando procura a paz) está dentro mas quer estar fora, e assim por diante. Poupo aos leitores o desastre cognitivo de pretender compreender esta geometria imposta pola Audiencia Nacional e pola Lei de Partidos, uma nova geometria moderna que tão proveitosa resultou sempre para os Estados militares definirem à vontade a identidade delituosa dos sujeitos (veja-se, sem ir mais longe, a ordem pós-euclidiana do “Eixo do Mal”, a criação discursiva de “Al-Qaeda”, o “terrorismo internacional”, e outras ameaçantes construções fantasmagóricas que o jornalista Adam Curtis se encarrega de revelar no documentário The Power of Nightmares).

Não é preciso ser muito inteligente para imaginar o que se esconde após uma expressão política como “abordar o enfrentamento”. Duvido poderosamente, por exemplo, que as diversas instâncias do Estado e dos partidos não concebessem a situação política depois da bomba massiva de ETA em Dezembro de 2006 como uma nova fase marcada polo confronto. Os representantes políticos voltaram a empregar escoltas, reforçaram-se as medidas de auto-defesa, reanimou-se a violência jurídica, e a tensão voltou a notar-se na vida e sobretudo nos catequéticos jornais españóis que aos súbditos do Reino nos amargam o chá e a cálida torrada da manhã. Quem recomeçou essa nova fase e esse tipo de enfrentamento, com uma bomba brutal que assassinou duas pessoas? Evidentemente, a ETA. Mas, colocou esta bomba Batasuna ou a sua “cúpula”, curioso elemento arquitectónico dos partidos que remete para um templo em lugar de para uma rede de pessoas? Se Batasuna o tivesse feito, toda a Audiencia Nacional, a Fiscalia do Reino, os governos español, basco e madrileno e o Chefe do Estado deveriam estar todos na cadeia por flagrante e cúmplice negligência por deixar Batasuna livre. Porque, se reunir-se para “abordar o enfrentamento” é uma actividade “presuntamente delituosa”, mais presuntamente delituoso será desmembrar duas pessoas com uma explosão que esnaquiza um enorme estacionamento. Em resumo, se Batasuna é ETA, todos os seus membros, do começo até ao final, para a cadeia. E, se não é, a calar e a deixar-se de interesseiras hipocrisias e de linguagem perversa.

Portanto, calculo que concordamos que nem Batasuna nem o Estado Español são os autores nem os culpáveis da bomba da ETA que reiniciou o “enfrentamento”. Mas as novas condições políticas, herdadas dum patético “processo” encaminhado por parte do Estado sobretudo para inocular ainda mais confusão mental numa massa de súbditos já descerebrados, inauguraram um tipo de “enfrentamento” do qual não pode escapar nenhum dos dous agentes salva-pátrias desta guerra: os braços do Estado, e a patriótica (“abertzale” é uma desnecessária dissimulação) esquerda basca. Seria ridículo negar que ambos rivais vêem a situação em termos de confronto jurídico, político, e físico, quer dizer, numa relação de tensão definida pola violência: ataques físicos e verbais, privação ou coerção da liberdade doutrem, violação de direitos, exploração da propaganda como método, etc. etc.

Dificilmente a constatação deste confronto, e a vontade duma organização como Batasuna de “abordá-lo”, se pode ver como um argumento de peso como indício delituoso para uma mente racional, em ausência de detalhes explícitos na planificação do enfrentamento. Num enlamado totum revolutum que lembra mais uma fatwa que um texto jurídico, o auto de Garzón coloca lado a lado o “enfrentamento” com, por exemplo, a táctica política de Batasuna de aproveitar as mobilizações contra o AVE. E o tremendista órgão da direita intervencionista EL PAÍS, que já não sabe que hollywoodiano cabeçalho colocar agora que o Público regala DVDs, eleva ao cubo o poder evocador do “enfrentamento” reiterando-o várias vezes na notícia.

Os tristes gudáris de Batasuna, a desafiarem a lei dum Estado em que não acreditam, reuniram-se com suficiente luz: foram dous vizinhos da vila quem solicitaram o local do concelho para a reunião. Talvez se solicitou com qualquer escusa, nem sei, nem tem importância, mas calculo que como acto político da patriótica esquerda basca. A “cúpula” de Batasuna não se reuniu nos montes ou em majestáticos zulos habitacionais como os que, diz a lenda, tinha Ali-Babá-Ben-Laden nas montanhas de Tora-Bora, nem se reuniu num desses remotos e exóticos caseríos de petrúcios a que a imaginaria española nos tem habituados como campos de treinamento onde –pontifica a porta-voz do dogma da Transición Victoria Prego– se forjou a aliança de civilizações católico-etarra. Estranha maneira a da “cúpula” de Batasuna de pertencer a ETA para planificar o enfrentamento: num local dum concelho basco.

É difícil entrar nos mundos imaginários respectivos em que combatem estes dous messianismos: o do Reino de España, e o dos gudáris bascos. Devem ser territórios nacionais míticos habitados por tantos seres fabulosos e alimárias tolkenianas que a zoologia e a teratologia do nacionalismo precisariam ser reescritas. Mas um pobre súbdito como eu reage hoje assim, com a fúria das palavras, porque está canso de ser sacudido dia sim e dia também polas hostes habituais de salva-pátrias: os que levam na mão as leis do Reino Borbónico como a Lei de Deus que a invenção do “pueblo español” votou (dizem) em constituições e eleições e outros ritos de sujeição masoquista, e os que levam na mão e nos papéis uma ideologia também redentora (isto é, também nacionalista) composta apenas de quatro palavras primitivas, quatro noções sobre o que é ser pessoa, sobre o que é a acção política, sobre o que sejam as formas das identidades sociais. As mentes de todos os salva-pátrias são, felizmente, inescrutáveis. Mas, infelizmente, ainda projectam sobre nós, dia após dia, cada manhã, quando com toda a burguesa ingenuidade queremos abordar o habitual enfrentamento gastronómico com um chá e uma cálida torrada com manteiga, a sombra dum mundo repulsivamente repetitivo, circular, cansativo, brutalmente elementar como a esquálida mente e os actos de todos os guerreiros.

Queimando espero…- Semiótica pura

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Tenho muita curiosidade por saber o que se pode queimar ou não em público no Reino. O governo español, em representação do Rey (isto é, do Estado) deveria meter na SER uma dessas cunhas publicitárias explicando os males eternos da queima de papel, como os da droga ou do tabaco: Quemar Mata… O Te Enchirona. No Chamusques Tu Futuro.

Seica um papelinho com a figura do Rey não pode ser queimado porque ele é o “símbolo de la unidad y la permanencia del Estado” (art. 56 da Constitución Española). A bandeira española também não pode ser queimada: lembrem o encarceramento que sofreu Francisco Rodríguez, hoje deputado do BNG em Madrid, acusado de ter queimado uma vistosa rojigualda aquando da chegada dos restos de Castelao a Compostela em 1984. Num curioso programa de televisão anos depois, cujo simples título daria para uma análise de tese (“Queremos saber: ¿Por qué algunos catalanes, vascos y gallegos no se sienten españoles?”), Francisco Rodríguez respondeu à entrevistadora Mercedes Milá (hoje algo degradada jornalisticamente) que ele nunca queimara a bandeira. Pois má sorte! De ter estado na cadeia, polo menos ter tido o prazer!

Mas, pergunto-me eu, então a bandeira galega actual, tampouco pode ser queimada? De que tamanho sim e de que tamanho não? Em que milímetro começa o simbolismo? Eu, por exemplo, acabo de queimar uma miniatura de papel da vistosa branca-azul no meu gabinete: os seus restos estão no cinzeiro (fiz foto no telemóvel). E um exemplar do Estatuto de Autonomia, pode ser queimado? E um CD pirata do hino galego flamenco de Arturo Pondal (outro símbolo)? Haveria que fazer a prova, diante das câmaras da TVG, em aberto, durante uma manifestação independentista (queimar a galega, digo, a outra já está mais visto).

Queimando espero... - Semiótica pura

De maneira que queimar certos símbolos é ilegal, não porque contamine (Greenpeace não abriu a boca), mas porque a pessoa incineradora manifesta que não compartilha o valor ideológico desse símbolo, ou opõe-se à consagração jurídica desse valor. Então essa opinião distinta ao dogma torna-se num oitocentista “ultraje” (teríades que tunear a língua española um pouco, chachos). A leitura dos factos é assim singela. No entanto, cada fim de semana bêbedos jovens urbanos muito democratas queimam papeleiras plásticas por apolítico prazer, e a Audiencia Nacional (sic) nem se inteira.

Mas, vamos ver (pergunto-me eu): O que acontece se um apenas declara publicamente que queima algo, mas não o faz? O que significa isto? Por exemplo: “Pola presente queimo uma imagem de Juan Carlos de Borbón como símbolo da unidade e da permanência do Reino de España, projecto político que detesto”.

Não, não o fiz bem, não ardeu de todo (com suficiente ênfase). Terei que repeti-lo: “Pola presente queimo uma imagem de Juan Carlos de Borbón como símbolo da unidade e da permanência do Reino de España, projecto político que detesto”. Assim melhor.

Uf, isto é semiótica pura. A repetição exacta indica que a oração não foi gerada aleatoriamente por um vírus de trípi do meu processador WordPerfect. As aspas distanciam-me das palavras, de maneira que eu posso argumentar que citei uma hipotética declaração, mas não o declarei de facto (bom, em privado sim, para mim próprio: é delito?). E, ainda por cima, dizendo que declaro que queimo um ícone, estou a queimar o valor dum símbolo? Tremendo sarilho! Venham Pierce e Morris (semiólogos da Audiencia Nacional, sic) a interpretá-lo; eu afurrico.

Em resumo: Quantas vezes se podem dizer cousas assim sem que a Audiencia Nacional (sic) venha pedir o DNI? Quantas vezes pode uma pessoa manifestar uma opinião política antes de que seja “ultraje”? Porque, porventura alguma autoridade do Reino de España leu a Declaração Universal dos Direitos Humanos? Há tradução española.

Enfim, queimando espero / a Audiencia que mais quero. É claro que a Coroa cambaleia. Resta-lhe menos.

Propriedade privada

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As mulheres são propriedade privada dos varões. Quando já não servem para as suas funções no sexo, na cozinha, na submissão simbólica, são sacrificadas. São sacrificadas como um animal que se possui: como um cão rebelde, como um cavalo velho. Os donos sacrificam-nas com lume, com facas, com balas, com as mãos, com pedras para esmagarem os seus cérebros. Como em muitos lugares o sacrifício privado é ilegal, alguns varões entregam-se aos seus serviços de segurança. Nalguns lugares há juízos para garantir o sacrifício legal da propriedade privada já inservível.

Os operários e operárias são propriedade privada das empresas. Quando saem mais caros que o benefício que produzem (como uma amante velha, como um cavalo doente) são sacrificados, retirados do trabalho, dando-lhes fome por alimento, fechando as factorias. Os operários são abandonados à intempérie como um cão que uiva no monte por voltar ao seio do seu amo. Sacrificar operários dando-lhes fome costuma ser legal, desde que passem a ser propriedade privada directa do Estado, do seguro de desemprego.

Os países, as gentes e os territórios são propriedade privada dos Estados. A Galiza ou Euskadi são propriedade privada do estado monárquico, que os aluga a gente que por isso se chamam galegos ou bascos. Quando os ocupantes que alugam os países querem tomá-los, o Estado pode chamar ao serviço do segurança, ao exército. Às vezes, muitos inquilinos são sacrificados com balas, com paus, como se sacrifica um cão rebelde. Às vezes, uns poucos inquilinos varões empreendedores alcançam a tomar para si os países em aluguer, e os países, gentes e territórios passam a ser propriedade privada dos novos varões, dos novos Estados, que voltam a alugá-los.

O petróleo, o gás, o ar, a água, o sal, o pão e o arroz são propriedade privada dos varões, das empresas e dos Estados. Quando resulta caro demais obter ou produzir o gás, a água ou o arroz com as mulheres, homens e meninhos que trabalham nos campos, florestas e desertos alugados, os exércitos dos Estados das empresas dos varões sacrificam-nos com balas, com lume, com mãos e com facas, esmagam-lhes o cérebro com metralha, deformam a sua visagem com fósforo, desmembram-nos para fazerem ecrãs e cabeleiras sintéticas, produzem baralhos dos seus rostos, vídeo-jogos da sua nudez, megawatts dos seus cadáveres nas duches crematórias.

De tudo isto há imagens e palavras, diariamente. E as imagens e palavras que chegam às casas e às cozinhas onde as mulheres fervem arroz para os seus donos com restos de animais sacrificados, são propriedade privada das empresas e dos Estados. Quando as imagens ou palavras se rebelam e pensam, quando são inservíveis porque dizem como querem a verdade do extermínio, os Estados sacrificam-nas em altas labaredas, cortam as páginas com facas, riscam as frases imigrantes e os acentos rebeldes com tinta de sangue, decapitam as fotografias, torturam o significado. Os juízes e os exércitos dos Estados fecham em Guantánamo as páginas que fazem ritual greve de fome, desterram para o monte a uivarem como cães as imagens certas do extermínio.

As mulheres, a força de trabalho, os animais, os territórios, o gás, a água, o arroz, as imagens e as palavras têm todos nomes únicos, cifras, códigos, facturas, certidões de propriedade, vias de distribuição, composição interna, dimensões, peso, embalagem, modo de emprego, data de caducidade, lugar exacto para serem utilizados nas casas e nas indústrias, nos leitos, na corte, na cadeia de montagem, no sofá, nas estantes, no cérebro, lugar exacto para botar os seus resíduos, nos cemitérios, nos matadouros, nas lixeiras, nos esgotos, nos desertos, nas estantes, no cérebro.

E, afinal do seu ciclo, cada espécime de propriedade privada das pessoas e dos Estados torna-se na mente depois do seu uso escrupulosamente no mesmo: numa solitária reacção orgânica e num furtivo vágado irreal, como se tudo isto se tratasse apenas de um mundo alegórico indescritivelmente pavoroso que por ventura não existe.

A retórica da Propaganda

Publicado no Portal Galego da Língua

1.

Escreve nalgures a linguista Ruth Wodak que a Propaganda é “discurso desenhado para impedir pensar”. A Propaganda é omnipresente na vida diária. Mas, como se constrói linguisticamente, discursivamente, a Propaganda? Que recursos fornecem as línguas para a Propaganda?

Quisera focar-me num fenómeno pragmático (comunicativo) muito frequente na vida diária e susceptível de uso propagandístico com muita produtividade: a pressuposição. A pressuposição consiste em dar por entendido algum significado, mas “escamoteado” dentro de um enunciado mais amplo. Por exemplo, se eu afirmo “O filme A é mais interessante do que o B”, estou a pressupor que o filme A é, polo menos, algo interessante, que tem a qualidade de ‘interessante’ nalguma medida. Por isso os vendedores nos dizem sempre que um produto caro é “menos económico do que o outro” (tem o atributo de ‘económico’, quer dizer, ‘barato’, nalguma medida), nunca “mais caro do que o outro”.

Um tipo de pressuposição muito frequente é a chamada pressuposição existencial. Com uma pressuposição existencial, dá-se a entender (dá-se por inquestionável) a existência de algo, de uma dada entidade, seja isto assim no mundo real ou não. Por exemplo, se eu afirmo “O meu cão chama-se Trósqui” pressuponho que existe um cão específico e que é da minha propriedade. Reparemos que se nego o dito (“O meu cão não se chama Trósqui”) continuo a pressupor o mesmo: a existência de um cão que é meu. De facto, “O meu cão chama-se Trósqui, mas não tenho cão” é uma contradição, porque eu dei a entender, com outras palavras, que o tinha.

As pressuposições existenciais são activadas polo que se chama uma expressão definida. Uma expressão definida é, por exemplo, a que começa com o artigo “o/a/os/as” (“O meu cão está doente”), ou a que consiste num nome próprio (“Trósqui está doente”).

Portanto, as pressuposições existenciais contribuem para a representação de um mundo… ou para a sua construção. A questão crucial para o receptor de uma pressuposição existencial (o ouvinte) é o que se chama a determinação do referente, quer dizer, o problema da identificação de uma dada entidade do mundo real que se possa corresponder com a entidade pressuposta. A questão é se no mundo real a pressuposição se satisfaz ou não, quer dizer, se na realidade existe ou não essa entidade pressuposta. Eis o que discutirei a seguir.

2.

A propaganda política faz uso do recurso da pressuposição existencial de maneira profusa. De facto, grande parte da construção de uma ideologia consiste na construção de um “mundo” de objectos e realidades pressupostas. Por exemplo, “A política económica do governo” pressupõe que o governo tem política económica (e não um conjunto de actos improvisados). “Os direitos dos trabalhadores” pressupõe que existem tais ‘direitos’, e assim por diante.

De maneira que as pressuposições existenciais contribuem para construir um mundo, polo menos das ideias. Alguns ultraliberais, por exemplo, fazem existir o nazismo na Galiza a referir-se em certos textos jornalísticos ao actual governo bipartido da Galiza BNG-PSOE como “el poder nacional-socialista gallego” como se o governo fosse um todo unitário comparável ao partido alemão NSDAP e como se tivesse a mesma ideologia. A manipulação baseia-se no seguinte: O receptor sabe que existe a Xunta; sabe que está composta por um partido “nacionalista” e por um partido “socialista”; portanto, só pode fazer corresponder a expressão “el poder nacional-socialista gallego” com esta aliança de partidos do mundo real. O poder galego actual não é nazi; mas a Propaganda quer fazê-lo existir, nomeando-o e, assim, condicionar a visão do mundo dos receptores.

Dissemos que um outro tipo de expressão definida que acarreta uma pressuposição existencial é o nome próprio. O jornalista Adam Curtis revela no seu excelente documentário The Power of Nightmares (O Poder dos Pesadelos, BBC, 2004) como “Al-Qaeda” começou a existir em Janeiro de 2001, durante o juízo em EUA contra quatro homens polos bombas colocadas em duas embaixadas EUA em África do Leste em 1998. O governo EUA queria estender também a acusação a Ben Laden, como pretenso líder de um (inexistente) movimento armado internacional. Na realidade, Ben Laden era apenas seguido por um pequeno grupo de fanáticos dentre os milhares de grupúsculos armados que pululavam por Afeganistão. Mas, sob a legislação estadounidense, a acusação a Ben Laden só podia ter lugar se existisse prova de uma vinculação orgânica, quer dizer, de uma organização, como a máfia. Então, uma testemunha protegida do processo, um muçulmano, declarou que ele próprio conhecera Ben Laden e que “Al-Qaeda” era o nome que ele dera à sua organização. Polo poder pressuposicional de nomear, “Al-Qaeda” começou a existir na mente do público. Foi só mais tarde desse mesmo ano, após o massacre do 11 de Setembro, que Ben Laden soube que no nome “Al-Qaeda” representava para os neo-conservadores estadounidenses uma suposta organização da qual ele seria o líder. Na realidade, os ataques do 11-S foram obra de um pequeno grupo, desmantelado e desaparecido, que acudira ao adinheirado Ben Laden para financiamento. Em resumo, precisamente por o nome “Al-Qaeda” ser cunhado, o mundo real passou a se ajustar às palavras, com a criação de um poderoso inimigo, algo que politicamente era necessário para o neo-conservadurismo ocidental após a queda do “império do Mal” soviético. Assim, a palavra dos representantes do povo elegido (EUA) criou, pressuposicionalmente, “Al-Qaeda”. Na verdade, não longe disto está o poder performativo (criativo) da palavra de Deus na cosmogonia cristã: “E Deus disse: Faça-se a Luz; e a Luz fez-se”.

3.

É polo mesmo procedimento que se fazem existir também realidades como “O terrorismo islamista”. Com efeito, um tipo muito frequente de expressão que contém uma pressuposição existencial propagandística é ARTIGO + NOME + ADJECTIVO, do tipo “O terror-ismo islam-ista”, “O separat-ismo comun-ista”, etc., onde duas práticas ou ideologias políticas convergem numa. Reparemos, por exemplo, em

“O terrorismo islamista”.

A expressão, à margem do enunciado onde estiver contida (p. ex. “O ataque foi obra do terrorismo islamista”, ou “O ataque não foi obra do terrorismo islamista”) dá a entender a existência de uma prática política de terror que, além, é ‘islamista’, seja isto o que for. De facto, aqui há duas informações contidas numa: ‘(1) Existe o terrorismo; e (2) um atributo deste terrorismo que existe é ser islamista’.

Este procedimento retórico liga fortemente o islamismo em geral ao terrorismo. Como é assim? Porque, por uma parte, sabemos que no mundo existe também o não-terrorismo; mas a expressão não deixa a porta aberta a que existam islamistas que não sejam terroristas. O terrorismo é o conjunto maior.

Por contraste, a expressão alternativa

“O islamismo terrorista”

pressupõe algo notavelmente distinto: por uma parte, pressupõe que existe um tipo de islamismo que é terrorista; mas, a utilizar um adjectivo restritivo, deixa margem para pensar que não todo o islamismo é terrorista.

Destas duas expressões, a que melhor se ajusta ao estado do mundo actual é, obviamente, a segunda, pois não todas as pessoas “islamistas” são “terroristas”. Porém, parece claro que a propaganda política utiliza quase exclusivamente a primeira: ela faz existir antes o terrorismo do que o islamismo. Da mesma maneira, fala-se de “O terrorismo independentista” (‘um tipo de terrorismo que é independentista’), não tanto de “O independentismo terrorista” (‘um tipo de independentismo que é terrorista’, frente a outro que não é).

Ora bem, à hora de interpretar a expressão “O terrorismo islamista” e de lhe destinar um referente, a questão que o público receptor deve resolver é: Quem compõe esse grupo de terroristas que são islamistas? A evidência da experiência é que existe ‘o terror’. Outra evidência é que os islamistas são conhecidos no mundo cristão apenas quando existe o terror que alguns deles levam a cabo, e sempre em referência a ele. Portanto, a inferência a que convida esta manipulação de sentidos e de referentes é que ‘Todos os islamistas (que são os indivíduos que conhecemos quando há terror) são terroristas’, de maneira que “islamista” (como “independentista”) é um subconjunto do superconjunto que define tudo: “O Terrorismo”. Em resumo, emitir “O terrorismo islamista” implicita que ser islamista é apenas uma das possíveis manifestações de praticar o Terrorismo.

4.

Imaginemos, para continuar com a explicação do funcionamento da Propaganda, que na Galiza alguém utilizasse por escrito a expressão

“O fundamentalismo lusista”

A pressuposição aí contida dá por feita a existência de alguma (pretensa) realidade nossa. De novo, não nos interessa a oração completa em que se emitisse: tanto “O fundamentalismo lusista está a crescer” quanto “O fundamentalismo lusista não está a crescer” dariam por suposta a existência, no mundo real, (1) de uma posição ou prática social etiquetada como ‘o fundamentalismo’, e (2) de que uma manifestação desta posição social tem o atributo de ‘lusista’. (Evidentemente, ainda não sabemos o que significa “fundamentalismo” e, menos ainda, “lusista”; mas disso ocuparemo-nos depois).

Como no exemplo anterior, o subconjunto “lusista” fica portanto ligado a outros tipos dentro do superconjunto “Fundamentalismo”, tais como “O fundamentalismo islamista”, “O fundamentalismo nacionalista” ou o “O fundamentalismo independentista”. De novo, também, o elemento definidor é o substantivo: a expressão pressuposicional faz existir primeiramente o fundamentalismo, que apenas se manifesta em variantes ideológicas como ‘islamista, nacionalista, independentista, lusista’, etc. Como no caso de “O terrorismo islamista/independentista”, etc., a ideologia específica (política ou linguística) fica subordinada à construção abstracta de uma prática social, que organizaria a realidade.

De novo, como na discussão anterior, contrastemos o exemplo com a hipotética expressão também pressuposicional

“O lusismo fundamentalista”

Esta expressão pressupõe algo sem dúvida diferente: que, dentro do lusismo, existe uma tendência ou prática fundamentalista. Dá-se por suposta a existência de polo menos alguma manifestação “fundamentalista” dentro do lusismo; mas sugere-se, por contraste, a existência de um lusismo “não fundamentalista” (se eu afirmo A, estou a implicitar que existe um não-A, que posso chamar B; só um Pan-Deus escaparia a esta hidráulica).

Mas ocupemo-nos só do efeito propagandístico da expressão primeira, “O fundamentalismo lusista”. A questão, mais uma vez, é, como se adeqúa esta representação ao mundo real? Que faz o leitor da Galiza perante uma pressuposição assim?

Deixo de parte, evidentemente, o que possa significar “fundamentalismo” para alguém que utilizasse tais palavras. Nem sei, nem saberia, se esse significado não se fizesse explícito. Mas sim que sei que, na fala comum, o fundamentalismo ou integrismo está sem dúvida associado a valores negativos como fanatismo, intransigência, dogmatismo, e, por extensão, agressividade verbal e física. De facto, na discurso político propagandístico contemporâneo a ligação entre “fundamentalismo” e “terrorismo” é muito forte. Um fundamentalista é aquela pessoa que não vê sentido em discutir o significado imanente de um texto de autoridade (um código religioso, um ideário político, uma proposta normativa), pois a Palavra está por cima de qualquer debate. Um fundamentalista islamista nunca debateria, por exemplo, o próprio alvo do Islã ou o sentido do Corão. Portanto, para a consecução da sua causa, dada a inutilidade do debate, a violência pode chegar a ser um meio legítimo e até necessário. (O documentário O Poder dos Pesadelos relata como na década de 1900 o fundamentalismo fanático de alguns grupos armados islamistas foi tal que começaram a matar-se entre eles por ‘infiéis’ e traidores ao Corão: assim, o objectivo deixou de ser a salvação do mundo islâmico da corrupção ocidental, e o próprio movimento debilitou-se. Curiosamente, é precisamente aí quando uma outra Palavra, a dos ideólogos neoconservadores estadounidenses, fez nascer “Al-Qaeda”).

Em resumo: a expressão “O fundamentalismo lusista” nega a existência do lusismo fora da prática fanática fundamentalista. Por essência, o lusismo é representado apenas como um tipo de fanatismo agressivo. Como no caso anterior, diz-se sem dizer que ser lusista é apenas das manifestações de praticar o Fundamentalismo.

5.

Mas, o que acontece com a determinação do referente? Que universo de sujeitos pode constituir, no mundo real, aquele pressuposto em “O fundamentalismo lusista”? Quer dizer: que facção possível dentro do Fundamentalismo, como categoria superior, é do tipo ‘lusista’?

Consideremos, primeiro, a evidência de que existem na Galiza numerosas pessoas que, de alguma maneira ou outra, se identificam, ou identificam outras, com o ‘lusismo’ ou como ‘lusistas’. Não é a minha intenção caracterizar aqui o lusismo: a identificação ou auto-identificação pode ter a base da prática linguística (padrão escrito e/ou oral português), da aproximação cultural e linguística a Portugal ou ao resto do mundo lusófono em geral, das duas cousas, ou de outros elementos. O facto é que esta identificação de pessoas com o ‘lusismo’ existe, em clara oposição ao ‘isolacionismo’, e, às vezes, ao ‘reintegracionismo’.

A experiência é um poderoso recurso que qualquer humano tem para entender os signos. Portanto, se uma pessoa se auto-identifica como lusista, ou identifica outras como lusistas, ou entende que ela própria ou outras possam ser identificadas desde fora como “lusistas” (embora ela mesma se defina, por exemplo, como “reintegracionista”), e se ao mesmo tempo não acha por qualquer parte essas práticas próprias ou alheias “fundamentalistas” dentro do lusismo, ou mesmo se, na sua própria percepção, considera que a etiqueta “fundamentalista” só poderia ser aplicada, por metaforização, a certas palavras ou textos de toda uma história de lusismo neste país, então talvez esta pessoa só possa interpretar a expressão “O fundamentalismo lusista” como uma tentativa de Propaganda manipuladora (discurso desenhado para impedir pensar), e até como uma tentativa de insulto a todo um colectivo.

Além, igual que com “O terrorismo islamista”, esta propaganda tem a intenção de polarizar (“nós” frente a “eles”), numa visão dicotómica do mundo que só contribui para a manutenção da tensão. Por definição, a propaganda simplifica e generaliza as identidades “própria” e “alheia” para causar polarização e conflito. E amiúde, os sujeitos-alvo da propaganda política (os muçulmanos, por exemplo) sentem-se insultados não porque acreditem que os propagandistas cristãos tenham poder real para insultá-los, mas porque os cristãos, a procurarem inocular uma representação errada do mundo, estão a manifestar uma flagrante arrogância. Da mesma maneira, classificar todo o colectivo do “lusismo” como “fundamentalista” é sintoma de arrogância polo que tem de tentativa de imposição de uma dada representação do mundo.

Com efeito, para aqueles galegos que carecem de experiência mais directa com pessoas lusógrafas ou que defendem a unidade linguística, a manipuladora expressão convida a conceber toda a prática lusógrafa (‘escrever em português na Galiza’) como “fundamentalista”. A manipulação retórica consiste na construção de uma pretensa realidade, cuja existência é, precisamente, a que está em questão, mas que não se explica nem explicita a meio do debate. (Como também acontece com o ubíquo lema, sempre inexplicado, do que constitui “O terrorismo islamista”, de quem são esses terroristas, onde estão, e como agem: na campanha contra o financiamento ilegal do “terrorismo islamista” em Espanha depois da tragédia de 11 de Março de 2004, os serviços policiais espanhóis só foram capazes de intervir uns 80 euros destinados a este financiamento).

Mas a manipulação propagandística de “O fundamentalismo lusista” não fica aí. Para muitos galegos, “lusista” é termo geral para o que outros chamam “reintegracionista”, quer dizer: ‘Tudo quanto não seja a visão da RAG do galego; os da AGAL; umas pessoas que escrevem raro e dizem -çom’. Para estes galegos, toda a prática da AGAL, do MDL, da AAG-P e de outras associações, colectivos e pessoas é o mesmo: é não-galego. Na Galiza, só existiria o “galego oficial” e o “lusismo”. Portanto, para estas pessoas é possível que o lema “O fundamentalismo lusista” signifique simplesmente ‘Todos quantos não concordarem com a norma actual para o galego, isto é, desde os que escrevem cousas raras como -çom até os que escrevem em português padrão, são uma minoria fundamentalista, fanática e agressiva’.

Por isso, não andarei descaminhado se digo que o lema “O fundamentalismo lusista” encaixa perfeitamente, por exemplo, com a associação que a propaganda mediática e política faz entre o reintegracionismo e a violência (pseudo)-política que esporadicamente experimenta este país (a não policial, refiro-me). Porque todos sabemos que os que cometem esses actos violentos são “lusistas”. Nesse sentido, o lema “O fundamentalismo lusista”, por associação de significados, inclusive reforça o papel da propaganda de Estado sobre as íntimas ligações entre reintegracionismo (=”lusismo”) e “terrorismo separatista” na Galiza: é fundamentalista, fanático, dogmático, e esconde-se nas covas de Tora Bora dos locais sociais, das organizações minúsculas e sectárias, das publicações minoritárias, dos actos culturais desérticos, da palavra arcana. O “fundamentalismo lusista” tem os seus líderes clandestinos, organizados numa detalhada hierarquia militar, e cada vez mais massas ignorantes são educadas nesse fanatismo nos campos de treinamento consentidos dos foros do PGL ou de Vieiros, o novo Afeganistão.

6.

Em conclusão, estes são só alguns dos significados ideológicos da expressão “O fundamentalismo lusista”. No fundo e na forma, a expressão, se utilizada num texto público, é um ataque directo ao projecto reintegracionista de unidade da língua da Galiza, Portugal, o Brasil e outros países. A expressão é um ataque não só aos “lusistas” (sejam estes quem forem), mas ao pensamento e ao debate sério sobre a unidade linguística. É um ataque ao que representa ou deveria representar, por exemplo, este Portal Galego da Língua. Dificilmente uma expressão tal poderá ser nunca interpretada como um fragmento de diálogo sobre a questão da língua na Galiza.

Por fim, se se me permite uma metáfora inevitavelmente derivada do próprio contexto discursivo donde surge o ideologema que discuto, escrever “O fundamentalismo lusista” num contexto público formal é apenas uma explosiva manobra discursiva de fragmentação. É uma tentativa de fragmentação de um campo que, sem dúvida, manifesta dissensões internas, mas que também está unido socialmente por práticas e experiências comuns frente a outro campo social. Dizer “O fundamentalismo lusista” é uma tentativa de fragmentação de um campo social onde a gente se define de maneiras diversas, até variáveis, raramente imanentes, e onde os significados das etiquetas fundantes “lusista” e “reintegracionista”, ou de “luso-reintegracionista” ou “lusógrafo”, continuam sujeitos a negociação após muitos anos. O uso da expressão, a tentativa de fazer existir uma indefinida realidade tal na sociedade galega, é também uma tentativa de forçar o auto-posicionamento dentro do campo pretensamente representado (de “interpelação”, que diria Althusser), de divisão, de construção de minorias e facções dentro das minorias e facções: é uma tentativa de forçar a internalização de dicotomias classificatórias (“fundamentalista/não fundamentalista”, “lusista/não lusista”), num processo ad infinitum comparável em procedimento à exaustiva classificação que os discursos totalitários impõem sobre os sujeitos inferiores (a detalhada racialização da população no nazismo, por exemplo).

Evidentemente, não é desejo meu que tudo isto seja assim: nenhuma pessoa interessada em compreender a situação da língua na Galiza deveria utilizar nunca uma expressão como “O fundamentalismo lusista” para argumentar qualquer cousa séria sobre o “lusismo” ou contra ele. Mas tudo o exposto é o que o meu (limitado) conhecimento dos recursos pragmáticos da língua me diz sobre como se constrói retoricamente a Propaganda e até o insulto.

O Paradoxo de Grande-Marlaska

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Os paradoxos lógicos, semânticos ou pragmáticos (linguísticos em geral) têm grande tradição em filosofia da linguagem e até na vida diária. São contradições contidas em expressões do tipo “Isto não é uma oração”, ou “Este enunciado não é verdade”. De meninho brincávamos ao jogo dos pronomes com trocas regueifeiras do tipo: “Eu sou eu, tu és tu, quem é mais parvo dos dous?” “Tu”. “Por isso, TU”, “Não, TU. TU és TU, EU sou EU”. Agora uma actuação do Juiz da Audiência Nacional de Espanha Fernando Grande-Marlaska dá pé a um novo paradoxo pragmático-jurídico, o Paradoxo da Ameaça, ou Paradoxo de Grande-Marlaska. Consiste em que, entre as imputações acrescentadas a líderes de Batasuna por “ameaça terrorista”, incluem-se as declarações de Joseba Permach de que um encarceramento dos líderes independentistas poderia acarretar um “bloqueio” ao chamado “processo de paz” em Euskadi.

No Paradoxo de Grande-Marlaska entra em jogo uma interpretação peculiar do que constitui uma ameaça. Se eu digo: “Vou-te matar”, isso é uma ameaça. Se eu digo “Se te topo pola rua, mato-te”, isso também é uma ameaça, porque tu não podes (nem tens qualquer obriga moral) evitar ser encontrado casualmente. Também é uma ameaça “Se continuas a vestir de laranja, mato-te”. Porém, se eu digo: “Se continuas a bater em mim para matar-me, mato-te eu”, isso não é uma ameaça: é uma advertência, que inclui uma condição. O meu interlocutor é responsável de cumprir ou não a condição, e eu, de cumprir ou não o acto negativo futuro. Também é uma advertência: “Se continuas a bater em mim para matar-me, os meus amigos vão matar-te, queira eu ou não”. Por fim, se eu digo: “Se continuas a caminhar polo abismo, vás matar-te”, isso é um aviso: eu não sou responsável de nada. No triplete ameaça-advertência-aviso, a questão crucial, portanto, é a da capacidade e a responsabilidade de cumprir os actos presentes e futuros: os meus e os teus. A violência de género, por exemplo, é um ciclo crescente de ameaças disfarçadas de pretensas advertências: “Matei-na, sim; já lhe advertira que não saísse com outro”.

No terreno político do Estado, a manipulação do sentido da “ameaça” não é nova. O Estado Espanhol e os meios de comunicação têm feito interpretações singulares de certos actos de fala políticos como ameaças. Em 1996, EL PAÍS intitulava uma notícia sobre um grande rebúmbio do momento desta ilógica maneira: “Anguita amenaza con pedir la república, el federalismo y la autodeterminación” (EL PAÍS, 15 Setembro 1996, p. 17). O contexto eram as declarações de Julio Anguita, então Secretário Geral do PCE e de Izquierda Unida, no sentido de que o seu grupo reclamaria a República para Espanha se a Constitución monárquica continuava a incumprir-se em termos de direitos básicos como a vivenda e o trabalho. Argumentava Anguita que a aceitação da monarquia fora uma concessão subordinada ao desenvolvimento (ainda hoje inexistente) destas políticas sociais de rango constitucional. Nesse contexto, a expressão “ameaçar com pedir” de EL PAÍS não é só manipuladora e absurda, mas risível. Isso significa que o Estado é tão débil e o ameaçante peticionário tão forte que, por exemplo, com só reclamar que Juan Carlos de Borbón marchasse a viver a um piso da Castellana como cidadão comum isto já se daria conseguido. Oxalá ameaçar consistisse nisso: Pola presente eu ameaço agora, como George Brassens nos dourados 1960: “Je déclare l’état de bonheur permanent”.

No Paradoxo de Grande-Marlaska, a peculiar visão do acto da “ameaça” reflecte-se na interpretação das palavras de Joseba Permach: Se os líderes independentistas são encarcerados, o chamado “processo de paz” em Euskadi poderia bloquear-se. Permach teria advertido contra as “interferências” do poder judicial a este processo. É curioso que estas palavras (que expressam uma possibilidade real, de sentido comum) contenham uma ameaça imputável judicialmente, e outras opiniões políticas não. Declarações semelhantes, que podem ser vistas no terreno da argumentação como tentativas de coacção política à “independência do poder judicial”, foram feitas por Conde-Pumpido, acho, quando instou os juízes a interpretarem a lei à luz do novo contexto político do Estado. Também são feitas a diário polo PP quando urge que o poder judicial não leve em conta o novo contexto político, o qual (dizem os que sabem) iria contra o próprio espírito da função judicial.

Mas o passado continua. Seguindo o Paradoxo da Ameaça de Grande-Marlaska, talvez o então vice-presidente Mariano Rajoy ameaçasse com bloquear o processo eleitoral na noite do 13 de Março de 2004, quando declarou por televisão sobre as manifestações contra as sedes do PP: “El Partido Popular ha denunciado estos hechos ante la Junta Electoral Central, que es la autoridad competente en garantizar la pureza del proceso electoral. Estamos esperando a que se tomen las medidas pertinentes que aseguren que el proceso electoral se pueda celebrar en el día de mañana en libertad y sin coacciones” . O conjuntivo é um modo verbal muito interessante. Eu interpretei a advertência como um anúncio eleitoral da rebeldia activa contra o governo espanhol (o facto é que, até então, meia Espanha nem estava informada das concentrações; depois da intervenção de Rajoy, muita mais gente saiu à rua); interpretei que esses factos poderiam chegar a ser uma escusa por parte do PP para deter temporariamente umas eleições perdidas. Precisamente por isso, refusei sair à rua a pedir explicações a um governo por outra parte alheio. Dias depois, Almodóvar declarou que essa noite o PP estivera a ponto de dar “um golpe de estado”; mais adiante retractou-se da sua intuição incomprovada. Do processo aberto polo PP contra Almodóvar pola sua pretensa acusação, nada se sabe.

Numa aplicação psicótica do Paradoxo de Grande-Marlaska, também 10 milhões de pessoas em Espanha teriam ameaçado o governo de Aznar quando clamavam que, se as tropas espanholas continuassem no Iraque, o terrorismo islamista poderia agir em Espanha, como fez. Por último, polo Paradoxo de Grande-Marlaska, pergunto-me se será ou não uma “ameaça para bloquear o processo de paz” a manifestação convocada no 10 de Junho pola Asociación de Víctimas del Terrorismo contra o diálogo de paz entre o Estado e a ETA. Será ameaça a Espanha a “realidade nacional” andaluza, mas não ameaça à Galiza a “Nación indivisible” espanhola? Em definitivo, desde as suas origens, a España monolítica apresenta-se a si própria como uma sociedade constantemente ameaçada, desde fora e, sobretudo, desde dentro: maçons, judeus, “moros”, “rojos”, operários, grevistas, “separatistas”, bascos, “terroristas”, comunistas, feministas, anarquistas, homossexuais, “afrancesados”, “lusistas”, ciganos, ateus, “islamistas”… You name it!, como se diz em espanhol. Será, pergunto eu, que essa perene sensação de ameaça às essências pátrias surge da falta de legitimidade histórica do Conjunto Booleano España?

Mas, enfim, por que algumas admonições sobre actos negativos futuros são ameaças e outras não? A natureza chave da ameaça reside na capacidade do ameaçador de fazer ou não o acto futuro. Portanto, é capaz Batasuna de cumprir a “ameaça” de “bloquear o processo de paz”? Para Grande-Marlaska, calculo, Permach ameaça porque ele ou o seu “contorno” são capazes de “bloquear o processo de paz” com actos de violência. Suponho que só isto tem em mente Grande-Marlaska, porque se “bloquear o processo de paz” significa não negociar politicamente, isso já o está a fazer o Estado Espanhol: a disposição visível por parte do executivo espanhol é negociar com ETA antes que com Batasuna; pode-se negociar com ETA, que é ilegal, mas não com Batasuna, que é ilegal. Se Grande-Marlaska já decidiu que Batasuna é ETA, o que não compreendo é que não encarcere os seus líderes de vez, porque qualquer opinião de Batasuna-ETA contra o Estado vai ser sempre um delito de ameaça terrorista: como o “delito de opinião” não existe em Espanha, haverá que chamá-lo “injúrias ao Rei” ou “ameaça terrorista”. Polo contrário, se Batasuna não é ETA, vaiam ou não à cadeia os líderes independentistas, não por isto haverá “bloqueio ao processo de paz”. A minha impressão é que, se ETA já decidiu deixar de matar, e o Estado já decidiu que ETA deixasse de matar, continuarão a negociar-se as condições da rendição militar, o último capítulo desta longa Guerra Civil Espanhola de 70 anos (os espanhóis amam as efemérides). Como a questão basca sempre foi tratada militarmente polo Estado, haverá mesa de partidos bascos também, mas não haverá nem reconhecimento do direito de autodeterminação, nem da “integridade territorial” de Euskal Herria, esses dous monstros que o espanholismo aduz sempre como as bases inamovíveis da estratégia do terror. Porque, afinal, trata-se de que as palavras dos manifestos e acordos do “processo” forneçam as escusas suficientes para ilusões a duas bandas. E já há passos nesse sentido: o comunicado da ETA do Março passado (Gara, 22 Março 2006, p. 3) repete a ambígua expressão “cidadãos [e cidadãs] bascos” como o agente principal do “processo”. Idos são, portanto, os tempos do nacionalismo étnico: todos sabemos que o cidadão é o sujeito político de um Estado. Mas, como o Estado basco não existe, quem serão para ETA esses “cidadãos bascos”? São “cidadãos bascos” os cidadãos de um inexistente estado basco? Ou os cidadãos dos estados espanhol e francês que são bascos? Eu intuo que o segundo, o qual implica um inconfessável reconhecimento por ETA do estatuto de cidadania dos bascos nos dous estados. Enfim, ETA saberá o que pensa dos seus “cidadãos bascos”, se é que pensa. Afinal, se tudo isto acaba em derrota da ETA sem direito de autodeterminação, terá-se demonstrado mais uma vez que ETA sempre foi uma cousa (um exército) e o independentismo basco outra.

Mas, voltando à responsabilidade nas ameaças, o Paradoxo de Grande-Marlaska consiste num estiramento vertical dos hilillos como de plastilina do sentido, pola zona onde “ameaça”, “advertência” e “aviso” mais se confundem. O Paradoxo de Grande-Marlaska, de inspiração preventiva, quer significar: “Para previr a violência, eu encarcero-te pola ameaça de dizeres que se te encarcerasse poderia haver violência”. O Paradoxo é paradoxal porque contém a impossibilidade da sua auto-comprovação, a impossibilidade de provar as relações entre a condição de advertência (“se somos encarcerados”) e os hipotéticos actos futuros de violência. Vejamos as possibilidades, supondo que o motivo alegado para o encarceramento de Permach fossem exclusivamente as suas palavras.

Primeiro, (1) suponhamos que Permach não fosse encarcerado polas suas palavras. Se depois (a) houver violência de ETA, esta não seria logicamente imputável às palavras de Permach, que condicionam o “bloqueio do processo” ao encarceramento. Contudo, temo que o PP argumentaria que apesar da cedência do Estado, a “ameaça” cumprira-se. E (b), se não houver violência da ETA, nunca se poderia demonstrar que as palavras de Permach foram uma ameaça incumprida. Contudo, temo que o PP argumentaria que o Estado cedera perante a “ameaça”. Conhecemos essa ladainha circular desse espanholismo.

Agora, (2) suponhamos que Permach sim que é encarcerado. Se nalguma altura depois (a) houver violência da ETA, alguns veriam uma relação causa-efeito. De qualquer modo, o Paradoxo de Grande-Marlaska seria a self-fullfilled prophecy, uma profecia auto-cumprida. Mas ficaria a dúvida razoável se a melhor maneira de previr o cumprimento duma “ameaça” é levar a cabo as condições para o seu cumprimento, sob uma interpretação particular das opiniões políticas como ameaças. Polo contrário, (b) se não houver violência da ETA, teria que admitir-se que não houvera antes qualquer ameaça nas palavras de Permach. E ele deveria ser excarcerado como imputado de uma ameaça inexistente. Mas, quando? Quando rompe internamente por ilógico o Paradoxo de Grande-Marlaska? Quando exactamente deixa uma ameaça incumprida de ser portanto uma ameaça?

Em resumo, na minha opinião, em nenhuma destas quatro soluções possíveis do Paradoxo de Grande-Marlaska, fundamentada no sofisma de que Batasuna é ETA, a identidade entre elas ficaria demonstrada fora de toda dúvida razoável. E a relação entre pretensa causa (“ameaça”) e efeito (“bloqueio do processo de paz”) ficaria também sem demonstrar. O problema é que, em política e nas ciências sociais, o tipo de relações a várias bandas entre palavras e actos é-che uma cousa muito rabuda de estabelecer. Uma cousa são as opiniões (como este texto), e outra os factos. A historiografia está cheia de “análises” que concebem estas relações como se falar e agir fosse comparável ao acto físico de atirar uma bola contra o chão e que ela rebote. Temos palavras e temos actos, coocorrentes ou em sequência; às vezes ambos procuram coaccionar aspectos da vida social; às vezes há ligações causais, às vezes não. E temos sangue ou não temos sangue, trágico sangue, bombas, disparos, cárceres e metralha, e muitas outras formas de violência. Sobretudo isso é o que temos ou não temos. A mim nunca uma palavra, nem as de um Rei, me feriu a pele.

Reflectir cuidadosamente sobre estas questões não só é um exercício de saúde: deveria ser um requerimento para juízes e políticos. Os meus alunos e alunas e mais eu debatemo-las nas aulas, sem acreditarmos na Verdade, e aprendemos como os humanos procuramos encarcerar-nos com a linguagem e sob a escusa da linguagem.

Da Nación à nació, e tiro porque me toca

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O discurso referido consiste em reproduzir literal ou indirectamente palavras emitidas ou escritas por outra pessoa ou pessoas. Nalguns dos seus tipos, a citação é introduzida com um dos verbos de dição, ou verba dicendi, do tipo dizer, comentar, perguntar, etc. A fórmula pactada entre o PSOE e CiU para o preâmbulo do novo estatuto catalão é um destes casos de discurso referido:

“El Parlamento de Cataluña, recogiendo el sentimiento y la voluntad de los ciudadanos, ha definido de manera ampliamente mayoritaria a Cataluña como nación. Esta realidad nacional tiene su traducción en el artículo 2 de la Constitución Española, que define a Cataluña como nacionalidad”.

A formulação contrasta com a aprovada polo parlamento catalão na proposta de Estatut, que incluía as expressões “La nació catalana…” e “Catalunya es una nació”. Vale a pena comentar brevemente as implicações e significados da nova fórmula pactada. Por que esta citação dos actos linguísticos do parlamento catalão?

O novo estatuto catalão deve ser aprovado agora polas Cortes espanholas, quer dizer, por “España”, não polo próprio sujeito catalão que redigira a primeira proposta. O acordo PSOE-CiU significa que “España”, como conjunto da cidadania do Estado, não se compromete com a auto-definição de Catalunha (conjunto da cidadania catalã) como nação. “España” só pode definir-se a si própria, como “Nación”, com maiúsculas (preâmbulo e artigo 2 da Constitución), e, como entidade indivisível, pode também definir os territórios que a compõem, como “nacionalidades y regiones” (dum ponto de vista social e histórico) ou “comunidades autónomas” (dum ponto de vista administrativo e jurídico). “España” sim que pode, porém, fazer constar (declarar) como se define uma parte da sua cidadania. Eis o sentido discursivo do acordo entre as partes.

Com efeito, a atribuição da definição de Catalunha como nação ao seu parlamento, não às cortes do reino, situa-se no polo “descrição” da dicotomia “descrição / definição”, como argumentou o governo espanhol. Por outras palavras: o preâmbulo descreve uma definição nacional. Reparemos que descreve também esta auto-definição de Catalunha como “real”, na expressão “Esta realidad nacional”.

Mas, o que acontece, por sua parte, com a caracterização nacional de “España” na Constitución Española? Talvez surpreenda saber que o vocábulo “Nación” só aparece duas vezes, e que o adjectivo “nacional” aparece apenas 5 vezes em 169 artigos: nas expressões “soberanía nacional” (art. 1.2, soberania que recai no “Pueblo Español”), “territorio nacional” (art. 19), “Patrimonio Nacional” (art. 132.3), “interés nacional” (art. 144) e “política económica nacional” (art. 148.13). Por sua parte, o adjectivo “estatal” aparece 13 vezes. Evidentemente, todos os usos de “nacionalidad” se referem ao estatuto jurídico dos cidadãos espanhóis, e “internacional” às relações entre o Estado Espanhol e outros estados. Por outras palavras: na Constitución Española, “nacional” parece ser sinónimo de “estatal”. A força jurídica de ser “Nación” deriva das competências auto-atribuídas ao Estado, não da palavra em si, nem na auto-definição.

Quanto ao jogo discursivo “descrição / definição” da “Nación Española”, também o preâmbulo da Constitución é descritivo, e também é um exemplo de discurso referido. O Título Preliminar começa, imediatamente antes do preâmbulo:

“DON JUAN CARLOS I, REY DE ESPAÑA,
A todos los que la presente vieren y entendieren, sabed:
Que las Cortes han aprobado y el Pueblo Español ratificado la siguiente Constitución.”

Quer dizer, o chefe do estado constata e faz saber que o parlamento e senado espanhóis aprovaram que “La Nación Española, deseando establecer la justicia, la libertad y la seguridad…”. Como no caso do Estatut, é o parlamento correspondente que define o país como uma nação, e o “povo” que o ratifica. A Constitución descreve estes factos.

Pragmaticamente (e argumentativamente) o procedimento para definir “España” como uma nação na Constitución é o que se chama uma pressuposição existencial: não se afirma que “España es una nación”, mas pressupõe-se (dá-se por certo) este facto “real” a meio do artigo definido “La”, que abre o que se chama uma expressão referencial definida. Quer dizer, “La Nación Española” faz-se existir no mundo real polo simples facto de mencioná-la como uma entidade singular identificável e distinta de outras. Da mesma maneira, na proposta inicial de Estatut, “Catalunya” faz-se existir como nação polo sua menção na expressão “La nació catalana…”. Este procedimento eliminado, de facto, era mais forte argumentativamente do que a definição ‘X é Z’ (‘Catalunya es una nació’), pois uma aseveração pode ser questionada explicitamente como verdadeira ou falsa. Finalmente, uma diferença entre Constitución e Estatut é que, no acordo PSOE-CiU, há uma exenção de responsabilidade, por parte de “España”, da definição da “realidad nacional” de Catalunha, tenha esta auto-definição a força veritativa que tiver (seja “verdadeira” ou “falsa”) e a força jurídica que eventualmente poderá ter.

Em conclusão, se o acordo PSOE-CiU prosperar, a diferença entre Estatut e Constitución não residirá na questão da descrição/definição nos respectivos preâmbulos, como às vezes se argumenta. Sim que o vocábulo “nació” desaparece do articulado, o qual parece coerente com a identificação “nación=estado” que se dá na Constitución, visto que, segundo a fórmula pactada, a única identificação possível do vocábulo catalão “nació” é o vocábulo espanhol “nacionalidad”. Contra o que declarou Zapatero, não parece, portanto, que esta “España” possa chegar a ser juridicamente uma “nación de naciones”, em espanhol, mas só uma “Nación de nacions/nacións/nazioak/etc.”, em todas as “lenguas españolas”: um Estado Nacional composto de “nacionalidades”. Cada cidadão poderá dizê-lo livremente na sua língua, mas a semântica política dominante é a da língua espanhola.

Em termos discursivos, o acordo PSOE-CiU sobre esta questão é uma solução inteligente. E em termos políticos, parlamentares e de propaganda pública (permito-me opinar), ainda mais: representa uma derrota do nominalismo efectista (aquele que só aspira a um “reconhecimento” abstracto da “realidade nacional” na língua doutrem), um reforçamento da forma unitária do estado monárquico (que impede a autodeterminação), e uma tentativa de caneio total a ERC. Nunca se deve infraestimar a inteligência de parte do nacionalismo espanhol. Talvez no novo Estatuto galego se pudesse obter a mesma fórmula fantasmal (e os três partidos parlamentares tão contentes, que o jogo continua), se não for porque não está comprovado que o PP seja inteligente. Como outras vezes, talvez a compensação da previsível derrota do PP no parlamento de “España” seja a sua vitória na Galiza, impedindo o acordo. Se for assim, neste jogo da oca, “Galicia” não chegará a ser ambiguamente “nación” (que, além, não se sabe se está em galego ou em espanhol), embora todos saibamos que em Panlíngua Trescientos Millones “a nación galega” só deveria ser sinónimo de “una nacionalidad administrativa de la España indivisible”. Mas é que, por não acatar, o PP nem acata a peculiar língua espanhola.

Matar mulheres pobres com palavras

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Vi várias vezes o vídeo do assassínio de María Rosario Endrinal Petit a mãos de Ricard Pinilla, Oriol Plana e Juan José M. em 16 Dezembro 2005 em Barcelona, para procurar compreender melhor os signos da barbárie. No acto, paradigmático de uma vesânia diária assumida polos mentecaptos como “incidentes isolados”, concentram-se três contrastes básicos de sentidos que articulam a dominação na sociedade do Capital (polo menos nesta; talvez noutras também, dirão os ultraliberais; mas eu não vivo noutras, e outras barbáries não exculpam esta). Um cabeçalho assim resumiria os eventos: Três homens jovens de classe meia-alta assassinam uma mulher maior pobre. Três contra uma, homens contra mulher, juventude contra madurez, mais ricos contra mais pobre. Maiorias, guerra de género, guerra de classe, guerra de corpos. Números, testosterona, força, armas: tudo encaixa. Só falta o elemento étnico, presente noutros ataques nas ruas das metrópoles do Reino.

Dous jovens entram num caixeiro automático de La Caixa, baluarte do capital nacional catalão, onde a mulher se dispunha a dormir. Insultam-na, agridem-na, um terceiro mercenário incorpora-se ao ataque, e finalmente os três matam-na prendendo-lhe lume com dissolvente. A câmara de “segurança” vigia que ninguém roube euros: está desenhada para proteger a propriedade. A vítima, sem dúvida, cometera muitos delitos: Era mulher, era desapossada, não ia limpa, e okupara com o seu corpo o recinto sagrado do caixeiro automático. Durante um tempo, ela conseguiu refugiar-se dos atacantes fechando-se por dentro. Mas enganaram-na, fingindo que um terceiro jovem queria entrar para levantar dinheiro. Cash, recendente cash. Ela acedeu ao inviolável direito (era, também, ex-trabalhadora de La Caixa) e abriu. Isso foi a sua tumba. As imagens revelam o rosto mirrado da assassinada, os rostos límpidos e penteados de dous dos homens. O terceiro rosto, de 16 anos, é mantido oculto informaticamente. Será por “respeito à imagem do menor”, é lógico: O pretenso assassino tem pretenso rosto. Os verdadeiros terroristas, de rosto em cartaz, são sempre estrangeiros, bascos e “moros” infiltrados no corpo nacional. E, além, aos 16 anos não se mata: brinca-se. Mostrar o rosto do assassino seria vulnerar os seus direitos. O cadáver, porém, já não os tem.

Os cépticos dirão que, mais uma vez, leio demais nos actos sociais. O assassínio poderia ter acontecido noutro lugar. O morto poderia ter sido um homem. Os assassinos poderiam ter sido também esfarrapados. A vítima poderia ter sido rica. Isto também acontece. Certo. E esses actos também significam. Mas há neste crime uma sobredose de sentidos sociais que o singulariza. Ele materializa com cheiro a carne queimada as palavras que amiúde escutamos e lemos, em distendidas conversas de café no trabalho, em jocosos comentários jornalísticos que se permitem dar a volta aos discursos progressistas como se estes já estivessem superados pola história, ou em nojentas mensagens nos foros de grilos da Internet, incluído este portal. Embora as palavras não causem o mundo, há quem diga, de ópticas diversas (Teun Van Dijk, , Ruth Wodak, Noam Chomsky, George Lakoff, Naomi Klein), que elas abrem as portas aos actos mais brutais. Ou que, polo menos, a relação entre actos, ideias e palavras é densa, e merece ser examinada. Localizemos onde localizarmos a fonte do assassínio (na cognição, nos discursos, nas relações materiais, em todos estes lugares), o facto é que a misoginia violenta, o classismo e o racismo proliferam cá e lá disfarçados de crítica pós-crítica, como se hoje em dia ser inteligente consistisse em, torpemente, esforçar-se por ir além dos discursos da igualdade. E os ultradireitistas do sociodarwinismo liberal esgrimem estúpidas etiquetas acusatórias, como a de “buenismo”, com que pretendem conjurar o seu monstruoso modelo económico e social, recriminando às vozes críticas de que estão a lamentar-se inutilmente. De que não vale a pena gritar. De que colocar-se eticamente apenas de um lado da geometria da dominação social é outra forma de paternalismo, porque (supõem os liberais) a glória da sofisticação na análise é mais importante. Já sabemos: para eles, é a pretensa sofisticação, não a crítica ética, que confere esse triste brilho fálico que procuram. Porque, afinal, sempre haverá mulheres pobres, e sempre haverá quem as mate. Afinal, algo teria feito a vítima. Afinal, os homens também são vítimas. Afinal, as mortas também são culpáveis.

Esse falso cepticismo, esse cinismo, é nazismo em estado puro. Ele proclama a supremacia dos corpos (masculino contra feminino, rico contra pobre, “branco” contra “preto”, “guapo” contra “feio”, “macho” contra “afeminado”), distorce o sentido da diferença, e glorifica a desigualdade económica e social a apresentá-la como uma insuperável evidência histórica. Também os três assassinos de Barcelona faziam piadas xenófobas, classistas, misóginas e homófobas nas suas conversas quotidianas. Faziam-nas como se aqui não se passasse nada, como se houvesse que rir sempre as graças dos nazis de qualquer origem, as que lemos amiúde cá e lá. Daí a assassinatos como o de Rosario Endrinal só há um par de passos. Hitler começou com palavras deglutíveis para a sua sociedade. Ser nazi não é só levar uma esvástica tatuada no peito: é também não ter mais nação nem mais língua do que um ódio de macho amargurado contra o poder da diferença, um projecto de extermínio. Nazis fora da História, já.

A rapidez do Discurso

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Em 48 horas, a Guardia Civil espanhola deteve dez membros da Assembleia da Mocidade Independentista vulnerando locais sociais de base, os detidos e detidas foram acusados de figuras estranhas, os jornais publicaram nomes e fotografias, as rádios arejaram análises e entrevistas, os políticos fizeram declarações das quais não se arrependerão, a web da AMI foi sequestrada pola Guardia Civil, outras foram obstaculizadas (como fechar o microfone a um orador; como faz a Radio Martí dos EUA interferindo as emissoras cubanas), a Internet e os correios electrónicos encheram-se de notícias, comunicados e protestos, houve concentrações, cartazes, panfletos, os dez detidos foram libertados provisoriamente, as rádios anunciaram-no sucintamente, e hoje é Quarta-Feira e continuam as nuvens. A rapidez do Discurso, que é também acção, ultrapassa a medida humana do tempo necessário para reflectir sobre os significados. Campanha político-policial-mediática, cortina de fumo diante do processo 18/98 do juiz Garzón, criminalização do nacionalismo, interferência nos processos de reforma estatutária, criação de fissuras no crescente soberanismo galego, em definitivo alti-baixos emocionais nesta versão distorcida da Política a que o Reino e ocidente nos têm habituados. Táctica deliberada, improvisação ou erro, já ninguém o sabe. Há tempo que o determinismo histórico morreu. Mas os factos e os efeitos estão aí, e não deveriam minimizar-se nem, muito menos, ridiculizar-se. Seria tentação qualificar a “Operación Castiñeira”, com Ñ espanhol, de absurdo fiasco. Se assim fizermos, estaríamos absorvendo (mais uma vez) o discurso hegemónico sobre a necessária Seriedade das forças da ordem: Olha aí, a polícia espanhola nem deter sabe, e são os salvadores juízes os que por fim situam as cousas no seu ponto, pois não há tais indícios de “terrorismo”, que alívio. Até Nós-UP se congratula da libertação dos detidos, como se esta libertação indicasse liberdade. Calculo que ré-encontrar companheiros é sempre gratificante, mas Madrid não é o único exílio. Esta ré-legitimação do sistema judicial espanhol pode ser calculada, pode não sê-lo. Em todo o caso, a arbitrariedade no disciplinamento foi sempre uma das características políticas do fascismo. Literalmente, do fascismo. Com Franco nunca se sabia quem podia ser detido ou não, nem por quê. Guantánamo não é apenas um reino remoto, mas uma ordem mental. O meu telemóvel pode estar em lista negra ou intervido, e eu sei por que facto trivial. O teu também. Não me preocupo grandemente, mas não estou habituado a dar as chaves das minhas gavetas a um estranho de uniforme. A imunidade do corpo, que é a nossa mente, onde reside a gloriosa Liberdade de Expressão, é já assunto do passado. E nós, a vê-las vir, porque os números eleitorais já nos cegam a necessária lucidez visionária. Sim, visionária (espero pacientemente os insultos), porque, chegados a este nível de cegueira, sermos visionários consiste simplesmente em vermos exactamente o que existe: uns empregados do Estado com passa-montanhas irrompem na sagrada propriedade privada a roubarem papéis, computadores e dinheiro. Levam dez pessoas para Madrid sem o seu consentimento. Acusam-nas de fazer cousas, em linguagens que os detidos talvez nem compreendam: a noção de “delito” remete para uma ordem total compartilhada, e assumir a noção pressupõe inscrever-se voluntariamente nessa ordem. Não se pode exigir que a mente do Reino entre na mente da AMI, é excessivo. Até os ultraliberais sabem intimamente isto, embora amiúde ajam como polícias. O que se pode exigir, sim, é que a arma do polícia não me mate, porque eu não pedi ingresso nesta guerra, neste tipo de guerra. Nem que a bomba de gasolina estoure no teu nariz, porque tu não pediste entrar neste tipo de guerra. Claro que somos também culpados, mas este tipo de guerra não se merece. Mas, que fazer, se o terror é semeado ocultamente, polos bispos, contra uma infância forçosa em cárceres educativos teocráticos. Que fazer se o terror adquire mais tarde a máscara de uma bomba de fósforo branco que monstruosamente abrasou corpos, de outra bomba que felizmente não cortou a carne, ou de um sequestro legal na manhã cinzenta de Compostela. Tudo é o mesmo terror, senhores polícias: não foram as vítimas quem inventaram as bombas. O Modelo foi criado por vós, e ainda vos funciona. Parabéns, tristes parabéns: bem sabedes que isto não é só um telefilme. Por isso, desde a distância do Discurso, eu creio compreender o que é um ataque físico de terror, deixar de respirar, e intuo que Maria A. nunca o perdoará. Porque ainda resta futuro, e exércitos de vários lados quererão forjar mais cicatrizes para medalhas. E a gente continuará a sofrer um excesso de abnegados funcionários da bala, heróis, salvapátrias. Saber isto não ajuda a compreender-nos politicamente, mas é quase o único que podemos constatar. Em toda lógica, daí à soberania da mente deveria restar pouco. Mas, alguém confia nesta frase?

Construindo a “fraude” com palavras: As declarações de Fraga Iribarne

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As declarações de Fraga Iribarne depois das eleições (19-6-2005) sobre uma hipotética “fraude” com o voto dos emigrantes e o 70% dos votos que, pensa ele, conseguirá o PP, colocam vários interrogantes preocupantes. Os comentários respondiam a uma estudada pergunta por parte de uma jornalista:

PERGUNTA: “En estas elecciones es más peligroso que nunca el tema de que se produzca un fraude en el voto de la emigración. ¿Teme el PP que pueda ocurrir esto? ¿Que manipulen los [ininteligível]?”

A resposta de Fraga contém duas partes. Transcrevo apenas a primeira, numerada por segmentos para comentá-la melhor:

RESPOSTA:

1 – “Esperemos que no.
2 – Yo desde luego-
3 – he hablado-
4 – me han llamado desde Uruguay,
5 – me han llamado desde Venezuela,
6 – todos me certifican que (el)-
7 – lo que ha salido de allí
8 – puede ser un setenta por ciento a favor nuestro.
9 – Todo depende de los restos, donde tengan que aplicarse,
10 – pero desde luego el resultado de la emigración ha sido muyyy…
11 – porque nunca, nunca- …”

Na segunda parte, Fraga defende o seu labor, e o do PP, entre os emigrantes galegos.

O discurso revela características particulares que apontam para alguns aspectos planificados previamente. Quer dizer, era esperável que alguém lhe perguntasse algo sobre a limpeza do processo do voto emigrante quando está em questão um escano crucial (o 22 por Ponte Vedra), e Fraga devia estar preparado previamente para responder isto. Isto é natural e provavelmente habitual. Mas as várias reformulações no discurso de Fraga são significativas, como se ele estivesse a procurar a expressão mais atinada ou efectiva para objectivos específicos. Em várias ocasiões, ele detém-se no meio da frase, e reformula o que vai dizer. Este padrão de auto-corrigir-se não se repete claramente no resto das respostas da sua comparecência. Vejamos:

1) “Yo desde luego- “ aponta para a expressão incompleta de uma convicção ou opinião, como “estoy convencido de que”, o “pienso que”. Isto é reformulado.

2) A expressão reformulada “He hablado-“ reforça a evidência do que Fraga vai dizer. Uma cousa é opinar, outra muito distinta é ter “provas” que provêm de experiências. Mas a expressão também fica truncada, e é também reformulada. “He hablado” é ambíguo num sentido: poderia implicar que ele mesmo, ou a sua equipa, chamaram a “Venezuela” ou “Uruguay” para conhecer a situação eleitoral; ou poderia implicar que a iniciativa da chamada surgiu de organizações do PP destes países. Fraga interrompe-se e especifica que são “os seus” (os seus subordinados; ele é presidente do PP) quem o chamaram. Isto é significativo, porque pouco antes na comparecência, Fraga deixara claro que não chamara nem a Touriño nem a Quintana, e que eram eles quem deviam chamá-lo a ele. Na hierarquia, são os subordinados os que devem chamar aos superiores. Da mesma maneira, pareceria debilidade demonstrar que o Presidente da Junta e do PP está a chamar ao seu partido no estrangeiro para interessar-se polos resultados e ver se perdiam ou não, sobretudo quando é ambíguo quem o chamou concretamente. Daí a necessidade de especificar que não foi ele quem chamou (o mais interessado na vitória!), mas os seus subordinados.

Por último, a sequência “desde Uruguay… desde Venezuela…” aponta para uma série incompleta: podemos supor que também “o chamaram” desde mais lugares (como Argentina, onde se encontra a maior parte do eleitorado emigrante), mas sempre de Latinoamérica.

3) A expressão “Todos me certifican que (el)-“ também vai ser reformulada. A conclusão poderia ter sido “el voto” ou “el resultado”. Mas adiante Fraga falará de “el resultado de la emigración”.

4) Fraga passa a reformular o anterior enfaticamente, destacando um contraste entre “allí” e “aquí”. “Lo que ha salido de allí” é o que remeteram os votantes, enquanto o implícito “aquí” é o aparelho administrativo (os correios, etc.), sob responsabilidade do Governo e do PSOE. Evidentemente, nenhum poderia “certificar” a Fraga que o que saíu dos consulados é o 70%. Portanto, Fraga está a referir-se às estimações de voto segundo os seus partidários no estrangeiro. Quanto à escolha do verbo “certificar”, não há qualquer indício para interpretá-lo num sentido literal; pode ser sinónimo de ‘assegurar’, e só destaca a firmeza da “evidência”.

5) “puede ser un 70% a favor nuestro” é uma expressão muito significativa. Os cálculos que se dão estes dias indicam que, com efeito, o PP precisaria em torno do 70% do voto CERA para garantir o escano 22 por Ponte Vedra. Que pode fazer pensar a Fraga que é essa a percentagem que obtivo o PP, quando nas últimas eleições (gerais de 2003) foi menor, e quando acaba de comprovar que o apoio percentual ao PP na Galiza também baixou? Evidentemente, os cálculos do PP (como os dos outros partidos que fizeram comparecências públicas) estavam preparados e debatidos de antemão (um candidato não faz uma comparecência pública sem saber em detalhe como andam as cousas), e Fraga sabe (ou disseram-lhe) que essa é a percentagem segura do voto CERA por Ponte Vedra para alcançar o escano 22.

Um pode imaginar, portanto, que o diálogo do PP galego com “Uruguay” e “Venezuela” foi muito distinto: nalgum momento, o PP galego chamou estes países e inquiriu e destacou, após conhecer os resultados, que se precisaria o 70% dos votos para assegurar esse escano. Poderiam as organizações do PP nestes países (ou outros interlocutores sem especificar) confirmar estas percentagens? A resposta perante “Dom Manuel” foi que sim. Como poderia ser de outra maneira? Como iam reconhecer que não, se era o caso? Mesmo se os informadores de Venezuela ou do Uruguai não confirmaram estes dados, como ia reconhecê-lo Fraga numa comparecência que poderia ser a sua despedida política? Havia que evitar que o fosse.

6) A expressão “Todo depende de los restos, donde tengan que aplicarse” incorpora um matiz novo no discurso: Fraga está a destacar a vitória do PP no voto emigrante no seu conjunto (mais ou menos 70%). Mas, evidentemente, nem o PP galego nem o do Uruguai ou Venezuela podem conhecer em detalhe para que província iriam esses votos. Portanto, Fraga parece deixar a porta aberta a que em Ponte Vedra a percentagem seja menor, porque o que parece estar em questão é esse escano 22. “Todo” (em “todo depende”) significa ‘obter esse escano’. Mas todos sabemos que isto, precisamente, não “depende”: que é em Ponte Vedra onde, ao aplicar o cômputo, se pode modificar o resultado provisório. Ou não só? Pois não só: Fraga pode estar a sugerir também que esse 70% mais ou menos deve dar-se também noutras províncias, como Ourense, onde o PSOE baralha a possibilidade de obter o escano 5 contra o 8 do PP. As palavras iniciais “Espero que no haya fraude” cobram, portanto, um novo matiz: Fraga “esper(a) que no haya fraude” também no que respeita a província de Ourense, pois só com a manutenção deste escano 8 por Ourense poderia o escano 22 por Ponte Vedra dar a maioria absoluta ao PP.

7) Por fim, Fraga matiza o seu discurso e, presumivelmente, começa a destacar de novo o bom resultado do PP: “pero desde luego el resultado de la emigración ha sido muy…”.

8) A partir daí, Fraga começa a segunda parte: Interrompe-se de novo e começa a relatar as acções positivas do PP e dele mesmo na emigração americana. Destaca o apoio para o PP, e critica os outros candidatos. Fraga menciona que talvez o evento mais importante da sua vida fosse um acto multitudinário em Buenos Aires, apresentando-se então mais do que nunca como “filho de emigrantes”.

Significativamente, esta segunda parte talvez constituísse o último acto eleitoral de Manuel Fraga Iribarne, transmitido talvez pola TVG internacional e sem dúvida pola Internet. É um discurso orientado para o exterior, para salvar a sua imagem na emigração caso de perder a maioria absoluta. Mas também parece orientado a captar votos. Captar votos quando já acabaram legalmente as votações? Por que vias?

Em resumo, a intervenção de Fraga Iribarne é preocupantemente ambígua. Apoiado numa pergunta preparada de manual, Fraga procura dar a volta ao que se entende comumente por “fraude” (votar repetidas vezes, substituir papeletas, votar por pessoas mortas, etc.), para sugerir na hipotética “fraude” uma implicação das administrações do Estado e talvez dos Consulados ou do PSOE.

O terreno discursivo está preparado para estes dias: se o PP não obtém em torno do 70% dos votos da emigração que lhe dê o escano por Ponte Vedra, a sombra da “fraude” “aquí” (não “allí”) esvoaçará sobre os resultados. Num debate da TVE2 sobre as eleições no mesmo domingo, Anxo Guerreiro apontou muito atinadamente as implicações desta sugestão de Fraga, só para encontrar que outros contertúlios (Domingo Bello Janeiro e José Antonio Portero Molina) lhe restavam ferro aos comentários de Fraga. Bello Janeiro explicou a íntima ligação de Fraga com a emigração, e Portero Molina não lhe deu “mayor transcendencia” às declarações, acrescentando que Fraga disse o 70% “como podría haber dicho el 60% o no haber dicho nada; yo creo que esto es irrelevante”. O debate sobre este assunto fechou-se, infelizmente, aí: Portero Molina passou a falar da baixa do BNG (comentada por Fraga) e da galeguidade do PSdeG-PSOE.

Obviamente, estas são interpretações. Neste dia, o Discurso ainda progride. Por exemplo, a ênfase dalguns médios nos “8.000 votos” necessários para o PP obter esse escano (uma inexactidão, porque a diferença necessária dependeria do número total de votos emitidos por Ponte Vedra, tanto internos como do CERA) também contribui para esta confusão.

Só com os resultados finais na mão, haverá que ver se o PP, caso de não obter esse escano, aproveita discursiva e politicamente a sombra da fraude. Que os três partidos parlamentares na Galiza e os meios de comunicação estejam a baralhar a expressão “fraude eleitoral” num sentido ou noutro com total normalidade revela uma preocupante concepção do sistema democrático formal. Lembram as eleições USA 2000? Mas já advertim noutro artigo que eu não sou democrata.

“Mi terrorismo”: Como as palavras denunciam a verdade

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Numa entrevista feita por Federico Jiménez Losantos em la COPE na manhã do 12 de Março passado, quando se propagandizava ainda sobre a autoria de ETA do massacre de Madrid, ao então candidato do PP Mariano Rajoy escapava-lhe um significativo lapsus linguae, que ele auto-corrigiu, mas que explica muito sobre o tratamento do “terrorismo” em Espanha. O tema era, como não! (uma vez “cancelada” a campanha eleitoral) por quem votariam os espanhóis o 14 de Março:

“Y éste [a eleição de voto] es un problema de confianza sobre el que se debaten los españoles, de a ver en quién puedo dejar… en manos de quién dejo esto: mi país, mi bienestar y mi terrorism- y y y y mi libertad y mi vida” (Arquivo sonoro: http://www.cope.es/audios/manana/entrevista2_120304.wma ).

“Mi terrorismo”. Com efeito, no confronto eleitoral entre “ETA” e “Al-Qaeda” em Espanha entrou em jogo a questão da delimitação do que é “próprio”: do que é o “nosso” terrorismo (e o que lhe convém ao Estado Espanhol) e o que é “alheio”. Não para só Rajoy, mas para a grande maioria dos habitantes do Reino, existe a convicção de que ETA representa o “nosso” terrorismo, o interno, enquanto Al-Qaeda representa o terrorismo alheio, o estrangeiro, e, assim, é denominado às vezes “terrorismo internacional”. A falácia desta dicotomia é evidente, mas funciona para reforçar a ideia de Espanha. Farei-me temporariamente espanhol e farei-me parte dum “nós” inexistente para explicá-lo.

Para começar, tanto os bascos como os árabes estão entre “nós”, em Espanha. Nas notícias sobre o 11-M distingue-se significativamente entre os detidos “marroquinos”, “árabes” ou “sírios” e os “espanhóis” (como se um árabe não pudesse ser espanhol, ou um espanhol árabe), às vezes com detalhadas etiquetas, como a de “hispano-sírio” aplicada a um cidadão espanhol desde há anos que nascera num lugar que se dá em chamar Síria. Se se argumenta que os atentados, nos que morreram tantas pessoas com passaportes estrangeiros, foram contra “Espanha”, é lógico concluir que os ataques por residentes e cidadãos espanhóis também vinheram desde dentro de “Espanha”: também foram feitos por “Espanha”. Com efeito, alguns dos implicados na matança são residentes legais de Espanha desde há muitos anos. Três deles têm um DNI expedidinho por procedimentos idênticos ao DNI de Rajoy, de Zapatero, de Otegi, ou o meu próprio. Portanto, ou “Al-Qaeda” é também em parte espanhola, como a ETA (e portanto é o “nosso” terrorismo), ou nenhuma é “nossa”: as duas são exteriores (Euskal Herria, o Islão) e atacam o estado que as ataca. Se ao nacionalismo liberalista espanhol lhe importassem um figo os estados (o Estado só deveria ser um gestor e garante da “liberdade”, sobretudo a económica), por que negar-lhe a espanholidade ao espanhol “de origem síria”, ou por que negar-lhes o seu contributo para o fabuloso progresso do país a esses residentes legais árabes, que durante décadas pagaram obedientemente os seus impostos na nossa sociedade de mercado? Semelhantes aparentes contradições deram-se nos EUA após o 11-S, para apresentar sempre o “terrorismo islâmico” como uma ameaça “externa” contra um Estado natural, essencial e nacionalmente infalível. Mas a evidência é que o atentado de Al-Qaeda foi um atentado espanhol, isto é: tão espanhol como os da ETA.

Ou, se não, tão pouco espanhol: Ou jogamos todos, ou rompemos o baralho. Com efeito, as duas redes assassinas surgem fora do país Espanha (a ETA, em Euskal Herria e Bélgica; Al-Qaeda, nos EUA e Afeganistão). Mas seguramente é mais próxima a Espanha (mais “nossa”) Al-Qaeda do que a ETA. E com isto quero dizer que o ideário (?) de Al-Qaeda é muito mais semelhante à ideologia cristã conservadora do que o ideário (?) da ETA. É curioso constatar o descenso brutal do terrorismo do fundamentalismo cristão não estatal nas últimas décadas em todo o mundo, excepto, por exemplo, nas recentes matanças em Uganda polo chamado Exército de Resistência do Senhor. Os terrorismos do estado de Israel, dos Estados Unidos e desse “actor não estatal” (como o caracterizam os think-tanks ultraconservadores) que é “Al-Qaeda” compartilham muito mais que as bombas. Compartilham sobretudo três cousas: o monoteísmo como inspiração ou justificação propagandística, a meta da expansão territorial, e a guerra santa como método para estes fins. Lembremos que a noção de “cruzada” é apenas adaptação duma interpretação parcial da noção muçulmana de jihad, que significa guerra contra outros, sim, se é necessário, mas também guerra interna (“revolução interior”) contra o Mal. Para o sionismo expansionista (não todo sionismo o é), o território de Israel deverá chegar até ao Éufrates e Tigris, em pleno Iraque actual. O Islão é nem mais nem menos que todo o imenso território do planeta onde há muçulmanos. E o território a conquistar pola cruzada capitalista cristã é o da “globalização”, pois já sabemos que o capitalismo é só a expressão moderna e genuína do cristianismo, particularmente do protestantismo. As três formas de terror, portanto, são a táctica que têm os três fundamentalismos político-religiosos principais do planeta para levarem adiante as missões dos respectivos povos elegidos. E resulta que “nós”, os espanhóis (repito o truque retórico), somos fruto destas três visões monoteístas do mundo. Israel, Al-Qaeda, EUA, deus uno e trino: Pai, Filho e Espírito Santo da trindade, em competência mútua polo papel a jogarem no planeta.

Porém, esta explicação ideológica a três bandas não satisfaz um importante aspecto da realidade: o económico. E a realidade é que o mundo em conflito na altura (o mundo a conquistar) é sobretudo as terras e mares sob os quais há ouro negro, um território que se estende do Sara Ocidental até Indonésia, passando por várias zonas “geo-estratégicas”. É assim de simples. Como podemos esperar que fenómenos da transcendência como o terror selectivo estejam desligados desta realidade económica? É lógico então que pensemos num jogo mixto de conflitos e conivências entre estas três variantes fundamentalistas polo controlo de recursos essenciais. Porque, quando a história de classes pus as suas cartas mais duras sobre a mesa, por exemplo durante o período hitleriano, demonstrou-se que os interesses económicos se sobrepõem à pretensa ideologia religiosa: judéus ricos colaboraram com os cristãos nazis ricos, muçulmanos ricos deram-lhes as costas muçulmanos palestinianos pobres, cristãos americanos ricos mataram cristãos alemães ricos e pobres, e assim por diante.

Entre o 11 e o14 de Março passados, à direita liberal e conservadora espanhola convinha-lhe que o inimigo fosse “interno” (mi terrorismo). À direita social-democrata, convinha-lhe que fosse visto como “externo”, só por necessária hidráulica eleitoral. Mas resulta que não há nada externo nem interno nestas duas formas de morte programada: as ordens para matar sempre vêm em última instância do capital. Se ETA sempre foi a escusa para a nacionalismo liberal estatal contra os interesses dos nacionalismos liberais subestatais por construírem estado, “Al-Qaeda” é o braço armado dum poderoso capital oleogárquico transnacional para atacar selectivamente estados, quer dizer, grandes corporações económicas.

Na entrevista citada, Rajoy tinha razão, mas devia ter-se auto-corrigido doutra maneira. Evidentemente, uma eleição “democrática” consiste em depositar o voto naquele grupo de poder que vai gerir melhor “mi terrorismo”. Rajoy deveria ter dito: “mi país, mi bienestar y mi terrorism– quiero decir, mi Estado”.