O tempo das desilusões

     Polas redes anda à roda estes dias um poema de Miguel Hernández em que conta como de miúdo, cada noite do 5 de janeiro, deixava no peitoril da janela da sua casa as suas esburacadas alparcas para ver se as suas Majestades lhe deixariam algo. E cada manhã do 6 de janeiro recolhia as alparcas como as deixara: vazias, desertas, geladas. Calculo que o poeta se perguntaria como era justo que, além de ele ser pobre, as suas Majestades e o mundo o punissem ainda mais sem obsequiar-lhe nada. Quero crer que experiências assim foram as que fizeram o cabreiro tornar-se comunista, porque exatamente essa é a lógica das sociedades de classes: quanto menos tens, menos terás; e quanto mais tens, mais poderás ter e terás. E no capitalismo, que é o modelo mundial dominante de sociedade de classes, não há correção possível a essa lógica da acumulação, nem posição política intermédia a respeito dela: ou és socialista e comunista, e portanto estás contra a acumulação e pola igualdade, ou não és comunista e portanto estás ao lado de Milei, com Trump e Harris, com Feijóo e Abascal, com Musk, Bezos e Ortega, com a direita alemã, italiana ou austríaca, com Zelensky, Putin e Netanyahu.

     O conto dos sapatos do meninho que seria poeta repetiu-se nestas semanas milhões de vezes no planeta. Há centenas de anos que está a repetir-se diariamente em milhões de famílias. Eu próprio o experimentei de criança com os presentes que as suas Majestades levavam ao meu bom amigo do 6º andar e aos seus irmãos frente aos que recebia a nossa família. Nós éramos numerosos para a repartição (seis crianças) e eles também (cinco), mas a indústria do pai do vizinho era do metal pesado, e a nossa, das aulas e das letras. Até nas classes há classes. Se o meu amigo e eu pedíamos às suas Majestades uma espada de romanos, o meu amigo recebia espada, couraça e casco (dum plástico cinzento e duro que acaía bem às paisagens de cartão dos filmes de romanos); eu recebia só a espada. Se pedíamos vias para montar o Scalextric, ele recebia várias, com curvas, automóveis, pontes, motores… eu só um par de treitos para completar um aborrecidísimo circuíto oval. Até as bicicletas irmãs que os dous inaugurámos num frio janeiro nos caminhos de Castrelos eram diferentes: a dele, mais grande, melhor, com suaves freios graduáveis; a minha, com mecanismo fixo de freios duros e precários que me fizeram duvidá-los toda a tarde. Certo, o meu amigo mais rico era solidário, claro, e partilhava socialdemocraticamente comigo as suas couraças romanas e as vias de Scalextric. Mas a diferença de classe era, e é, estrutural.

     Lembro algumas das escusas dos meus pais para explicarem estas injustiças: as suas Majestades não teriam entendido bem o da bicicleta… seguramente se lhes acabaram as couraças e cascos… estariam muito cansos… Quando, anos mais tarde, compreendim o engano das suas Majestades apiedei-me das difíceis mentiras dos meus pais e jurei não ter que repeti-las. Não tenho filhos, mas se tiver nunca reproduziria com eles a história das albarcas vazias, ou meio cheias, que é em termos de economia política é o mesmo. Quando vier o comunismo, que virá, falará-se das injustas personagens das Majestades e dos Apalpadores, dos Pai Natais e das bruxas Befanas como habitantes do mesmo remoto tempo mítico dos contos de dragões e unicórnios, dos reis e dos presidentes cor laranja, dos Hitlers, dos Herodes e dos Netanyahus.

Al-Israel 9/11

Publicado em Nós Diario

     Desde há mais dum mês, com eficaz regularidade, cada quatro dias Al-Israel lança um Boeing cheio de fuel contra uma enorme torre comercial de 100 andares chamada WTC com 1.500 palestinianos dentro (quase a metade, crianças) que resultam assim cruelmente assassinados. Ocidente observa-o, frente aos ecrãs de televisores e computadores, inspira com assombro quando a aeronave sulca os claros céus de outono contra a torre, grita quando a vê desfazer-se a prumo em metais, concreto, gases, pó, corpos despedidos e sangue, exclama que isto não pode ser, e continua a observar o ecrã até o próximo avião suicida de Al-Israel, quatro dias mais tarde, com eficaz regularidade. Quando se escrevem estas linhas já vão onze aviões, onze massacres, 16.000 mortes.

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A palavra vazia

 Publicado em Nós Diario

    O ataque de Hamás e outros grupos palestinianos contra a população civil israelita foi terrorismo. Deveu criar enorme terror nas pessoas que fugiam das brutais explosões. Deve ser terrorífico ser refém e moeda de troca dum grupo sabendo que a tua vida pende dum fio. A genocida devastação de Gaza polo exército de Israel é terrorista. O terror permanente rege a vida nos restos da Palestina. Esse terror vê-se nos olhos das crianças trementes que sobrevivem, e ficará marcado por vida.

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Gaza, 2023

Publicado em Twitter e Facebook

     Acho que a mente, que é sábia, impede que compreendamos o que significa “500 pessoas mortas polo ataque de Israel num hospital de Gaza”. Imaginemos, com dor, imaginemos. O melhor é a morte imediata por decapitação ou metralha no coração. A partir daí entra o sofrimento.

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Não é a lusofonia: é o comunismo

No Portal Galego da Língua

   A ideia de que só a plena reintegração do galego na lusofonia, incluída a forma gráfica, salvará o idioma da sua perda acelerada está bem estendida entre o ativismo reintegracionista. Quase diria que opinar assim é senha de identidade. O postulado tem duas versões: 1) a plena reintegração é condição suficiente; 2) a reintegração é necessária, mas não suficiente. Quisera argumentar por que esta visão é imobilista, e por que a reintegração formal na lusofonia seria sobretudo lógica (e nesse sentido, historicamente necessária), mas duma lógica diferente à hegemónica hoje; quero argumentar também que o galego se pode salvar em qualquer das suas visões e formas desde que, precisamente, se abrace essoutra lógica.

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Sobre os prémios e concursos, o valor de troca e a pseudomercantilização do simbólico

Publicado em Nós Diario, 2 de fevereiro de 2022, pp. 24-25.

     Periodicamente ocorre que se produzem posicionamentos de setores sociais, grupos e coletivos, figuras mediáticas e outros em favor de pessoas galegas que concorrem em concursos internacionais sob bandeira espanhola, “representando” España (talvez contra o seu desejo ou ideal político). Não critico em absoluto as decisões dxs participantes. Reflito sobre o sentido das situações sociais geradas.

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Defrontar o monstro

​Publicado em Nós Diario

     A crise mundial causada pola covid-19 ensina que a humanidade já não tem tempo para convencer ou ser convencida nem de que o sistema-mundo capitalista funciona, nem de que pode ser rapidamente adaptado para que funcione. As desigualdades estruturais inerentes e necessárias ao capitalismo (sem elas não há injusta acumulação) continuarão a manifestar-se em desigualdades no grau de devastação do vírus: morte, miséria, aumento da pobreza e da riqueza (maior concentração de capital), em resumo, destruição  generalizada não necessariamente criativa(esse mantra). Dirá-se que ao Capital pouco lhe importam estes efeitos, porque sempre se salva. Mas com um inimigo da forma da pandemia atual (e nem imaginemos outro patógeno ainda mais daninho, que chegará) as consequências podem ser imprevisíveis, e podem afetar ao próprio tecido do capital. Massas de pessoas podem deixar de ser recrutadas para a produção maciça, que já se está a ver ressentida, e os circuitos de distribuição dos bens podem danar-se; e sem produção (roubo do trabalho) nem distribuição e consumo (realização do valor) não há acumulação. O dinheiro, em montanhas de capital fictício, pode apodrecer nos bancos e nos investimentos fantasma, pois sem atividade económica não há onde queimá-lo. Pontualmente, grandes fortunas podem continuar, claro; mesmo crescer. Mas sem a sua circulação em concorrência com outras a maquinaria inteira da acumulação pode enferrujar-se e parar.

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Galiza, 17 de agosto, 1936-2020

Publicado em Nós Diario

     Havia muito em jogo. Por isso o mataram. Estava em jogo a recuperação da terra e da dignidade, algo que os amos nunca vão aceitar. Ou uma ou a outra, mas não ambas. Como se pudessem ir separadas. Havia um projeto, um projeto ainda nada revolucionário, de começar a auto-reger-se. Bóveda não era um comunista. Álvarez Limeses (o meu avô) não era um comunista. Nem Casal, nem Díaz Baliño. Eram pessoas que pensavam o país. Eram próximos da terra e das gentes. Por isso os mataram. Eram perigosos. Podiam anunciar o sentido democrático. Podiam mostrar como se regem as cousas, cada um e cada uma no seu. Chamava-se, com outras palavras, auto-determinação. Era o poder de, por uma vez, começar a contestar o roubo, a exploração. Eram jovens e tinham sonhos. Não tinham exércitos por detrás. Não tinham igrejas poderosas. Não tinham juízes. Nem sequer tinham leis: queriam é criá-las. Por isso os mataram.

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Boina circunflexa ou tricórnio palatal?

     As forças de segurança do estado, isto é, o serviço privado de repressão do capital, acabam de deter quatro pessoas na Galiza acusadas de pertencerem à fantasmagórica operação de Fake Reality Show Resistência Galega. Esta fase do relato por entregas chama-se, inteligentemente, “Operación Lusista”. Será porque essas pessoas independentistas colocam o circunflexo em Resistência. Então, que tenha muito cuidado a imprensa do regime — que já passou a qualificar as quatro pessoas de “terroristas” sem aguardar a sentença da Audiência Nacional — em colocar bem o circunflexo, ou qualquer dia os gorilas do capital detêm pessoal do ILG por serem de Resistencia (sic) Galega na “Operación Isolacionista”. Continue reading “Boina circunflexa ou tricórnio palatal?”

A República vai vencer

11 de setembro de 2018, Diada Nacional de Catalunya

     O desenvolvimento do processo político catalão contém uma caraterística central, nos discursos e nas práticas, que aponta para uma dada resolução futura. A caraterística é a sua ampliação, o alargamento progressivo tanto da sua base discursiva quanto, correlativamente, da sua base social, e do seu âmbito de relevância. E a resolução futura pode ser a consecução da República em, polo menos, Catalunya.

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