Publicado no Portal Galego da Língua
Na lista Assembleia da Língua, Gerardo Uz pergunta sobre o papel dos sistemas escritos na marginação dos grupos sociais. Concretamente, a questão é se a forma específica duma norma escrita afecta o seu possível conhecimento ou desconhecimento e, portanto, ulterior selecção social. Opino longamente:
1) Nas sociedades de classes a forma específica da norma escrita não tem qualquer incidência sobre o mecanismo geral de class-ificação, selecção e marginação social baseadas no conhecimento diferencial da Língua.
2) As diferenças graduais (o contínuo) de saberes sobre a língua transformam-se em categorias discretas de classificação social. Por exemplo, tanto uma pessoa que comete muitas faltas de ortografia como uma pessoa que comete muito poucas “têm faltas de ortografia”, e portanto ambas são susceptíveis de serem classificadas como “não conhecedoras da Língua escrita”.
3) O estabelecimento da fronteira entre “os que sabem” e “os que não sabem” é contingente e depende da forma particular de distribuição desigual do conhecimento. Por exemplo, entre “sábios” absolutos alguém que ignore um só facto pode ser um “burro” total.
4) Os pontos 2 e 3 acima têm um paralelo nos contínuos da fala. O que se chamam “marcadores sociais” são elementos linguísticos isolados que adquirem o valor simbólico de toda a variedade dialectal ou sociolectal a que pertencem, co-ocorram ou não com outros elementos dessa variedade. As variedades são construções mentais dos falantes: representações globais que, embora compostas de signos (sociais) individuais, operam como signos complexos elas próprias. Por exemplo, alguém que diga “dizer” e “canção” é um “lusista” (até que essas formas deixem de ser socialmente “lusistas”). Por exemplo, um “andaluz” é alguém que aspira os “s” embora não faça o resto de cousas que fazem os andaluzes na fala. Na Galiza, alguém que “fala galego” é alguém que diz uma frase com “eu”, não “yo”.
5) Portanto, qualquer elemento linguístico (oral ou escrito, “correto” ou “incorreto”) é susceptível de cobrar o valor simbólico de distinção grupal, e de se constituir num “erro” ou um indicador de subalternidade, ignorância, etc., ou de valores positivos como inteligência, cultura, etc.
6) Portanto, não há sistemas escritos mais “fáceis” ou “mais difíceis” de aprender para o seu uso se constituir em SIGNO de competência linguística e social. Na sociedade de classes, uma escrita “tecnicamente fácil” de aprender é ainda um procedimento de exclusão, porque não está garantida (é impossível) a destreza completa de todos os utentes nessa escrita.
7) O mecanismo geral de exclusão e dominação a meio da língua na sociedade de classes é paralelo aos outros mecanismos de distribuição inerentemente desigual dos recursos (materiais ou simbólicos). Na sociedade liberal-capitalista, por exemplo, o sistema educativo está desenhado para reproduzir a desigualdade sob a miragem da igualdade de oportunidades. Quando um recurso (a escrita, a língua) é oferecido para o seu aprendizado a todos “por igual”, mas afinal do ciclo educativo obrigatório básico não todos o dominam “por igual”, a explicação da diferença (já tornada em distinção hierárquica) cai sobre um leque de factores, todos relacionados com as características dos indivíduos distinguidos polo saber (os “listos” e os “burros”). Excluídas as explicações politicamente incorrectas sobre as diferenças entre listos e burros (por exemplo, que pertençam a “raças” ou grupos étnicos distintos), as obviamente erradas (as diferenças de género) e as invisibilizadas (as diferenças de classe), só resta uma pretensa explicação psicologista: o Indivíduo. Os listos (os que escrevem bem) são listos porque a sua mente é lista e trabalhadora. Os burros (os que escrevem mal) são burros porque a sua mente é burra e preguiceira. Melhor: cada pessoa é lista ou burra, trabalhadora ou preguiceira. O sistema educativo, portanto, fornece simultaneamente os recursos democráticos, as explicações do seu fracasso, e as culpabilizações inevitáveis polas hierarquias que reproduz.
8) As diferenças na aquisição da língua escrita têm muito a ver com o valor atribuído à língua escrita e de cultura polos grupos, e com a exposição dos meninhos a essa língua de cultura no âmbito familiar. Como a própria cultura está previamente distribuída de maneira diferencial entre as classes, nas classes mais cultas haverá mais meninhos mais cultos e “listos”.
9) A língua escrita de cultura distribuída na escola sempre está baseada na fala das classes burguesas meias mais cultas. A escola introduz o conflito social no seio das famílias onde a cultura escrita tem menor presença, ao oferecer ao meninho modelos de língua, de fala, de escrita e de saber que contrastam com os dos pais não educados. Sistematicamente, os meninhos de classes trabalhadoras menos cultas passam por um período de des-identificação com a língua da família.
10) A compensação por este escoramento de classe da língua escrita não pode consistir em tomar a fala das “classes populares” como modelo. Quando isto se faz, dá-se simplesmente uma ré-colocação de classe, pois, de novo, a fronteira simbólica e social entre formas da língua é absoluta: a nova norma culta supostamente baseada na fala popular torna-se em língua culta de classe. Veja-se o caso galego actual.
11) O caso anterior pode acarretar o acesso ao poder simbólico da língua para novos grupos sociais a expensas de outros, mas não representa uma alteração da lógica da exclusão de classe pola língua.
12) Em definitivo: enquanto existam as classes sociais existirão as “faltas de ortografia” e as escritas boas e más, “fáceis” e “difíceis”, os “listos” e os “burros”.
13) A solução radical é mudar o modelo social e económico e portanto o sentido social da diferença linguística oral ou escrita. A solução reformista é acatar o valor classificador da Língua, não pré-julgar e pré-classificar os grupos pola sua “capacidade” ou “incapacidade” cognitiva de ganharem acesso a essa Língua, e remover qualquer obstáculo legal e social que obstaculizar efectivamente a expressão linguística e qualquer medida que representar um agravo comparativo na distribuição de recursos comuns (o dinheiro, que vem dos impostos e o mais-valor propriedade do Estado) para qualquer forma de se expressar na língua.
14) Em conclusão, a escrita mais “fácil”, “popular”, “democrática” e universal é fazer um “o” com um canuto.
Referências básicas:
- Bernstein, Basil (1972). A sociolinguistic approach to socialization; with some reference to educability. Em J. J. Gumperz & D. H. Hymes (eds.), Directions in Sociolinguistics. New York: Holt, Rinehart and Winston, 465-497. (= Bernstein, Brasil (1996). A Estruturação do Discurso Pedagógico: classes, códigos e controle. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Luís Fernando Gonçalves Pereira. Vol. IV da edição inglesa. Petrópolis: Vozes).
- Bourdieu, Pierre (1977). The economics of linguistic exchanges. Social Science Information 16(6): 645-668.
- Bourdieu, Pierre (1982). Ce que parler veut dire. Paris: Fayard. (= Bourdieu, Pierre. Data? A economia das trocas lingüísticas: O Que Falar Quer Dizer. Trad. Sergio Miceli, Mary A. L. de Barros, Afrânio Catani, Denice Catani, Paula Montero e José Carlos Durand. São Paulo: Edusp).
- Bourdieu, Pierre (2000). Poder, derecho y clases sociales. Bilbo: Desclée de Brouwer.
- Joseph, John E. (1987). Eloquence and power: The rise of language standards and standard languages. London: Frances Pinter.
- Scherer, Klaus R. e Giles, Howard G. (1979). Social markers in speech. Cambridge: Cambridge University Press.