Sinto-me como meninho com sapatos novos. Ou polo menos assim se dizia antes, quando éramos espanhóis, não apátridas. Este é o primeiro texto que escrevo com o meu novo teclado português. Sim, um teclado de computador desenhado para escrever a minha língua. Não tem Ñ. ESTE TECLADO NÃO TEM Ñ. Não vejo um Ñ diante dos meus olhos. No lugar onde estava o Ñ, agora está o Ç. Neste teclado, o Ñ escreve-se como deve escrever-se: como um til nasal ~ seguido dum N. É assim como surgiu historicamente, e é assim como o meu teclado português o representa. A tecnologia informática sabe filologia. O Ñ espanhol procede em geral do NN latino (ANNU => año). Os listos medievais, que queriam poupar papel como eu largo de banda, punham um <n> pequeno acima de outro <n> (ou de outra letra), e isso deu em ñ. Mas no português não. No português não há Ñ, e, quando há, é português escrito à espanhola, como na Galiza espanhola, que é espaÑola. Porque o nosso som Ñ não procede dum NN latino. E a tecnologia informática sabe isto, como muitos escritores souberam e sabem isto. Sabem que Ñ é simplesmente um til nasal ~ acima dum N normal e corrente, vulgar, ordinário, que existe em muitíssimos idiomas. E a tecnologia informática, na minha língua, elimina-me portanto o supérfluo Ñ, substitui-o polo fantástico Ç que é como produto da aberrante engenharia genética do C, e faz-me trabalhar mais para escrever um Ñ: sempre deve haver esforço para escrever as letras estrangeiras. Eis a diferença: o Ç é uma letra nossa, enquanto o Ñ é um N com uma cousa rara acima.
O meu teclado português foi-me trazido de Portugal por um amigo. Eu pouco vou a Portugal, e quando vou, não vou lembrar comprar um teclado português numa tarde de sol e cafezinho junto ao Douro. Mas este amigo ia de viagem vários dias, e lembrou que uma vez eu comentara que vender teclados portugueses na Galiza deveria ser um NEGÓCIO. E ele pensou em mim (não no negócio) e ofereceu trazer-me um teclado português. O meu amigo trouxo um par de teclados portugueses para outros amigos, como antes entravam na Galiza as cousas proibidas, e como continuam a entrar agora. O meu teclado português entrou cruzando o Minho, pola mesma via do contrabando de tetraciclina nos anos 1950 que salvou a minha mãe de morrer de tifo, do contrabando de livros proibidos que tinha meu pai na sua livraria de velho em Vigo. É a mesma via dos filmes em DVD que aqui não podemos ver em português, nem legendados em português, a via das cousas próprias que o Ñ de EspaÑa nos impide ter e que entram por Internet cruzando o Minho. O meu teclado português é um produto de contrabando: sem alfândegas, com um euro comum, sem guardinhas nem guardiaciviles às portas dos dous quartos desta casa, mas contrabando ideológico igualmente. Mas não é o objecto de plástico o que entra de contrabando: é a língua. As teclas dos meus teclados serão feitas em Taiwan, mas a língua ainda não. O meu teclado português é o veículo da língua que reside nos meus dedos. E por primeira vez na minha vida não tenho que enviar esta língua aos meus poucos leitores a meio dum teclado espanhol ou inglês. Quem na Galiza acredite que pode escrever a língua da Galiza com o Ñ dos teclados espanhóis, continuará a estar errado: um teclado contém toda a Língua, toda la Lengua ou the entire Language, e não existe qualquer língua nem teclado intermédios.
Já sei que alguns me chamarão lusista. Mas a ver se se inteiram de vez que eu não sou lusista não: é a língua da Galiza que é lusista. E eu, simplesmente, obedeço-a. Tento obedecê-la como durante anos obedecim o espanhol e continuo a obedecê-lo quando o falo e o escrevo. Eu obedeço a língua galego-portuguesa que saíu e entra na Galiza quase tanto como obedeço o inglês quando o falo e o escrevo. Porque é a língua da Galiza que é lusista, como a da EspaÑa é espaÑolista, e a inglesa é lógica e legitimamente anglófila. Não se pode fazer cultura própria com os instrumentos dos outros. E o Ñ galego, o dos manuscritos, que existiam, morreu há muitos séculos, exatamente quando coincidiu por dominação com o único Ñ espaÑol, e só houvo no país um enorme Ñ espaÑol que representava outra língua. E quando a nossa fala foi língua sul do Minho, o antigo Ñ galego cindiu-se em NH, meioticamente, como uma célula, quando a nossa fala foi língua. E aí continuou durante séculos. Há um formoso jogo de caracteres para computador, chamado Tipo Castelao, feito por J. H. Peres Rodrigues, onde se pulsares o Ñ sai automaticamente o dígrafo NH. Com estes caracteres não se pode escrever Ñ, e isso é uma sã proibição mental. É são que para escrever o Ñ se precise mentalmente dum esforço, o de escrever um idioma estrangeiro.
Ter um teclado português é um exercício de higiene, recomendo-o. Até o teclado é mais limpo, cândido, fulgente. De pouco a pouco, nas práticas diárias, o nosso corpo, que é simultaneamente biológico, histórico e social, deve habituar-se a esta limpeza de pessoa conversa, recém comungada perante um deus escrito, que dá outro sentido à resistência da língua. O outro dia, num telefonema por uma consulta informática, um trabalhador de Madrid do meu programa de anti-virus, que só tem versões em espanhol e inglês, não compreendia que a que eu instalara fosse a versão inglesa. Por que vou ver as letras de EspaÑa no meu constante ecrã se não posso ver as letras da Língua que obedeço? Prefiro obedecer a língua inglesa que a espanhola. Mas, de pouco a pouco, o que prefiro é obedecer à língua-que-carece-de-Ñ, felizmente eunuca, desprovida, onde um livre til nasal pode sobrevoar qualquer letra: Ã, Õ…. E procuro, então, que as minhas práticas diárias sejam naturais: que os meus dedos, que amiúde transportam até o mundo exterior a consciência da língua que escrevo, pulsem os signos da língua que obedeço. A vida diária é uma arquitetura de peças miúdas e simbólicas, e por isso o meu teclado português dá a ilusão, infantil, lusista como a própria língua, de estar no meu país, de não estar ligado por um cabo elétrico ao unitário coração da Besta. Não obedeço ao Povo não, porque não é esse Povo cheio de EÑES quem mais ordena: é a Língua da Galiza quem mais ordena. E, que se lhe vai fazer, é reintegracionista: é lusista.