Prólogo para o livro de Mário J. Herrero Valeiro No limiar do silêncio (poemas da estrangeirice),
VII Prémio de Poesia Espiral Maior, Espiral Maior, Corunha, 1999. Pp. 7-12
“E vi os mortos, como quando a figueira lança os seus figos verdes, entre as águas que estavam debaixo do firmamento, águas negras, e a lua como sangue, denso granizo e neves do espaço tenebroso. E as estrelas do céu e as águas que estavam por cima do firmamento caíram na terra, e eis que havia um grande terramoto, e rasgou os limbos a antiga luz das fábulas, e foram abertos os livros. E dentro desta luz e desta morte, os sons amadureciam. Os homens e as mulheres caíam cegamente pela boca, e o sol tornou-se negro como um livro que se enrola, e todos os pequenos e grandes montes e ilhas se moveram dos seus lugares. Abalada de um grande vento, a luz terrível subia e girava, puxando violentamente mortos brancos que ficavam presos pelos deslumbrados e arrastados lábios ao céu que se tornou como um saco de silício. E os seres aniquilados beijavam essa colina, e em baixo o céu retirou-se, e fez separação, e estalavam as cúpulas vermelhas”.
Helberto Helder, A Máquina de Emaranhar Paisagens
Conheci uma parte de Mário J. Herrero Valeiro há vários anos, uma tarde em que entrou no meu escritório de servidor do Estado na Universidade da Corunha, agora feudo económico e político da Opus Dei, para falarmos da língua e a essência do poder. Rapidamente mencionei-lhe todas as poucas citações que conheço e falei-lhe tudo o pouco que creio saber: que a Língua sempre mata, que não somos inocentes. Por cortesia, Mário não me explicou que já conhecia todas essas profundas citações e que já sabia tudo isso. Então nos separava e ainda nos separa apenas a terrível geometria dos Estados: eu continuo a ser um fiel servidor das suas seitas, Mário quisera sê-lo.
Meses depois conheci a segunda parte de Mário Herrero, que assina os ferozes textos de João Valeiro como se os dous quisessem negar-se ingenuamente a ser um só, uma mútua mimese. Num tipo de prosa que é poesia, ou numa poesia que não procura ser Poesia, ambos corpos denunciam o ruído exacto dos crânios quando os esmagam as botas dos fascistas, o cheiro a coiro humano nos lumes oficiais do capital onde crepitam as ideias. Preciso sentir esta dor para narrá-lo. Mário diria que sou um humanista, mas esta noite, na cidade que dessangra a sua força num triste álcool adolescente, preciso sentir esta dor para narrá-lo: Numa linguagem que é de pedra Mário investiga a álgebra da morte, com o singelo intuito de exilar-se de novo em si próprio, atenazado entre a ânsia de revolta e o amor a que se nega:
e agora di-me,
por se acordo e não estás,
di-me qual é o caminho das minhas veias,
por se um dia acordo
e não estás
Longe dos panegíricos, das citações precisas, da feliz camaradagem entre poetas (eu tampouco o sou), encontro em sentenças de Mário as terríveis imagens que, como simples humanista sem pudidícia, me fazem sentir dor: os bairros crematórios, os acampamentos dos nómadas, os carros de guerra a sulcarem o alcatrão das cidades, um cenário de fumos e cascalhos no interior do cérebro, o produto perfeito dos Estados. Assim constata Mário a dura visagem dos tempos e explica em que consiste a nossa estrangeirice: sermos sempre exilados no interior do Estado, que é um produto da cabeça, que sempre leva armas, e que sempre, em Timor Lorosae, o Kosovo ou Chechénia, nos corta a cabeça que o produz. Espanha é também esse monstro, não uma metáfora. Frente aos comunistas falsos que só procuram um lugar no tríptico Língua Nação Estado, a escrita de Mário Herrero revela a sua própria lógica contrária: filha do saber, ela quer atentar contra o saber e portanto, declarar-se contra o povo tal como se pensa: eu sou o inimigo do povo. Escrever outra cousa seria insincero. A Língua é sempre o Instrumento, um livro apenas é um reflexo da barbárie:
queimar os móveis
derrubar as estátuas
queimar os livros
sacrificar um anho no centro da biblioteca
Assim, Mário João Herrero Valeiro declara-se inimigo do povo tal como se pensa. Mas não o é, nem pode sê-lo. Para ser inimigo deveria ser reconhecido como tal. E o povo em que se pensa nunca lerá a sua poesia nem, portanto, saberá que é um adversário. Quem leia este livro não pode ser do povo. Quem leia este livro e diga ser do povo mente. Porque o povo em que se pensa não é real: é apenas a sua réplica, a sua máscara forjada na Língua Nacional que é a Poesia É sempre assim quando agoniza algo: enquanto a História declina, rincham como éguas metálicas as enormes indústrias da metáfora. Reconheçamos a dor. Frente à janela, prendamos tarde após tarde o ecrã da cidade onde os carros de guerra sementam os enormes números da morte: em tortuosas fileiras acarretam armas, licores e livros para comprar cérebros nos mercados populosos onde uma casta cigana pede esmola de pão, não ortografia. Há gente que poderia comprar leite com a poesia deste livro. Muita gente, não só um esfarrapado. Há gente que não quer ler como mentimos. Levai este livro às favelas de Rio, às chabolas de Labanhou ou de Sampáio de Návia, e, à noitinha, página após página, com o ritual sagrado dos clarividentes, ide queimando-o num lume onde fervem arroz enquanto a ubíqua lanza azul dos televisores ilumina as faces com crostas da miséria. Logo comei desse arroz, em silêncio.