Publicado em Galicia Literaria. Suplemento Cultural de Diario 16 de Galicia, 3 Julho 1993, p. IV
As palavras, como outros instrumentos de expressão do social (os símbolos, os hinos e mesmo os números), carregam-se involuntariamente com o seu uso de conteúdos imprevistos. Poucos usuários da linguagem são alheios aos deslocamentos semânticos que imbuem às palavras de atributos apenas inicialmente sugeridos. A reflexão vem a conto duma coluna de Isaac Díaz Pardo (La Voz de Galicia, 17/6/93) titulada «Recrimíname un lusista». O artigo é uma resposta a outro recente de Xavier Vilhar Trilho nas páginas de Diario 16 de Galicia sobre a decisão de Díaz Pardo de se apresentar nas listas do PSOE nas recentes eleições. Este terceiro texto meu tenciona, sem entrar no fundo de ambas colaborações, relacioná-las através da interpretação desse singelo titular: «Recrimíname un lusista».
Para muitos leitores, a interpretação inicial do titular, seguido do nome do seu autor, pode ser semelhante ao seguinte: «O Sr. Díaz Pardo, reconhecida figura pública que tem contribuído consideravelmente à cultura galega, é recriminado por uma pessoa que quer que escrevamos em português». Mesmo se não se conhece a biografia galeguista de Díaz Pardo, a interpretação poderia ser algo assim como: «Um colunista deste jornal que leio, que escreve em algo que eu reconheço como “galego”, é recriminado por outra pessoa que escreve em algo que eu reconheço como “português”». Inevitavelmente, portanto, o contraste de identidades que se estabelece desde o mesmo começo remete a uma aguda controvérsia actual do nosso país, carregada de pregas e deslocamentos semânticos, dentro do tribalismo conceptual inerente à lógica do controlo simbólico da Língua.
No seu artigo o Sr. Díaz Pardo refere-se ao Sr. Vilhar Trilho como «meu amigo lusista». Aí a caracterização «lusista» pode ser tão útil como os códigos de entendimento mútuo entre as duas pessoas o permitam ou aconselhem. Por respeito, não é a minha intenção entrar neste aspecto. Mas o titular atribuível só a quem o confeccionara si provocou em mim certa perplexidade discursiva, que tentarei desenvolver.
«Recrimina-se» a alguém por uma acção passada vista como negativa polo recriminador. Quando a identidade do recriminador é mencionada, imediatamente sugere-se que há certa relação entre a identidade invocada e o nível de legitimidade que o recriminador possui em julgar essa acção. Por exemplo, a expressão «Recriminou-me uma professora…» sugere que a acção julgada está em alguma medida conectada com o âmbito social ou discursivo onde são relevantes as identidades «professora» e, por alusão, «estudante», ou talvez «mãe ou pai de estudante». Com outras palavras: a recriminação muito possivelmente concerne uma acção do recriminado no mundo da escola.
Na interpretação mais comum, o titular «Recrimíname un lusista» sugere, portanto, que o âmbito da acção recriminada é o do posicionamento ortográfico-linguístico verbo da identidade do idioma galego frente ao idioma português. Porém, a acção recriminada é a de Díaz Pardo apresentar-se às eleições nas listas dum partido político, e pertence, portanto, ao âmbito do político.
Uma segunda acepção de «lusista» estaria, por suposto, referida às ligações culturais entre os países respectivos. Ainda assi, existiria um certo desajuste discursivo na medida em que o conteúdo do artigo do Sr. Vilhar Trilho afundava na decisão política do Sr. Díaz Pardo.
Em qualquer caso, existe um deslocamento metonímico dos valores comumente atribuídos ao descritor «lusista» no discurso público do nosso país. Nas vozes e escritos de muitos políticos e intelectuais semelha haver um contraste discursivo entre «galeguismo» e «lusismo» que pode não se corresponder com as práticas por meio das quais «galeguistas» e «lusistas» constroem a sua identidade. Decerto existem persoas que optam pola grafia unificada do galego-português a que se dá em chamar «lusista» que são também «lusistas» culturais. Haverá também «lusistas ortográficos» que sejam «portuguesistas políticos» e degorem alguma sorte de integração política com Portugal, o qual não deixa de ser uma opção respeitável por muito que o dualismo institucional Galiza/Espanha a anatemize. Pola mesma razão, existem, evidentemente, lusistas galeguistas, lusistas espanholistas (como o académico da língua espanhola Gregorio Salvador), lusistas independentistas e, como não, lusistas fascistas, como a organização CEDADE na Corunha.
Pola mesma moeda, o repertório de opções políticas dos «isolacionistas» seria semelhante. Um exercício de mero sentido comum leva-me a negar qualquer redutivismo de entre os muitos operantes que pretendem lhe atribuir «espanholismo» a todos os defensores da grafia em uso nas instituições. Na minha própria maneira de representar graficamente o galego (se se me permite uma breve auto-menção) nada há que indique, em princípio, uma opção política determinada. Ou há?
A eleição do termo que invoca uma certa identidade («lusista» em vez de «independentista» ou mesmo «portuguesista»; «professora» frente a «mulher», «adulta» ou «cacerenha») é pois fundamental à hora de remeter a um âmbito sócio-discursivo dado. Comumente, existe um termo não-marcado que não se precisa expressar e que constitui protótipos: o advogado é um «homem», «branco», «adulto», «ocidental», e o demais são excepções. Os vários termos marcados («preta», «mulher», «velha», «oriental») desenvolvem entre eles complexas relações metonímicas, de maneira que se nos atraca alguém, não é um delinquente senão um «gitano»; desde o Sul invadem-nos os «moros», não os norte-africanos; e trabalha-se como um «negro», não como um escravo.
O deslocamento metonímico destes identificadores sociais consiste na transferência de atributos entre dous âmbitos diferentes de identidade grupal: invoca-se uma identidade racial (negro) para se referir ao geográfico-cultural (centro-africano); invoca-se uma postura ortográfica (lusista) para se referir ao político. «Recrimíname un lusista» contrasta, portanto, com um hipotético «Recrimíname un galeguista», «Recrimíname outro galeguista» ou mesmo «Recrimíname un amigo». Por meio deste contraste vê-se que a eleição do termo não esta vazia de significados.
Certamente, amiúde estes usos metonímicos das palavras contribuem para a minorização e satanização dos grupos referidos. Isto leva acontecendo muitos séculos com o descritor «negro», aconteceu já neste país com o descritor «feminista» desde os anos 70, e pode estar acontecendo agora com os descritores «lusista» e quase-sinónimos «reintegracionista» e «lusófono».
Mas a minorização e satanização de alguns acarreta, discursivamente, a maiorização e glorificação de outros. A maiorização dos grupos é sempre um processo histórico baseado na legítima dialéctica hegemonia-resistência. A glorificação, pola contra, semelha mais um auto-comprazente (e portanto alarmante) artifício ideológico encaminhado à manufactura duma Verdade que só será sempre historicamente contingente.
Contra a satanização e glorificação subtil que mesmo involuntariamente exercemos por meio das palavras existe, não obstante, um duplo antídoto: a cautela à hora de produzir com palavras esse documento e acção histórica que é todo o texto; e o respeito às identidades dos outros moradores, dos que habitam a periferia dos discursos hegemónicos.