Publicado em A Nosa Terra 353, 8 Setembro 1988, p. 20
O Horror só tem um nome múltiplo mas idêntico que levamos inscrito na pele da mão, que espero que jamais desapareça da memória, que merece permanecer, e doer, e fazer que às noites nos ergamos de súbito dum pesadelo de fogo e fumo e rebúmbio infernal de gigantescos insectos bombardeando com morte corpos sem defesa. Esse nome idêntico é mil novecentos e trinta e seis, é Viet-Nam, é a odiosa guerra suja da Argentina, é o Golfo Pérsico onde os rapazes impúberes são enviados a acribilhar velhos sem esperança de voltar. O nome de Viet-Nam, simplesmente, resume uma era monstruosa. Os milhões que dalguma maneira vivemos um viet-nam pessoal composto de experiências ou memória temos a necessidade íntima e a obriga histórica de lembrá-lo, para que os monicreques imberbes que exibem os atributos sexuais dos seus ciclomotores em frente das cafetarias da cidade não esqueçam jamais de onde vêm, quê devem à nossa história assassina, como se mataram as famílias numa alvorada preta que só aos ingénuos lhes parece ridículo lembrar.
Não me adjudico protagonismo nenhum na história genocida. Sou demasiado novo para ter vivido a pavura dessas manhãs geladas em que os automóveis da morte se detiam às portas dos imaculados para arrastá-los com uma mão macabra a um território de tormento de onde só puderam voltar em fotografias amarelas. Mas sou também demasiado velho para ignorar que muitos olhámos essas mesmas gadoupas de violência perto dos nossos corpos que tremiam, brandindo grises instrumentos de tortura enquanto corríamos entre júbilo e terror polas ruelas chuventas da cidade velha. Tenho, pois, o direito de falar.
O viet-nam que eu recordo começou há mais de cinquenta anos, na peganhenta data de mil novecentos e trinta e seis, que tanto provoca arrepios. Mesmo na distância ainda às vezes acordo no meio dum horror que não vivim porque jamais na minha vida toquei um fuzil nem pudem superar a minha repugnância assombrosa pola cor dos uniformes. Nesse viet-nam nosso forjaram-se os primeiros desaparecidos, as primeiras mães da Praça de Maio, os primeiros fugidos que nunca souberam fugir nem deles mesmos e ficaram apodrecendo durante décadas nos húmidos úteros dos faiados ou das tocas sem irromperem à luz griseira da pós-guerra.
O meu viet-nam aconteceu numa alvorada de Novembro do 36, ao sul da Galiza, à margem do largo rio que falsamente afasta um país dividido de si próprio. Aí, sob os plácidos salgueiros do passeio onde os vilegos vestiam os seus melhores e mais frescos linhos de domingo para representarem rituais corteses de chapéus e tímidos sorrisos, Viet-Nam assassinou com balas como pombas vários homens culpados de existir. Entre eles estava um dos meus, e o estoupido da sua morte escutou-se na obscurecida casa familiar onde alguém ergueu a olhada sem esperanças e continuou a tecer panos silenciosos. Sei que essa noite tampouco os homens que fuzilaram outros homens puderam dormir porque também eles estavam mortos. A quietude natural fundiu-se com a atrocidade humana num paradoxal território que a história ainda se encarrega de repetir, e dessa união monstruosa nasceram inacabáveis anos de terror. A formosura das palmas ou salgueiros deu uma geração espontânea de metralha que se espargeu polo planeta até Viet-Nam, Nicarágua, as infames ilhas das Malvinas. Abrolharam ódios, plantas tropicais que queimavam, meninhos despidos fugindo por uma estrada ocupada por máquinas de guerra, colunas de exilados como serpes que atravessaram montes congelados em farrapos provisórios, enxames de adolescentes enviados a estourar sobre as minas do deserto que um blasfemo deus islâmico sementou, fundos poços onde agonizaram tuberculosos tantos indefensos. Anjos intemporais sobrevoavam os cadáveres e as ruínas e fingiam compreender. Mas não se pudo. Já mais puderam compreender. Assim é às vezes a história das minhas noites estrangeiras.
Os ingénuos, rematando o rotineiro café de sobremesa enquanto comentam preocupados as vicissitudes do verão ou da poesia, talvez perguntem indignados por quê relembrar agora a lonjura de Viet-Nam, do 36. No entanto, em anos recentes, a América meia volta a exorcizar Viet-Nam, os horrores da guerra, e sobretudo o mais profundo horror colectivo de qualquer guerra: não ganhá-la. A esse exercício de exorcismo está dirigida uma multilogia de filmes que têm tanto de nostalgia como de psicoterapia compartilhada: Apocalypse Now, The Deer Hunter, Full Metal Jacket, Platoon. Recordo que vim Platoon em Vigo há uns meses. À saída, uma pessoa de fácil esquerdismo a quem conheço pouco criticou o meu legítimo sentimento de horror e de tristeza. Platoon, dixo, glorifica o imperialismo americano. Neguei-no, mas fum sensato para compreender que não pagava nem paga a pena discuti-lo: a sua visão maniqueísta da guerra, pensei então e penso agora, glorifica a ideologia. A guerra não tem ideologia: só os ingénuos ou os que padecem a doença das ideias podem justificá-la e, portanto, permanecer impassíveis perante a blasfémia duma bala. Outros, talvez ignorando que a sua própria ideologia é a da guerra, constroem o seu viet-nam diário nas comissarias de polícia, nas celas de castigo, no ritual viril de se ajustarem o jaleco anti-balas ou de cingirem orgulhosos uma ambígua Parabellum. Assim continua o Horror: nas nossas ruas.
Para alguns, escutar “Viet-Nam” nesta época invoca o dogma dos setenta, quando habitava as consciências um único deus biface que podia explicá-lo todo, esses anos de maniqueísmo dos bons e os maus da película de nazis em que, contudo, nos identificávamos com o soldado americano e em que, contudo, voltávamos à casa depois da assembleia de distrito a imaginarmos uma disneylândia igualitária onde coexistiam Sartre e Peter Pan. Mais já não se trata disso. Para alguns, escutar “Viet-Nam” nesta época invoca o cheiro a ressesso dum volume de Quê fazer justo ao lado dum Tintim sobre a mesa grassenta duma cozinha de estudantes. Mas já não se trata disso. Em Berkeley, Califórnia, ainda existe um parquezinho chamado Ho-Chi-Minh, mas já não se trata disso. Em Santiago os estudantes continuam a fazer as suas citas nervosas de paixão primaveral debaixo do concreto da chamada Praça Roxa. Mas talvez já não se trate disso. Os cartazes social-realistas dos Livros da Revolução profetizam polos muros de Berkeley a última obra do secretário geral do P.C.R. americano: o título, preto e vermelho, reza Balas. Mas já não se trata disso.
Não, já não pode tratar-se disso. Nem aqui nem lá, já não podemos permitir-nos o luxo de concebermos o horror da guerra como uma moeda de duas caras. Quando voltemos a matar, antes de que remate o século, sentiremos para sempre na mão a queimação circular do Horror. Pois o círculo da guerra tem inscritos datas e nomes numerosos e idênticos (Viet-Nam, 1936, as Malvinas) mas só possui uma pavorosa cara: a do vazio.