Como Apostatar de NCG (uma crónica)

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     Acabei de exercer o meu direito, reconhecido constitucionalmente, de deixar de pertencer à igreja NCG. Ainda sou membro de outras (bancos, companhias telefónicas, multinacionais informáticas, cárteis da desinformação), mas é difícil abandonar todas as fés abruptamente sem algumas recompensas. A minha apostasia, além, foi delegada, também em nome da minha companheira: era uma conta nossa da igreja NCG que mantínhamos fielmente durante décadas para ir alimentando as indemnizações milionárias dos nossos hierarcas. Agora que estas já foram cobradas, a nossa missão está cumprida.
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Galiza, coletivo de base

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     Qual é a diferença, em termos da subjugação das vontades populares ao poder económico, militar e político, entre os coletivos de acampamentos nas cidades e essoutro coletivo que chamamos “as/os galegas/os”?  Em que medida é coerente ou taticamente útil pretender separar as formas e naturezas das vontades que são igualmente silenciadas polos mesmos poderes?  Combate-se em abstrato contra “os bancos” e contra “os políticos” como classe, ou contra os nossos bancos e os “nossos” políticos, ou os que são impostos como “nossos”?

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Bilinguismo zumbi e crise sociolinguística

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     No seu blogue do New York Times, o prémio Nobel de Economia Paul Krugman introduz a expressão “zombie ideas” para se referir àquelas más propostas económicas já mortas que ressuscitam periodicamente. Aprendo a imagem numa entrevista que lhe faz Amy Goodman no inimitável noticiário Democracy Now!, e aproveito-a sem pudor. O “bilinguismo zumbi” do meu título não se refere aos milhões de pessoas galegas que conhecemos e falamos duas (ou mais) línguas, mas às ideias zumbis sobre a nossa crise sociolinguística que a história mata periodicamente mas que levantam cabeça à mínima, com sedução de ultratumba, e que haverá que voltar a matar com paciência. O “bilinguismo harmónico” de Fraga Iribarne ressuscitou há pouco no corpo da “amabilidade linguística” de Alberto Núñez Feijóo. Na realidade, são novas versões da velha ilusão do convívio entre línguas, que nunca funcionará na Galiza (entre línguas) até que se destaque uma outra maneira de articulá-lo.

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A Revolta do Capitariado

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Um espectro ronda polo mundo: o espectro do capitalismo. Todas as legiões das Forças do Trabalho, unidas em santa aliança com o Feminismo e o Ecologismo, andam à caça do capital, a quem escravizam com as suas exigências cada vez mais totalitárias: salários “dignos”, “estabilidade” laboral, vacações pagas, menos de 16 horas de trabalho por dia, “igualdade de género”, uma “idade mínima” para trabalhar… E que partido não lançou alguma vez aos seus adversários de direita ou de esquerda a alcunha de “capitalista” com intenção de infâmia? Mas já é hora de falar. Perante este acossamento, que se repete ciclicamente, o subjugado capitariado mundial (o único que possui é o grande capital!) rebela-se pouco a pouco, a funcionar em rede, como todo bom ativismo clandestino. Timidamente, as empresas mais ameaçadas pola Força de Trabalho (Boeing, Toshiba, Nintendo, Renault, Citroën) começam a reagir e são capazes de impor a purga laboral que a revolta precisa: não se pode consentir que os trabalhadores continuem a roubar. O mal chamado “despedimento” é o último tímido direito que lhe resta ao capitariado dentro do Estado Social. Talvez muitas vezes o despedimento seja só simbólico, pois historicamente a Força de Trabalho, até quando é descabeçada, regenera-se como uma peçonhenta ténia: da chamada “reserva” surgem logo milhares de militantes laborais treinados nos campos das oficinas do desemprego (verdadeiros “libertados” na sombra) que ao começo fingem aceitar salários mais baixos, só para procurarem impor a sua hegemonia de “salários dignos” quando o capitariado está mais débil. A turva tática, desenhada nas madrassas da Escola de Chicago, não por conhecida deixou de funcionar durante dous séculos. Mas desta vez o capitariado parece assumir por fim o seu primário papel histórico em criar um mundo novo totalmente desigual: De cada um, segundo a sua incapacidade; a cada um, segundo o seu poder militar.

Porque, polas imposições da Força de Trabalho, os ganhos do capitariado são cada vez menos imensos. A situação do capitariado mundial está a reverter a índices do velho colonialismo, onde o único que possuía eram uns milhões de hectares, umas matérias primas, algo de ouro, umas empresas téxteis, e uns quantos escravos. A japonesa Nintendo, por exemplo, declara ter tantas perdas nos seus ganhos (“pérdidas en sus ganancias”, informa o jornal espanhol Público) que, perante a angústia, lutou até conseguir reduzir o sangrante esbanjamento que implica pagar a mão de obra. E, igual que nela, em Boeing, em Renault, nas empresas mais ativas que sofrem o acossamento, por fim parece ter surgido a consciência de que o salário é um roubo ao Capital, legitimado polo Estado. Cada mês, ou cada quinzena, ou cada dia, milhões de “trabalhadores”, “operários” ou outros eufemismos que ocultam o seu papel estrutural de domínio, assaltam as arcas das empresas e levam para a casa centenas de milhões de euros em soldos como se até a isso tivessem direito, amparados nas “constituições democráticas” e nos “convénios coletivos”. O salário atual rompe o equilíbrio da lógica da empresa, que é o lucro sem mesura. É certo que nem o mais revolucionário capitalista nega que alguma forma de salário deva existir. Mas, como explicou Xram em Sad Latipak, o salário no Estado Social apropria vilmente o mais-valor que pertence ao capitariado polo seu hercúleo esforço de transformar o nada do papel-moeda falso em extrema opulência para uns poucos.

Mas a vanguarda do capitariado está a reagir, a exercer valentemente o seu direito conquistado ao despedimento coletivo, até na versão selvagem e ilegal, na melhor tradição combativa prévia à domesticação que sofreram as Confederações de Empresários depois da Segunda Guerra. Maciçamente, com o despedimento, o capitariado começa a impor o seu inalienável direito natural a que os seus ganhos não sejam roubados polo injusto preço do trabalho. Hoje talvez seja só uma grande empresa quem ouse, mas amanhã serão duas, depois dez, cem, dez mil, e em pouco tempo todo o capitariado mundial, desde o mais consciente até o pequeno capitalista que sofre alienação ideológica de classe e acredita ser “pequeno comerciante”, será capaz de recuperar o que lhe pertence e estabelecer uma nova ordem, sempre apoiando-se inteligentemente no próprio aparelho do Estado Social que o oprime. Como escreveu Nestor Kohan em “Icsmarg y Xram: hegemonía y poder en la teoría xramista“:

“Mesmo dando conta de todas as suas limitações, devemos reconhecer ao Manifesto Capitalista o facto de destacar na sua época (no meio de um conflito de classe europeu, depois mundializado) que o Estado jamais é neutral, e que portanto o capitariado revolucionário não pode pretender utilizá-lo ‘com outros fins’… mas deixando-o intacto“.

Porque, se foi o Estado Social que criou esta inaturável situação para o capitariado, que mantenha ele as legiões de “trabalhadores” desempregados, e que inunde as arcas do Capital com papel-moeda falso. Que pague o corrupto Estado o que deve, e quebre de vez!

O capitariado não se rebaixa a dissimular as suas opiniões e os seus fins. Proclama abertamente que os seus objetivos só podem ser alcançados pola derrubada violenta de toda a ordem social existente. Que as classes populares tremam à ideia duma revolta capitária! O capitariado já nada tem a perder: tem um mundo a ganhar.

Língua, Mercado e liberdade

Publicado no Portal Galego da Língua

1. A eliminação do coletivo

Num texto de 1998, Pierre Bourdieu (“L’essence du néolibéralisme”, Le Monde Diplomatique, Março 1998; acesso na Internet: http://www.monde-diplomatique.fr/1998/03/BOURDIEU/10167 ; existem traduções portuguesas como a de Informação Alternativa, http://www.infoalternativa.org/teoria/teo007.htm) lembra-nos o principal procedimento do liberalismo moderno (o duvidosamente chamado “neoliberalismo”, isto é, o ultraliberalismo que quer laminar as “conquistas” sociais e laborais) na sua procura da Utopia do Mercado: a extirpação gradual de todo o coletivo, amiúde com a rendida conivência das forças do progresso. A recente ofensiva discursiva de um setor do liberalismo programático español contra as políticas e legislações orientadas à manutenção (também programática) das línguas “españolas” não castelhanas do Reino pode ser examinada dentro deste contexto. Os discursos do fenómeno Galicia Bilingüe, o Manifiesto por la lengua común –com as aderências que obteve na Galiza– ou, sobretudo, o mais recente relatório do Club Financiero Vigo (CFV) exibem uma clara base argumental política compartilhada. Destes, o relatório do CFV, polo prestígio da sua fonte e polo debate que está a suscitar, merece ser comentado como paradigmático. O documento, com data 2 Setembro 2008, é editado em galego e em español, e intitula-se Política lingüística: Unha visión empresarial (Cadernos para o Debate 12) / Política lingüística: Una visión empresarial (Cuadernos para el Debate 12). Porém, na web do CFV na altura (9 Setembro) só está disponibilizada em PDF a versão em español, que é, consequentemente, a que utilizarei: http://www.clubfinancierovigo.com/archivos/archivo_333_2481.pdf. / http://www.clubfinancierovigo.com/cuaderno.asp?id=333&lang=es .

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Triunfam Ouros: A jogada mestra de ser ‘nació’

Enviado a Vieiros; não publicado

A única cousa sensata do discurso extraterrestre que está a proferir certa Caverna espanhola a respeito do novo Estatuto de Autonomia para Catalunha é a seguinte: que este “segundo golpe de Estado” perpetrado por PSOE-ERC contra a “Nación española” (o primeiro seria o de 1934) tem o apoio do rei. Com efeito, numa comemoração qualquer na Academia Militar de Saragossa, Juan Carlos de Borbón lembrou ao exército a “indivisível unidade” da “nación” espanhola e o seu próprio papel como servidor desta unidade. Bem, lógico, só são palavras. Mas, é que há desnecessário ruído de sabres ou está a Monarquia a dizer que Espanha vai bem? Porque qualquer leitura racional da proposta de novo Estatuto catalão leva, precisamente, nesta segunda direcção Real: Catalunha define-se como uma nação dentro do Estado espanhol. É mais: O Artigo 3 define explicitamente a submissão de Catalunha à soberania do Estado espanhol:

“ARTICLE 3. MARC POLÍTIC. 1. Les relacions de la Generalitat amb l’Estat es fonamenten en el principi de la lleialtat institucional mútua i es regeixen pel principi general segons el qual la Generalitat és Estat, pel principi d’autonomia, pel principi de plurinacionalitat de l’Estat i pel principi de bilateralitat, sense excloure l’ús de mecanismes de participació multilateral.”

Por sua parte, a Constitución espanhola faz recair a soberania ambiguamente ora na “nación española” (Preámbulo) ou no “pueblo español” (Título Preliminar, Artigo 2: “La soberanía nacional reside en el pueblo español, del que emanan los poderes del Estado”). Mas reparemos que os preâmbulos são declarações de intenções para contentar uns e outros, e o substancial é o articulado. No articulado, “pueblo español” é sinónimo de “ciudadanía española”, sem mais estórias.

Eu suponho que qualquer leitura não essencialista dos vocábulos “nación”, “nació”, “pueblo español”, “poble català”, “pobles de l’Estat” e outros relacionados nos dous textos deveria levar os juristas racionais à conclusão de que o novo Estatuto catalão não pode vulnerar a constituição espanhola, por duas razões. Primeiro, o Estatut só pode definir o âmbito e o sujeito da soberania catalã. Não poderia ser de outra maneira, polo seu próprio rango inferior à constituição de Espanha. Segundo, quando se refere à definição do Estado no Preàmbul, o Estatut expressa uma posição subjectiva de “Catalunha”, não um facto de lei: “Cinquè. Catalunya considera que Espanya és un Estat plurinacional”. Podemos perguntar-nos se tal peculiar expressão tem lugar num texto jurídico, mas dificilmente se pode argumentar que a expressão de um juízo não vinculante por parte de um colectivo seja anti-constitucional. Será, em todo o caso, anti-estatutário, por não poder ter qualquer efeito jurídico.

Destas premisas de submissão de Catalunha ao Estado como parte dele, o resto do articulado do Estatut detalha os direitos e deveres dos cidadãos de Catalunha, quer dizer (e com total transparência), dos espanhóis (cidadãos do Estado espanhol, com independência da sua origem) residentes em Catalunha: “ARTICLE 7.1. Gaudeixen de la condició política de catalans els ciutadans de l’Estat que tenen veïnatge administratiu a Catalunya. Llurs drets polítics s’exerceixen d’acord amb aquest Estatut i les lleis”. Isto quer dizer que não há qualquer contradição entre ser catalão e ser espanhol: ser catalão, é, de novo, uma forma contingente de ser espanhol. Decerto, o “povo catalão”, que poderia entender-se como um sujeito étnico, não civil, aparece cá e lá no novo Estatuto, mas não se lhe atribui qualquer papel especial (por exemplo, no exercício da soberania) além de ter preservado costumes, tradições e direitos próprios durante séculos.

Em resumo, como a Generalidade é estado espanhol, e exerce dentro do território de Catalunha em função da prioridade da legislação própria, a proposta não difere muito da antiga “administração única” do deputado Manuel Fraga Iribarne, excepto na retórica nacionalitária. Até a “prioridade” dada ao direito e à legislação de Catalunha sobre os gerais do Estado é vazia. Porque, ao estar submetida Catalunha à legislação geral do Estado, também qualquer díscola normativa catalã é e será susceptível de anticonstitucionalidade e, portanto, de nulidade jurídica.

Portanto, a definição de “nació” para Catalunha é (como talvez chegue a ser no caso galego) um nominalismo acadado como efectiva cortina de fumo para desviar o assunto fundamental do Estatut: a renúncia de facto ao direito de auto-determinação e de secessão. Decerto, Catalunha não renuncia aos seus “direitos históricos” (Disposició Addicional Primera do Estatuto). Mas a eventual actualização destes direitos fica subordinada à Disposición Adicional Primera da Constitución, que impõe o quadro da própria Constitución como limite para estes direitos. E a Constitución monárquica impede a secessão. Só após uma reforma da Constitución poderia Catalunha reclamar legitimamente a independência. Em resumo: Que melhor cenário para a direita espanholista que desenhou o regime monárquico como tampa para a secessão do que uma “nació” que, podendo reclamar a independência, renuncia à soberania para continuar fiel à Coroa?

Claro que, sabemos todos, o assunto de fundo não é a Nación nem a Nació nem a Nação, mas a pela, os quartinhos dos grandes dominadores. No Estatut, o complemento de um detalhado articulado em defesa de todo tipo de direitos dos espanhóis catalães a que nenhum verdadeiro liberal se poderia opor é, por uma parte, a definição do papel do governo catalão, claramente intervencionista em todos estes aspectos como suposto garante destes direitos. Vamos, nada novo: exactamente como o papel molhado da Constitución Española e de outras constituições liberais. Mas o verdadeiro contraponto é o articulado final relativo ao financiamento e aos tributos, onde “Catalunha” reclama o lógico direito liberal de contribuir para o Estado geral em função da sua população, do seu “esforço fiscal” e outros critérios, mas sem comprometer a sua posição económica. Com outras palavras: se sobrarem quartos, a empresa “Catalunha” será “solidária” com as outras companhias do Estado, mas o “nivelamento” não poderá rebaixar em nenhum caso a posição relativa de “Catalunha” no ranking das rendas per cápita do Estado (Artigo 210.d). Com efeito, por quê deveria sob o capitalismo uma “nação” muito produtiva do Estado pagar ou manter outras empresas-nação que produzem menos? De novo, “Catalunha” não poderia ser uma empresa mais liberal: para cada pessoa, uma série de direitos, um voto, um pedacinho de imposto, e que não no-los roubem outros. E os benefícios colectivos, para dentro (isto é, para os proprietários da “Nació”). Nem mais, nem menos. É isto o que assusta a improdutiva Caverna espanhola que quer continuar a chuchar fundos de todos roubados polo Capital sob a escusa da “solidariedade” e o “nivelamento”. O resto são farrapos de gaita.

Quanto a “Galicia”, talvez vá por um caminho semelhante: ser nación para continuar a ser empresa de España. Jogada mestra nesta longa baralhada: voltará a triunfar o Rei de Ouros e de Sabres. Os liberais do PSOE e do BNG estarão contentes. E os independentistas socialistas deverão repensar a que jogam ainda dentro deste partido. Romper o baralho real deveria ser o prioritário.

España, S.L.

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O problema que tivo o Conselho de Administração de Euskadi Ltd. é que a legislação comercial do cartel España S.L. não permite a separação unilateral dum dos sectores de produção, sobretudo quando este é tão importante que sem ele a empresa ficaria praticamente descabeçada. Ontem, na Junta geral de proprietários de España S.L., ficou claro que comercialmente teria sido melhor para Euskadi Ltd. a estratégia, praticada profusamente há anos durante a época de venture capitalism em USA & Co, Europe Inc. e a própria España S.L., de descolar-se da empresa mãe fugindo simplesmente de noite com a principal carteira de clientes. Afinal, se Euskadi Ltd. fosse capaz de evadir os serviços de segurança por terra, mar e ar contratados consoante o artigo 8 da Constituição Comercial, que garante a integridade da empresa, e fosse reconhecido como partner potencial polas outras empresas mundiais, pouco poderia fazer o resto de proprietários de España S.L. Catalunya Inc. e Irmáns Galicia talvez contemplassem com inveja e preocupação a aventura, enquanto o resto de España S.L. deveria, sem dúvida, aggiornar-se a um novo panorama comercial menos favorável.

Nominalmente, a reunião de ontem foi mais um desses trâmites polos que as Juntas de Proprietários devem passar para aprovarem as cousas mais triviais. Euskadi Ltd. mostrou os dentes, Catalunya Inc. confirmou a sua lealdade ao cartel, um quadro médio de Irmáns Galicia queixou-se de novo do lamentável estado das suas instalações, e a aliança entre os dous maiores sectores proprietários de España S.L., sentados a direita e esquerda da longa mesa de trabalho, continuou a funcionar como desde há décadas, na aparência de confrontação, mas sempre protegida sob o solene retrato do Presidente Vitalício de Honra, Sua Majestade Real, e os de todos os antepassados que possuem o consórcio desde há séculos (fora de temporárias ocupações civis que sempre acabaram desalojados pola polícia). O Presidente do Conselho de Administração, o Sr. Talante, demonstrou que é capaz de dialogar com um presidente territorial sem humilhá-lo. Por contra, o Sr. Mire Uszté, cujo sector é maioria em tantos Conselhos de Administração territoriais, rejeitou veementemente qualquer cissão no cartel (mesmo com posterior aliança comercial), e até ameaçou com uma possível OPA agressiva sobre Euskadi Ltd., contemplada no artigo 155 da Constituição Comercial como tábua salvadora para unificar a política de empresa. E apenas vozes tímidas (como a do Sr. Nosotros Creemos) se alçaram na Junta de Proprietários em favor duma restruturação horizontal do organigrama e duma questionável oferta pública de acções que corresponsabilizasse os próprios consumidores da instabilidade estrutural da empresa.

Contudo, é evidente que algo se move dentro de España S.L. Sofre simultaneamente pressões centrípetas pola sua futura absorção por Europe Inc., fendas centrífugas pola necessidade de expansão dos seus sectores periféricos, que já não respiram com as quotas de mercado cedidas por Madrid, e desconcerto pola recente mudança de sede executiva da rua Génova a Ferraz. España S.L. tem demasiadas filiais com demasiados interesses sectoriais. Por exemplo, o Conselho de Administração de Irmáns Galicia (quer dizer, os quatro irmãos, mais o púdico Presidente eleito, braço direito da Capital antes da modernização de España S.L.) levam anos demonstrando estarem dispostos a mudar radicalmente o seu sector de produção se assim podem manter a titularidade da empresa a qualquer preço. Producsioneh Canariah, por sua parte, é favorável a colaborar no cartel España S.L. com a única condição de preservar a sua imagem corporativa exterior. Facções em alça de Catalunya Inc. continuam a manifestar a sua intenção de absorver as contíguas Distribuidora Valencia e Servicis Illes. E enquanto concessionárias como Andalu & Cía. reclamam também periodicamente parte da torta, outras como Mur Cia. levam anos sem abrirem a boca na Junta de Proprietários. E assim por diante.

Em resumo, tudo isto dificulta o desempenho de España S.L. nos mercados, e coloca a empresa numa situação difícil de administrar com lucidez comercial. Por isso, a campanha de mercado em andamento de España S.L., que culminará com o maciço inquérito de consumo do 20 de Fevereiro, está só desenhada para desviar a atenção dos problemas internos e para preparar a sua absorção por Europe Inc. perante o temor de queda de confiança dos consumidores. España S.L. debate-se assim entre a perda de capacidade de gestão que a sua integração em Europe Inc. acarreta, e as demandas de subsectores altamente especializados que não parecem achar equilíbrio no actual organigrama do conglomerado. O resultado só pode ser ralentização do processo produtivo, custos produtivos crescentes, possível ajuste brutal de planteis, e desconfiança do mercado. Perante esta salada, só algumas vozes críticas sugerem que o mais prudente para a empresa seria rejeitar a fusão com Deutschland Internationale, France Totale e outros cartéis semelhantes, a independização das filiais territoriais, e começar de novo a capitalização desde abaixo. Algumas ousadas organizações de usuários até propõem fórmulas distintas de capitalização. Seja como for, a crise está servida, e quem sofreremos, de novo, seremos os consumidores. Haverá que ir viver a outras empresas. Ou montar um país próprio, sem Capital.

Polo menos perdeu Kerry

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Estou meio contente com o resultado das eleições presidenciais dos EUA: Polo menos perdeu Kerry! Confesso que estaria algo mais de meio contente (por exemplo, 51%) se tivesse perdido Bush. Mas, sinceramente, é um prazer contemplar a derrota dos poderosos, embora esta signifique a vitória de outros poderosos.

Roubo a ideia de uma entrevista com um politólogo árabe, cuja referência na Internet já não sou capaz de encontrar. Quando entrevistado sobre a percepção das eleições EUA no mundo árabe, ele disse mais ou menos: “Nós gostaríamos é de que perdessem os dous, Bush e Kerry. Infelizmente, isso não pode ser. Polo menos temos a certeza de que ambos não vão ser presidente”. Ainda bem! Imaginemos por um momento um matrimónio (bom, uma “união civil”) entre o messianismo evangélico dos oleogarcas suleiros de Bush e o catolicismo dominical dos industriais “liberais” costeiros de Kerry, a governarem em sanguento tandem os destinos do mundo. Agora, polo menos perdeu um deles! E o outro, asseguro-vos, a nós não nos vai matar. Vai matar iraquis. Vai matar sírios e sírias. Vai matar iranianos. Vai matar soldados norte-americanos. Assim nós continuaremos a ter gasofa para ir celebrar a outra cidade a ponte da Imaculada Constituição, ou o Dia da Pátria do Apóstolo de Espanha.

Contemplar a derrota dos poderosos, confesso-o cristãmente, é uma sensação reconfortante. Calculemos quantos milhões de dólares caíram em ilusões eleitorais perdidas. Quanta lágrima genuína dos ingénuos que colavam cartazes eleitorais, quanta lágrima de crocodilo dos engana-bobos que ordenavam colar esses cartazes conhecendo perfeitamente o jogo. Dá vontade de dizer-lhes, com vedranha retranca: “Picaches, laraches, que tunda levaches”. Porque a derrota dos poderosos não pode ser nunca a nossa derrota. E, embora a derrota dos outros poderosos nos pudesse fazer um chisquinho mais contentes, sinceramente jogar o jogo não adianta nada. Nada.

A realidade é muito mais cruel, mais crua, como o cru: A realidade é que o grande capital tem agora a oportunidade de ré-iniciar o Experimento do mal chamado “neo”-liberalismo selvagem (não há nada “neo” sob o sol do capital: é, em todo o caso, um regresso às suas origens, que nunca faleceram) no Iraque e talvez Síria, e talvez o Irão. O politólogo As’ad AbuKhalil informa hoje mesmo (3/11/04) no seu blogThe Angry Arab News Service” que representantes do governo dos EUA solicitaram da Fundação Getty de Nova Iorque “indicar com precisão onde se encontram todos os principais jazimentos arqueológicos do Irão”. Será para salvá-los das próximas bombas?

A jornalista Naomi Klein explica lucidamente no seu artigo “Bagdade Ano Zero” (Harper’s Magazine, 24 Setembro 2004) os detalhes deste plano de conquista económica no destruído Iraque: a venda literal e ao cento por cento das velhas indústrias estatais do país a qualquer fonte de capital estrangeiro, e a instauração dum verdadeiro paraíso liberal. Por exemplo, no Iraque actual, até o concreto para a (escassíssima) reconstrução (sobretudo da “zona verde”) chega do estrangeiro, quando sairia dez vezes mais barato produzi-lo no país. As brigadas da “resistência” e da “insurgência” iraquiana estão compostas em grande parte de desempregados, desfarrapados, desapossados depois da gigantesca “redução de plantel” que significou a guerra e invasão do Iraque: centenas de milhares de pessoas sem mais oferta de trabalho que unir-se à polícia ou ao novo exército. E, para um exército, outro exército, que raios. A gente não é toda fanática, nem acha de menos Saddam, nem farrapo de gaitas: querem é ter um trabalho numa economia “estável”, como é sempre o inferno des-reconhecido do Capital.

Por isso veremos ainda mais guerras, mais experimentos. Choraremos genuinamente o sangue que não cessa, e choraremos com lágrimas hipócritas toda a cultura que será destruída. Haverá alti-baixos na conquista ocidental do petróleo. Mas, da minha modesta ignorância, sugiro: não se engane ninguém. Ontem saiu derrotada nos EUA apenas uma versão menos selvagem do capitalismo, como na Espanha (aparentemente) saíu derrotada em Março a mais feroz. (Neo)liberais contra intervencionistas, Esperanzas Aguirres contra Gallardóns, Núñez Feijóos contra Palmous, e Solbes com todos: esse é jogo das vitórias e as derrotas.

Pola nossa parte (das pessoas que, espero, ainda pensamos) não há maior derrota do que acreditarmos que é nessas batalhas que se deve dirimir o mundo, que é a política, que é a utopia razoada de que falou Bourdieu. Estaremos vencidos se nos alegramos das suas vitórias eleitorais, não dos seus fracassos. Eu só exijo, minimamente, que deixem de roubar também a minha força de trabalho para os seus votos: que me dêem de vez o mais-valor roubado, que caralho, que quero um computador mais rápido, uma outra caixa de plástico feita do seu petróleo.

Golpe económico de ‘Al-Qaeda’?

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Os resultados das eleições gerais espanholas podem ser fruto dum golpe do terror económico internacional. Uma série de circunstâncias faz pensar num plano detalhado de obscuros interesses, em última instância ligados à crise energética mundial e à luta (verdadeiramente) polo controle dos recursos: o petróleo é absolutamente crucial para a indústria pesada, incluída a armamentística. Dentro da obscena lógica do capitalismo internacional, a matança de Madrid é um sintoma de que, na guerra económica, as oligarquias devem respeitar certas regras de jogo, polo seu próprio benefício. Enumero apenas alguns dados e hipóteses, para que quem tiver mais inteligência, as ligue e extraia conclusões. Tudo isto é tão especulativo como grande é a minha ignorância de muitos factos. Em todo o caso, quando se dão eventos históricos desta magnitude é legítimo perguntar-se: A que interesses beneficia a nova situação?

Concorrem nestes acontecimentos vários factos recentes. Podem ser coincidências, ou pode ter sentido ligá-los. Em 5 Dezembro 2003, dous dias antes das eleições parlamentares russas, uma potente bomba estourou num trem de proximidades em Yessentuki, em semelhantes circunstâncias às do massacre de Madrid. Eram as 7:45 da manhã. No ataque morreram mais de 40 trabalhadores e estudantes. A explosão destroçou parte do trem em maneira semelhante à das bombas de Madrid. Discutiu-se se fora um ataque suicida ou uma acção por controle remoto. Putin atribuiu o atentado a “separatistas chechenos”. Nunca se soubo quem fora. Dous dias depois, Putin ganhou esmagadoramente as eleições. Em 29 Dezembro foi detido um tal Israpilov como implicado nos ataques. Encontraram-se-lhe explosivos e material para estourar bombas por controle remoto. Em 2001, o Ministério de Interior espanhol informava que alguns dos detidos de “Al-Qaeda” tinham ligações com o terrorismo checheno. Há pouco detiveram-se ainda mais membros de “Al-Qaeda” (dos quais se falou muitíssimo menos que dos da ETA). Em 12 de Março informava-se que agora mesmo o exército EUA está a realizar operações em Algéria contra as brigadas salafistas, que têm membros residentes em Grã Bretanha, França e Espanha. O massacre de Madrid tivo lugar no dia 20 Muharram 1425 no calendário religioso islâmico (de base lunar, não solar), exactamente no aniversário islâmico das grandes manifestações em Espanha e todo o mundo contra a invasão de Iraque (23 Março 2003, isto é, 20 Muharram 1424). Curiosamente, o vídeo de Abu Dukhan Al-Afgani (“Pai do Fume, O Afegão”; Gebel Abu Dukhan é o nome duma montanha em Egipto) que reivindica o atentado, refere-se a um aniversário cristão (“Dous anos e meio depois” do 11 S), o qual faz duvidar do carácter fundamentalista religioso dos autores, da verossimilhança do vídeo, ou de ambas cousas. Em qualquer caso, ao dia seguinte do massacre, milhões de pessoas saíam de novo à rua no Estado Espanhol contra o terrorismo, quer dizer, contra a guerra. Dous dias depois, as eleições espanholas forçavam um novo governo.

As circunstâncias políticas dos países da “aliança” também merecem comentário. Parece que, pouco antes dos atentados, o Partido Popular estava a perder pontos e até a maioria absoluta. Mas para nada estava assegurada tal vitória do PSOE. Por sua parte, o Partido Republicano dos EUA já começara a sua campanha eleitoral capitalizando a mensagem antiterrorista até com imagens do remoto 11 de Setembro 2001. Mas existe também a impressão de que pode ganhar o candidato democrata, John Kerry. Portanto, de cumprir-se alguns prognósticos, sem o atentado de Madrid poderíamos encontrar-nos com um binómio Kerry-Rajoy, não já com o tandem Bush-Aznar. E Blair está também debilitado. Bush representa a possibilidade duma nova intervenção em oriente médio (Irão, Síria) polo controle dos recursos energéticos. Kerry pode significar um hiato táctico na campanha de terror contra o Golfo Pérsico, um hiato no qual, sem abandonar o Iraque, os interesses se dirijam agora a África Ocidental, com grandes reservas de petróleo ainda sem explorar (sem dúvida um novo “golfo pérsico”, como alguns analistas o chamam, mas sem as turbulências daquele). África pode ser, por uma série de razões, um alvo militar e económico muito mais fácil para o capital ocidental.

A presença de tropas ocidentais em Iraque garante o estabelecimento duma “constituição democrática” que ameaça as famílias oleogárquicas do Golfo. O “efeito dominó” dos ataques de Madrid pode acelerar a retirada de tropas ocidentais de Iraque, uma situação mais aproveitável para o “fundamentalismo islâmico” (quer dizer, os oligarcas sauditas, “Bin Laden” incluído). Certo, a possível presença de tropas conjuntas da ONU no Iraque não elimina totalmente o risco de ataques em países ocidentais. Mas é possível que a nova constituição definitiva (?) que surgir das eleições em Iraque (não antes de finais de 2004) tenha muito pouco a ver com a provisória actual. Em todo o caso, uma “democracia” no Iraque debilitaria a autocracia saudita, por exemplo, e certos opressivos valores do “Islão” em que se escuda a sua forma de dominação.

A tragédia de Madrid e o resultado eleitoral em Espanha podem precipitar uma reconfiguração das peças na guerra económica internacional. A retirada das tropas espanholas poderia relaxar a ameaça de mais atentados em território espanhol: simplesmente, o terror é uma táctica, não um estado permanente de cousas. Mas é claro que outra parte beneficiada é “Al-Qaeda”. O ataque demonstra que, quando se vulneram flagrantemente as regras da guerra santa entre as grandes famílias económicas (uma vulneração que começou muito antes do ataque do 11 S 2001, que pode ser interpretado como uma advertência perante um plano já pré-desenhado dos EUA para invadir o Afeganistão) pode haver terríveis consequências. A capacidade de pressão do “terrorismo islâmico” é, neste sentido, muito grande. O petróleo está fundamentalmente sob os “seus” territórios, nos “seus” países. Os interesses de “Al-Qaeda” não são só recuperar os “seus” territórios (todo o Islão!, incluindo o Iraque) para reestabelecer um regime teocrático medieval, mas também ter bons clientes petroleiros entre os países industrializados: a China, cliente de Irã; Europa e Rússia, clientes do Iraque; EUA, cliente de Arábia Saudita. Donos do seu petróleo, os oligarcas poderiam negociar mais facilmente com uma Europa mais dócil militarmente (Alemanha, França, uma Espanha reincorporada, uma Rússia de Putin) do que o fazem com o ávido eixo anglo-saxão. E a sua mensagem é que, se a voracidade do grande capital industrial de Ocidente deseja este petróleo, agora que só restam tão poucas décadas dele, deve aprender a pedi-lo e a negociá-lo, sobretudo quando as famílias oligárquicas da região têm de garantir também a sua distribuição para os próprios interesses da sua classe. O capital industrial americano, por exemplo, deverá diversificar os seus alvos de “segurança energética” (algo explícito, além, nas próprias recomendações dos think-tanks conservadores americanos), olhando para a África e para a América do Sul. Por isso, espero atinar com a hipótese de que “França” ou “Alemanha” não são objectivos de “Al-Qaeda” na altura. E espero que esteja errada a hipótese de que sim que o são “Grã Bretanha”, “Itália”, “Polónia”, “EUA” e “Austrália”, estes dous últimos, com próximas eleições em finais de 2004.

Com a invasão de Iraque, o sector hegemónico do capital espanhol (“Aznar”) apontou-se a uma viragem arriscada: favorecer-se dos EUA para as contratas petroleiras em Iraque, e talvez para a exploração do possível petróleo das Ilhas Canárias e do seguro petróleo frente à costa do Sara Ocidental, calculando que dentro do clube de Europa não poderia competir com economias mais fortes polo reparto dos recursos. Numa ocasião, dantes da invasão de Iraque, Aznar disse-lhe a Zapatero no parlamento: “Se você estivesse no meu lugar, faria o mesmo”. O apoio de “Espanha” aos “EUA” era, portanto, uma questão de Estado: de assegurar-se o acesso aos decrescentes recursos por décadas por vir. Essa política está a fracassar tragicamente, com milhares de mortes no Iraque, Marrocos, Turquia, Espanha. Agora o relativamente modesto capital industrial espanhol deveria restaurar alianças com o europeu, sem pretensões de grandeza económica, e com muita cautela perante os actuais e futuros detentores do petróleo mundial.

Mas provavelmente ainda restem muitas décadas de tragédia: até que dure o petróleo. No entanto, como sempre, será a gente de toda parte quem continuará a pagar o piche com sangue.